quarta-feira, agosto 11, 2004

A importância de ser Artur.

Hoje tive o privilégio de jantar com um dos meus ídolos de infância. Chama-se Artur e foi outrora amado por milhares de verdadeiros adeptos do futebol verdadeiro que lhe chamavam "o russo". Artur, lateral esquerdo da Académica de Coimbra, do Benfica, do Sporting e da Selecção Nacional, fez nos anos 70 coisas que hoje nos são estranhas como por exemplo: limpar o seu corredor todo, durante 90 minutos, sem se dar por falta de um extremo; correr tanto que até doía (mas só a quem o estivesse a ver jogar); distribuir generosamente valentes dentadas, veementes puxões de orelhas, porradas de todo o género e pontapés na boca de quem canelasse no Eusébio ou, por desgraça, "fosse uma minhoca".
No decorrer do jantar reparei que o Artur é, como ser humano, aquilo que era como jogador da bola: 30 anos depois, somando tromboses, AVCês, cirroses e diabetes, já todo torto, o homem continua veemente, aguerrido, leal de peito alto, erguido para a vida.
O Artur falou-me de uma meia final da Taça de Portugal (Vitória de Guimarães - Académica de Coimbra) em que a camioneta do clube afogou três vezes e por três vezes os atletas da Académica empurraram o veículo para chegarem a Guimarães já em cima da hora, saindo a correr - e já equipados - directamente da carroça para o relvado. Falou-me de ser campeão sem derrotas (e eu lembro-me!) numa equipa de glórias conduzida por Jimmy Hagan, um genuíno sargento do império britânico, que deixava os assuntos marginais como a constituição do onze inicial para o capitão de equipa - na altura, Simões - preocupando-se sobretudo que os jogadores vomitassem de cansaço, evitassem as mulheres, não fizessem acompanhar o café do proverbial bagaço e se vissem privados dos vintes contos de prémio de jogo, quando venciam sem esforço. Falou-me de ganhar 5 a 1 ao Montijo no último jogo dessa época triunfal (72/73?) e partir logo - sem festas nem champanhe - para Saragoça, jogar um torneio que dava 16 mil dólares, porque o clube precisava do dinheiro. Este célebre Benfica, ainda com Eusébio, não se limitou a ganhar o torneio: contando com o jogo contra o Montijo, marcou em três partidas dezanove golos, sofrendo o Zé Henriques,apenasmente, três batatas.
O Artur falou-me ainda de sorrateiramente se escapulir da económica para a primeira classe de um voo da TAP, com o propósito de roubar uns pêssegos bonitos para o Toni, que adorava pêssegos.O Artur falou-me ainda de ganhar 34 contos por mês e falou-me, enfim, de gostar do balneário de Alvalade porque havia lá um corredor comprido com alcatifa, que servia bem para o aquecimento com chuteiras e até existia espaço para dar uns pontapés na bola, porque - por muito abstruso que isto possa parecer aos mais novos - na altura os jogadores não faziam o aquecimento no relvado.
Para ilustrar este post fui ao site do Benfica, à procura duma foto porreirinha deste enormíssimo atleta, benfiquista dos setenta e dois costados e homem com tudo em maísculas. Obviamente que procurei no capítulo das "grandes glórias" do clube. Grandes glórias como o Fernando Meira (ano e meio no SLB, zero títulos) estavam presentes. Artur, o russo, um dos melhores laterais que a puta da mãe natureza ofereceu ao futebol, campeão não sei quantas vezes, esforçado e valente cruzado da ordem da águia de ouro, não se encontra. Como hoje mesmo se viu na Luz, o Benfica contemporâneo é uma coisa tão estranha como um circo sem artistas. Mas seria menos doloroso tudo isto, se por inspiração de deus ou do diabo, ainda conseguíssemos respeitar um passado feito de homens assim, que iluminaram o percurso da história do desporto nacional com os valores da dignidade e da honradez entretanto desaparecidos. Vergonhosamente desaparecidos.
Oscar Wilde, ele também um desaparecido em combate, diria de Ernesto: "a presença de um homem só é urgente quando se torna necessária a aplicação do seu génio." Eu digo apenas: gostei à brava de jantar hoje com o Artur.