domingo, outubro 03, 2004

Da natureza do génio.

“Muss es sein? Es muss sein! Es muss sein!”

- Ludwig van Beethoven, comment written on the finale of his String Quartet in F Major, Op. 135

Ludwig van Beethoven. O nome, gordo e grandiloquente, soa génio e ele era um. Trincado pelos maus tratos de seu pai, que o queria em criança bobo da corte como Mozart (para desgraça de todos), passado a ferro pela crueldade da vida e humilhado pelo seu próprio temperamento de touro na arena, espancado pelo desgosto de amor (ele, que só teve um amor), empalado na sua moral austera, crucificado pela surdez, garroteado pela ausência de talento do sobrinho que amava, encornado pelo irmão, vilipendiado pela doença, aprisionado em Viena, enlouquecido pela solidão; Beethoven transcendeu o desespero e gritou arte a viva voz. A um dado passo, na sua última sinfonia - a Nona - compõe para a Ode à Alegria de Schiller uma partitura que parece perdoar a humanidade e os deuses e a cruz que nos espera a todos. Mas não. O grande mestre da história da música não perdoa ninguém e muito menos os deuses. E porque é que eu sei isto? Porque ele próprio o escreveu: “Muss es sein? Es muss sein! Es muss sein!” Pois tinha que ser assim e não podia ser de outra maneira. Tinha que ser surdo o génio, tinha que ser pisado e insultado, tinha que ser castrado e enfurecido, injustiçado e diminuído, ignorado e humilhado. Não seria a arte imortal se fosse ausente das dores da vida. E não seria humano quem, mesmo assim, perdoasse o verdugo. Filósofos e escritores, biógrafos e clubes de fãs andam à séculos às voltas com o imperativo categórico do Opús 135, sem perceber coisa alguma. O palerma do Milan Kundera (meu quixotesco e falacioso herói de adolescência) até vendeu a história de que o estranho epigrama resultava de uma zanga entre o mestre e uma das suas incontáveis mulheres a dias. Disparate enorme. O que Beethoven quis deixar claro é cristalino: o que tem que ser, tem muita força. E a força da Nona Sinfonia só resulta da angústia que nos oferece o mundo, o homem e a religião. Neste sentido, creio bem que a arte, para Ludwing van Beethoven, era uma espécie de vingança.