sexta-feira, agosto 26, 2005

Voando Sobre um Ninho de Corvos


(Original de 1993 em cinco posts)
POST SEGUNDO

Também temos televisão. É importante termos televisão, muita televisão. Acho que guardam pássaros lá dentro. Quando me deixam sair da cela, o que acontece com uma curiosa e assimétrica raridade, é para a saleta da televisão que eu vou. O Fragoso está lá sempre à espreita dos pássaros, segurando o inseparável bacio como quem arma uma caçadeira de canos curtos. O Fragoso já cá mora há que tempos. Foi por causa de uma constipação, diz ele, daquelas que alteram a constituição metafísica do universo?, pergunto eu. Está sempre a escarrar para o penico e de vez em quando lá se masturba um bocadinho na saleta, à conta de certas gralhas do horário nobre. Os enfermeiros dão-lhe imensos chutos nos tomates, para ver se ele perde o vício, mas é debalde. Seja como for é um sujeito às direitas, o Fragoso; sempre com bons modos para os médicos, como se lhes entendesse a linguagem. Deve ser por isso que o deixam andar por todo o lado, ele e o seu querido escarrador de esmalte. Uma vez contou-me que cuspiu na cara de um sargento, quando esteve a cumprir o serviço militar nos Açores. Perguntei-lhe porque carga de água mas ele já nem se lembrava. Tem má memória, o Fragoso, mas é católico e volta não volta sai-se com umas rábulas sobre deus e o diabo e os arcanjos todos juntos para a festa do fim dos tempos. Nunca consegui acreditar no deus do Papa; a minha mitologia é outra: Zeus todo poderoso joga Black Jack no casino celestial. Aposta com vidas humanas e a banca ganha sempre. Pássaros. Olho para o telejornal e só vejo pássaros.