segunda-feira, setembro 19, 2005

Max Stirner, o anti-cristo super-homem - I

Quando Max Stirner publica, em 1844, "O Único e a Sua Propriedade", a sociedade bem pensante da Europa deixa cair o queixo, num primeiro momento de espanto, para logo mostrar os dentes da censura, quando percebe que está em causa tudo o que de sagrado tinham escrito e dito até ali as mais brilhantes mentes liberais e socialistas, humanitaristas e revolucionárias, idealistas e conservadoras. Se Marx colocou Hegel de cabeça para baixo, Stirner dá-lhe, 20 anos antes, um pontapé no traseiro. Encostando os liberais triunfadores e vanguardistas às cordas da reacção, também desqualifica Proudhon, que chamava roubo ao exercício da propriedade, expropriando-o de qualquer tipo de pertinácia filosófica. Na altura em que o Estado de Direito dá os seus primeiros passos, o bravo Bávaro devolve-o ao útero da inutilidade ou à campa da imoralidade, o leitor decide. Com a morte de Deus ainda fresca, acabada de enunciar por Feuerbach, Stirner acusa os iluministas de devoção mística. Quando o niilismo era coisa de romancistas russos, já este valente da grande filosofia desacreditava valores morais, sociais e políticos a torto e a direito.
"O Único e a Sua Propriedade" é um dos grandes manuais de filosofia do século XIX, porque, fazendo tábua rasa do património intelectual, sensorial e empírico da Europa, num tom sardónico, rude e verdadeiramente inspirado, recentra a questão ontológica neste ponto: em última análise só poderei ser realmente proprietário do meu corpo, derradeira tangibilidade psicosomática e único valor a proteger. Assim, faz todo o sentido respeitar as prioridades que são as do meu sistema físico-químico e as da minha unicidade: rotinar o egotismo é viver com sensatez. Não reconhecer causas que transcendam a inevitabilidade de quem eu sou, é pois, uma obrigação moral, no sentido em que a moral é um instrumento de sobrevivência. Conceitos como a Religião, o Estado e a Nação são fraudes fiscais, no tribunal de contas da mãe natureza. Eu só posso ser soberano sobre mim e só de mim sou súbdito. E o único imperativo categórico digno de ser respeitado é o que decorre das necessidades da minha fisiologia. A individualidade, a singularidade, a consciência identitária de que só estou ao serviço de mim, esse sim, é o caminho para a redenção.
O livro foi, obviamente, proíbido e escondido e esquecido e amaldiçoado e ridicularizado e queimado nas fogueiras dos salões onde se reunia a gorda elite intelectual do velho continente. Gente ilustre que o leu, como Joyce, Pound Ou Miller, não falam dele nunca. Freud - que muito lhe deve - renega-o. Nietzsche que lhe deve quase tudo - esquece-se dele. Marx e Engels precisaram de 300 páginas de intenso fluxo invectivo para combater o pequeno rebelde. Darwinistas sociais e deterministas de toda a espécie fingiram que não sabiam da sua existência. Todos enfim se esforçaram por aniquilar a obra, e com tanto afinco o fizeram, que acabaram por imortalizá-la.
"O Único e a Sua Propriedade" é um tratado escrito e pensado em nome da liberdade do indivíduo. E foi por isso que incomodou tanto.