segunda-feira, setembro 05, 2005

Voando Sobre um Ninho de Corvos


(Original de 1993 em cinco posts)
POST TERCEIRO

O caso não é para menos, diz-me a enfermeira Saudade, gaguejando um pouco nos últimos pedaços gordurosos da sanduíche verde fungo. Eu entretenho-me a discordar. A opinião do louco Marques sobre a higiene íntima da enfermeira Saudade não tem qualquer significado pela razão simplória de que os loucos não têm opiniões; são opiniões. Péssimas opiniões, fedorentas e equívocas opiniões. Miseráveis, andrajosas, infames e dolorosas opiniões. Os loucos são essas opiniões envergonhadas dos doutores e dos sábios, dos ministros e dos profetas, dos construtores de civilização, dos professores, dos bastonários, dos juízes, dos serviços de emergência médica e dos génios da psicologia e da psiquiatria e do diabo que os carregue. Disfarçando o arroto carbónico da laranjada, a enfermeira Saudade perde-se no abismo e objecta com despeito: mas se o menino é louco, a sua opinião também não tem significado. Sim, sim, o caso não é para menos. Vou apresentar queixa do Marques. Isto não pode continuar. É uma indignidade. Saudade, que me trata por menino com a condescendência de um inquisidor espanhol, não percebe que me calou com Euclíades, o cretense mentiroso que dizia a verdade. Todos os loucos são mentirosos. Eu que o digo, sou Louco. E porque sou louco, sou mentiroso. Logo, nenhum louco é mentiroso. Se fosse um corvo, voava para Creta.