domingo, março 05, 2006

À escuta das Vozes da Poesia Europeia - V

Celebrando a feliz edição da revista Colóquio Letras - que traz à estampa, em três cuidados volumes, as traduções que David Mourão-Ferreira fez da poesia europeia.

MARCIAL E A MÁ LÍNGUA.

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Nascido na Ibéria ao tempo insano de Calígula e chegado a Roma em pleno inferno de Nero, Marco Valério Marcial (86-103 D.C) testemunhou in loco toda a demência ontológica inerente ao início do declínio do Império, incluindo o grande incêndio, as orgias de sexo e morte, as intrigas da corte, os assassinatos políticos, o regabofe absoluto na moral e nos costumes, o descrédito dos rituais e das instituições e, claro está, o triunfo da má língua.
Poeta da calúnia, ácido comentador das fraquezas mundanas, Marcial é um sobrevivente: exibindo despreocupadamente flagrantes falhas de carácter, o poeta mostrou-se sempre servil e pressuroso para com os seus péssimos reis, mas apenas até ao momento da morte destes, altura em que tratava de lhes corroer e enxovalhar alarvemente a memória. Mantendo-se cuidadosamente silencioso sob a poderosa protecção de Séneca, enquanto duraram os tempos bárbaros dos imperadores com atraso mental, inicia a publicação dos seus imortais Epigramas apenas com a subida ao poder de Tito Flávio e depois, de Domiciano, sumos pontífices igualmente incompetentes, embora mais tolerantes para com bobos e trovadores. Marcial também não era reconhecido pelos seus escrúpulos: vivia literalmente à custa de patronos de quem dependia até no que se refere ao vestuário, traía frequentemente amizades e segredos pela pertinácia de um verso e não revelava qualquer vestígio de pudor ao escrever sobre a ausência de pelos púbicos de um nobre, os trajes de quarto de uma cortesã ou a veneranda impotência de um senador. Mais a mais, fazia questão de os referenciar, nos versos, pelos seus nomes próprios.
A sua reputação até poderá ser algo injusta, dado o contexto psico-social da época, mas a verdade estará concerteza no que nos deixa de literatura e essa é, em paralelo, ordinária e genial, vulgar e brilhante; formalmente perfeita (o epigrama é um género grego que exige altos recursos estilísticos e impõe um regime métrico de complexidade quântica) mas com virulentos ataques de mau gosto e de maus fígados.
David Mourão Ferreira respeita bem a memória polémica de Marcial e opta por traduzir precisamente alguns dos mais picantes e mal criados epigramas, onde porém se expressa em tom sublime o humor, o virtuosismo, o sensacionalismo colunista do pai de todos os poetas de escárnio e mal-dizer que a humanidade em boa hora soube parir.
Deixo-vos pois, com Marco Valério Marcial e o desvario estético do esgoto sociológico de Roma.


Passam por teus os versos que recitas,
e que afinal são meus.
Tão mal, porém, tu os recitas
que passam a ser teus...

Epigramas - Livro I


Se depilas o peito, as pernas mais os braços,
se teu pénis também em torno é depilado,
é porque à tua amante assim melhor agradas...
Mas em quem pensas tu, ao depilar o rabo?

Epigramas - Livro II


"Não custa nada, não é nada",
dizes-me sempre, Cina,
de cada vez que me fazes algum pedido...
Se não é nada Cina,
nada então te recuso, meu amigo.

Epigramas - Livro III


Já sessenta anos tem o Orador Cascélio:
e já começa a dar vidas de ter talento...
Quando será, enfim, um orador a sério?

Epigramas - Livro VII


De seu membro viril 'stá doente o teu escravo;
tu, Névolo, do rabo.
Adivinho não sou; mas presumo o que fazes.

Epigramas - Livro VII


Não te envio, Pontiliano, os livros meus,
para que tu, assim, me não envies os teus.

Epigramas - Livro VII


A Partos, a Germanos, a Dácios dás-te Célia;
nem os da Capadócia, ou Cilícia recusas;
vêem mesmo de Mênfis para te fornicar,
e os negros indianos, pelo Vermelho Mar;
aos judeus circuncisos tão-pouco o leito negas;
e à tua porta apeia-se o cavaleiro alano...

Então por que motivo, moça romana sendo,
só enfim não te agradam as piças dos romanos?

Epigramas - Livro VII