quarta-feira, março 22, 2006

À escuta das Vozes da Poesia Europeia - VI

Celebrando a feliz edição da revista Colóquio Letras - que traz à estampa, em três cuidados volumes, as traduções que David Mourão-Ferreira fez da poesia europeia.

AL-MU'TAMID, O REI POETA.

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Ao contrário do que se pode inferir pela legenda, Muhammad ibn 'Abbad al-Mu'tamid (1040-1095), o terceiro e último rei da dinastia dos Abadidas, governadores da taifa de Sevilha, foi um dos poetas mais importantes do Al-Andalus, tendo até ganho a reputação de militar moderado e homem santo. Na sua corte reuniram-se alguns dos maiores estudiosos e homens das artes da época, como o astronómo Al-Zarqali (Arzaquel), o geográfo Al-Bakri ou os poetas Ibn Hamdis, Ibn al-Labbana e Ibn Zaydun.
Nascido em Beja, aos treze anos comanda já um expedição militar que esmaga a revolta de Silves. O seu pai nomeia-o governador da região e é ali que al-Mu'tamid conhece o poeta Ibn Ammar. Entre os dois estabelece-se uma profunda relação passional. Em 1069 al-Mu'tamid sucede ao pai e uma das primeiras coisas que faz é nomear o seu amigo para vizir do reino. Ibn Ammar combate a seu lado na conquista de Murcia e al-Mu'tamid nomeia-o governador daquela região.
Até aqui, um conto de fadas gay. A partir de agora, uma novela gótica. Sucede que Ibn Ammar era um tipo desmedidamente ambicioso, frequentemente apanhado nas malhas da conspiração contra o seu rei. O canalha usaria mesmo as suas habilidades poéticas para escrever uma série de versos que ridicularizavam al-Mu'tamid e a sua amada, I'timad. Sem grande jogo de cintura para a lírica atrevida e já fartinho de um crápula daqueles, Al-Mu'tamid acaba por prender o ex-amante e, tomado por virulento ataque de fúria, entra na cela onde se encontra o malandro aferrolhado e mata-o com um machado. Zás, que nasce um poeta!
Em 1085,Afonso VI de Leão e Castela conquista a cidade de Toledo, vitória que inflinge um duro golpe no Islão peninsular. Cinco anos depois, o costumeiro aliado de al-Mu'tamid nas guerras que se sucederam, ibn Tashufin, não se limita a repelir os cristãos, mas aproveita também para anexar os taifados da península. Al-Mu'tamid é feito prisioneiro e desterrado para Aghmat, perto de Marráquexe, onde passará o resto da sua vida dedicando-se à actividade poética.
David Mourão Ferreira traduz porventura o seu poema mais célebre, lindíssimo tratado lírico e verdadeiro testemunho do apogeu cultural (e lúdico) de Silves.

EVOCAÇÃO DE SILVES

Eia, Abû Bakr, saúda os meus lares em Silves
e pergunta-lhes se, como penso,
ainda se lembram de mim.

Saúda o Palácio das Varandas
da parte de um donzel
que sente perpétua nostalgia desse alcácer.

Aí moravam guerreiros como leões,
e brancas gazelas
- em que belas selvas, em que belos covis!

À sua sombra, quantas noites passei
com mulheres de quadris opulentos
e de aparência extenuada!

Brancas e morenas
provocavam-me na alma
o efeito das espadas refulgentes
e das lanças escuras!

Quantas noites passei,
deliciado, numa volta do rio,
com uma donzela cuja pulseira
imitava a curva da corrente!

E servia-me vinho do seu olhar,
e o vinho do jarro,
e outras vezes o vinho da sua boca.
Assim passava o tempo!

Feridas pelo plectro,
as cordas do seu alaúde faziam-me estremecer,
e era como se ouvisse a melodia das espadas
nos tendões dos inimigos...

Ao despir o manto descobria o corpo,
florescente ramo de salgueiro,
como o capulho se abre
ao exibir a flor...