quinta-feira, outubro 26, 2006

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Quando o porteiro me inspeccionou com sentido de comiseração e se permitiu, amavelmente, a liberdade de fazer notar que me achava com cara de cavalo cansado, expressão que não recusei - este senhor porteiro possui em terras remotas do Alto Minho uma mão cheia de éguas e um esplendoroso par de garanhões, pelo que sabe muito de cavalos cansados - assenti, deixei baixar as olheiras sobre o rosto pálido e admiti o óbvio.
- Foi de facto uma manhã de cão, meu amigo, um dia para assinalar no calendário com uma grande e pesada cruz.
Tinha amanhecido com chuva por entre um cinzentão frio e esfarrapado que a metereologia da TV garantia manter-se sem esperança de tréguas. Nada tinha corrido bem nesse dia. Despertei ainda chocado com o deplorável espectáculo com que o glorioso nos tinha flagelado na véspera, zangado comigo e com o colchão e com a exiguidade da casa-de-banho e com a cor dos azulejos. Golpeei-me com a porcaria da gillete mais fiável do mundo e confrontei-me com a exigência de empacotar, de uma dura assentada, os comprimidos para a tensão arterial, a circulação e o reumático - imposição de ritual satânico, pouco menos que alucinogénica, com que enfrento a precaridade de um novo dia, uma vez mais agravado pela recusa de um trânsito intestinal decente.
Verificada, por entre uma expressividade de palavrões, a insólita inexistência do descafeinado com que habitualmente empurro a diabólica composição, seguiu-se a dramática constatação da falta de cigarros com que sempre combino e combato, cinicamente, a feroz rotina dos quinze comprimidos diários.
Restava-me agora a dura prova de enfrentar, já derreado ao peso de uma derrota anunciada, o carão granítico da médica de família, uma coisa de bata branca, de peito esquecido em casa, lisa como uma tábua de engomar, inquisitorial, sem lábios e de percetível cheiro a formol. Esperava-me para uma consulta que não solicitara, que me era imposta pela força tirânica da agenda de sequência clínica, incontornável, com a qual mantenho guerra aberta há 12 anos, pelo menos. O chaço não pegou e, a praguejar maldições, lá arranquei para o Centro de Saúde da área de residência, empunhando um chapéu de chuva que o meu primo esquecera lá por casa, por ocasião de uma recente jantarada.
Encharcado, cabisbaixo, entalado no desconforto de uma oscilante cadeira da gasta sala de espera, aguardei o chamamento que viria com a costumada hora de atraso. Ocorreu-me na altura que havia esquecido a placa dentária. Óptimo. Iria oferecer-lhe o meu pior sorriso de sempre, bem aberto para sublinhar o bom dia sombrio na abertura de hostilidades com que normalmente a esquálida doutora inicia o estafado “então, como vai isso?” de circunstância, sem ponta de cordialidade, cheia de rugas da azeda disposição do costume, certa de que, no final, acabaria por perscrever a química habitual dos últimos 2 anos para a sustentação do estado geral do utente, definição para velhotes sem grande margem de sobrevivência, agora parece que um pouco mais agravada pelos cortes do orçamento da Saúde, segundo o último caderno de encargos a observar severamente em nome da contenção das despesas e, sobretudo, o inesperado aumento da longevidade dos beneficiários de provecta idade.

Chegada enfim a hora da verdade, entrego-lhe a longa lista dos resultados das últimas análises que me impôs por entre um sorriso de esperança que não classifico, obrigada pelas regras que compaginam o catálogo das inevitáveis chatices e em conformidade com a benevolente decisão superior dos senhores recentemente chegados ao governo destas coisas terrivelmente sérias da saúde pública.
Insinua o nasal marcadamente aquilino no velho processo do meu historial clínico, num estudo cuidado de um denso código de gatafunhos a descodificar por algum especialista maior, quando interessar à eventualidade da autópsia, e arranca com um suspiro sofrido o interrogatório habitual:
- E como vai essa micção?
- Mijo bem. Ainda não conspurco o tampo da sanita..
- O problema da próstata, segundo a análise, regista um aumento pouco significativo. Sem preocupações para já. Não sugere a aplicação da argália, por enquanto. Na sua idade, é um bom sinal. E o trânsito intestinal?
- Irregular, relutante, em esforço, sempre acompanhado duma intensa e incontrolada libertação de gases.
- É natural, na sua idade. Fadiga intestinal. Desgraçadamente não podemos lutar contra o tempo. É claro que há por aí uma enormidade de laxantes a que não devemos, no seu caso, dar a menor importância, de forma a evitar efeitos colaterais como por exemplo a criação de bolsas intestinais tipo estufa e flatulências muito desagradáveis. A tensão arterial está como sempre. Um horror! Por outro lado o seu problema de colonoscopia evidencia a partir do exame rectal um desenvolvimento incipiente de pólipos que a seu tempo observaremos com rigor no sentido de uma muito provável intervenção cirúrgica. No caso das artroses, embora dolorosas, têm tido o tratamento adequado e está nas mãos de um grande senhor. O Dr. Pimentão pode parecer-lhe um cómico mas é um professor de primeira linha. Fizeram-se já as punções que se aconselham para esse tipo de insuficiência mas, na verdade, não há recuperação possível. No que respeita às ancas, que lhe provocam crescentes problemas de mobilidade, de penosa incomodidade, dizem-nos as últimas radiografias que obrigam a uma dupla cirurgia de resultados sempre imprevisíveis, na sua idade. Bem vê, trata-se de uma justaposta disfunção das articulações laterais,acentuada por uma forte distorção espinal. Essa sua coluna é de chanfrar. Já experimentou o apoio de canadianas? Quanto à crise de soluços que por vezes o afligem em sequências de 2 a 3 dias, vamos tentar controlá-la com o “Protom”, uma bomba que tem apresentado excelentes resultados neste tipo de singularidades. Outro aspecto de relevo tem que ver com o facto de, com a sua idade, nunca ter tido uma dor de cabeça. É, na história clínica, uma impossibilidade. Vamos ter de submetê-lo a um TAC exaustivo para perceber esse estranho aspecto do seu enigmático metabolismo. Homem, na verdade o senhor apresenta-se como um notável compêndio de sobrevivência!
Temos agora o problema da circulação, que ganha de facto, e no contexto da sua respeitável idade, uma importância maior, associada que está ao nível do colesterol um tanto acima do normal. Vamos insistir na prescrição dos comprimidos habituais, estabilizantes cuja tomada, creio, observa rigorosamente. Neste caso, devemos estar atentos ao agravamento da esclerose múltipla, sempre de recear no desenvolvimento deste tipo de patologias.
No que se refere à evolução das operações a que se sujeitou oportunamente, carótidas e inguinais duplas, não se manifesta qualquer desvio periférico anormal, o que é excelente para a sua idade. As ocasionais e ligeiras dores na zona hepática de que se queixou são isso mesmo. Pequenas incomodidades ocasionais. Sem importância que suscite preocupações.
Para já, a leitura do seu último electrocardiograma revela apenas uma ligeira arritmia. Recomenda-se muita pantufa, esforços comedidos, alimentação cuidada, frugal, nada de fritos, enchidos, alcoól, tabaco e sobretudo - um aviso fundamental - a interdição de qualquer envolvência de carácter sexual sustentada por esses estimulantes que por aí são irresponsavelmente publicitados. Penso que, quanto a este assunto e dada a sua idade, o senhor não carecerá de outras explicações.
No que diz respeito à questão oftalmológica - essas cataratas que lhe foram diagnosticadas - como no que se refere aos dentes que lhe faltam, o Centro de Saúde não pode responder por absoluta carência de meios técnicos e competências adequadas. Note-se porém que uma mastigação deficiente, por ausência dos trituradores, pode induzir às dificuldades intestinais que já mencionámos. É uma questão que terá a ver com uma observação de polipectomia, no ângulo esplénico do cólon, também fora da nossa capacidade de intervenção.
Afora os aspectos de que tratámos, deve, apesar de tudo, sentir-se um homem inteiro. Um felizardo. São como um pero, muito embora aquela piada velha e relha, venerável citação de sempre: isto de viver acaba mal. Por isso, anime-se, vitamine-se e pense positivo. Vê como, por exemplo, demos cabo daquela última amigdalite que, na sua idade, é maleita de frequência pouco simpática?

Saído da reconfortante consulta, observo ainda a sala de espera repleta do costumado amontoado de velhas carcaças, arquejantes, babosas, espirrantes, descoloridas, numa sombria envolvência de resignação, na espera do favor de lhes traçarem apressadamente o receituário habitual que ameniza o caminho da estreita e dura vereda para o fim, após o clínico lhes fechar o processo, com a singileza do rótulo “procedimento habitual, sem alternativa ou recuperação provável”. Antes de sair de cena, registo o cartaz espalmado ao largo de quasi toda a parede do velório, num fundo de azulão forte:
ANTES DE ENGRAVIDAR FALE COM O SEU MÉDICO.
USE A CAMISINHA - SEXO SEGURO.
Havia ali um generoso convite ao revigorante milagre de viver.