terça-feira, agosto 28, 2007

Como naquele quadro do Hopper em que lemos sexo mas a palavra não é essa.

DEZ RELATOS DO ABSURDO COPIADOS DA VIDA E COLIGIDOS EM ANEDOTÁRIO - 1991/2002

Um. No cruzamento dos semáforos que apanho para sair do meu bairro costuma estar sempre um doido sinaleiro que manda avançar os automóveis quando cai o vermelho e insulta profusamente os condutores que arrancam com o sinal verde. Numa destas manhãs submersas o insano sinalético não compareceu no seu local de trabalho. Parei no verde, arranquei no vermelho e fodi o carrinho todo contra um autocarro.

Dois. Estou no segundo dia do meu primeiro emprego. No momento em que o chefe, pessoa muito educada, entra no meu gabinete para me cumprimentar, solto um violento espirro. A mão com que protejo o ambiente do cosmos de perdigotos é presenteada com uma virulenta, pegajosa e inominável mole de ranho. O chefe estende-me a dele para o cumprimento, sem reparar que o membro que pretende apertar traz agarrado um verme muco, de verde flourescência. Viro-me para o computador e finjo que não é nada comigo mas o bom do dr. insiste no cumprimento e fica, de mão estendida e paciente, na expectativa. E agora?

Três. Que horas são? Atendo o telefone e pergunto que horas são. A tipa diz-me que são oito e vinte da manhã e que está no aeroporto e que o bilhete de identidade dela ficou na minha carteira e que precisa dele para fazer o check-in e que eu tenho que levantar mas é o rabo da cama e levar-lho lá e que o avião parte às oito e quarenta e cinco. Desligo e visto umas calças que estavam no chão, pego na carteira e nas chaves do carro e corro para a porta e estou descalço caralho, estou descalço e são oito e vinte e três. Volto atrás, calço os chinelos e saio de casa, entro no carro e bute que já são oito e vinte cinco. Eu vivo em Benfica. Acesso à segunda circular entre o caos e a inconsciência, oito e trinta e três. Quando vou entre a Luz e o Colombo passo-me e desato a buzinar como se estivesse grávido ou anunciasse o armagedão. Resultou. Fodasse para aqui e anda com essa merda para ali e estou na Rotunda do Aeroporto às oito e quarenta e três. Já não dá tempo, fodasse, já não dá tempo e estou nas partidas internacionais mas de gaja nem vê-la. Oito e quarenta e oito. Abro a carteira, procuro, procuro e não encontro. Chegou a Zurique à hora marcada. Disse-me depois que se lembrou a tempo que tinha o bilhete de identidade junto com os documentos do carro.

Quatro. A malta foi toda em excursão de camionagem prometer e pagar as devidas promessas a Nossa Senhora de Fátima. Para lá uns pasteis de bacalhau entre a reza dos terços, uns padres nossos em favor do garrafão e outros tantos avés marias com arroz de tomate. Para cá seria o mesmo menu, não fosse o motorista ter adormecido em serviço e a desgovernada camioneta seguir abismo abaixo rumo à morte de todos. No gigantesco velório, o padre da aldeia que de um dia para o outro se tinha visto sem trinta e duas das sessenta e uma almas do seu rebanho, falou sobre os insondáveis desígnios de Deus, embora não se tenha pronunciado sobre a gratidão de Nossa Senhora.

Cinco. Eles conhecem-se desde que se lembram um do outro mas só começaram a namorar quando ele comprou um carro. Entretanto descobriram o crédito à habitação e casaram-se. Compraram logo uma televisão, um video, uma aparelhagem e a mobília de quarto. Os pais dela contribuiram com a mobília da sala e os dele ofereceram os electrodomésticos para a cozinha. Um ano depois já tinham um filho e dois automóveis. Passados uns tempos adquiriram um computador, uma máquina de Café Expresso e uma viagem às Caraíbas. Cinco anos mais tarde separaram-se por causa de um cão que tinham comprado no centro comercial. Pouco depois ela abandonou o cão para se recasar com ele. Fartaram-se de fazer compras pela net e como já não havia cão tiveram mais um filho, mudaram de casa, de automóveis, de mobílias e divorciaram-se de seguida.

Seis. O tipo tinha para aí uns cinquenta anos de uma existência sem vícios. Não fumava, não bebia, fornicava o pouco que é o normal para quem era casado há trinta anos e nunca foi às putas. Por medos da sífilis. Cedo se deitava e cedo se erguia, tinha cuidados com o sal e outras especiarias inconvenientes à vida saudável. Fazia umas corridas na mata, para se manter em forma, e morreu ontem com um cancro nos pulmões.

Sete. Trata-se de um daqueles jantares que acontecem para que um gajo saque uma queca de vez em quando: ninguém se conhece muito bem mas toda a gente espera foder. Por entre as conversas de circunstância e o bacalhau com natas vem o Artur Albarran à baila e claro, a má língua. E toda a gente maldisse o que tinha a maldizer até que alguém descobriu que a dona da casa tinha sido casada com o próprio e que a criancinha que já estava na cama era filha dele. A silenciosa anfitriã passou rapidamente às sobremesas e nessa noite, ninguém fodeu.

Oito. Vou pela rua abaixo e um filho da mãe que vem a subir vira-se para mim a querer saber as horas e eu digo-lhas. Ele olha para o relógio dele, corrige as horas que eu lhe disse que eram e continua calçada acima. E eu fico parado, estúpido, sem me lembrar porque raio é que estava a descer a rua.

Nove. Conheço esta matrona que correu com um marido que tinha porque:
a) O gajo não a fodia;
b) Tinha mau vinho e muita sede;
c) Já não havia comunicação.
Posto isto iniciou a sua vida de solteira, até que na terceira semana começou a sentir as cócegas viscerais da solidão. Fez muitos telefonemas, socializou muito, embebedou-se outrossim e recomeçou a fumar ganza. Quatro semanas mais tarde não aguentava mais, comprou um computador e ligou-se à web que é onde agora toda a gente se deve ligar. Não tinha o diabo acabado de coçar o seu único olho e já conhecera um potencial namorado no acolhedor ambiente de um chatroom erótico cheio de nível. Disponível o parceiro virtual, com celeridade o trouxe para a mais tangível das realidades domésticas, sendo que hoje tem um marido que:
a) Não a fode;
b) Tem mau vinho e muita sede;
c) Não comunica;
d) Vive à custa.

Dez. Um gajo perde o telemóvel. E, sem saber, apenas decidiu que o perdeu. Até que chega um dia, três telemóveis e alguns anos depois, que entra no sotão, abre o bau das ferramentas, retira a caixa do berbequim e lá dentro, metafísico, insondável e já sofrendo de desactualização aguda, está esse megafone portátil, desencontrado nos contratempos de um passado difuso. E que, como é claro, já não serve para coisa alguma se não para alimentar o Mistério.