terça-feira, maio 20, 2008

Estacionário.

Não ter nada que fazer, coisa rara e preciosa. Prémio dos deuses. Terra prometida.
Ficar a ouvir os pássaros e fazer o possível por descobrir um quantum de silêncio na tagarelice alada da planície.
Sentir o tempo, espesso, a escorrer por entre os dedos da alma e isso valer por uma década de cansaços.
Imobilizar o cérebro, desconectar os neurónios toxicodependentes da química do pensamento e libertar-me da consciência dos afazeres. O único afazer efectivo é o de suspender efectivamente a vida.
Não ter nada que fazer, ser livre da dinâmica dos deveres! Ser ignorante da entropia das obrigações! Estar à parte da azáfama dos imperativos, das premências, das necessidades, das solicitações. Ser supra numerário, marginal de taberna, desempregado, desperdiçado, inútil! Não há estética para além da estática nem ética que desvalorize a inutilidade. O que de melhor podemos fazer pelo mundo é absolutamente nada.
Não ter nada que fazer, quimera de príncipes! Ter vagar para atingir o nirvana da produção zero, consumindo apenas algum oxigénio, libertando somente um poucochinho de carbono - ser verdadeiramente ambientalista, ambientalista a doer como só um cadáver pode ser, isto é: no sentido translato. Ah, não me venham com encomendas, tarefas, desafios, procissões, campanhas, contratos, avenças, promessas para o futuro! O futuro que se dane, o futuro pode ir rebentar de infernos para o século quarenta e três, quero lá saber. Sim, quero lá saber! Não tenho filhos nem esperança. Não sonho acordado nem tenho tempo para aspirações de conselho ecuménico. Se o sol se apagar amanhã, dormirei mesmo assim virado para o meu melhor lado, quieto, calado, ressonando talvez uma oração ao altar sagrado da futilidade da vida. Se o petróleo subir aos 150 dólares, hei-de fazer mais ou menos os mesmos quilómetros curtos que me separam de lado nenhum. É verdade: não quero ir a lado nenhum em especial.
Ah, não ter nada que fazer! E voltar a lembrar-me de mim.