quarta-feira, novembro 05, 2008

Sou lúcido, como o Fernandinho.

"Merda, sou lúcido."

Não há nada de tão estúpido como um Dostoievski. A não ser um desgraçado que meta conversa comigo.
Não há situação absolutamente real que mais me aborreça e que mais me repugne que a senhora de idade que se vira para mim no meio da rua como se eu lhe fosse vagamente familiar, como se por momentos a esclerose lhe baixasse os instintos para me dirigir a palavra e comentar a criminalidade comum ou os Prolegómenos de Kant.
Esta gente que não é mendiga a valer, no sentido imediato, que não me dirige o discurso por normais tragédias de materialidade insolúvel, que não está a somar tostões para o cavalo, para a litrada ou para o mcdonalds; que não precisa do meu dinheiro, mas que precisa da minha atenção; esta gente que não está à procura de matar a fome ou o vício ou a loucura, mas que apenas se encontra na vida derradeiramente só, que sobrevive à superfície do planeta num desesperado estado de abandono moral e ético, que não tem um alheio ouvido zero que oiça as suas trivialidades sobre a segurança pública ou o idealismo alemão, esta gente equívoca e atrevida é que me deixa doente. Ponho-me a correr à frente deles como não me vêem a fugir de uma facada no 6 de Maio, onde volta não volta vou comprar 10 euros de ganza, com a naturalidade do turista de centro comercial. Tenho medo e raiva destas pessoas estranhas que decidem falar comigo a despropósito e é sempre a despropósito que um estranho pode tentar uma conversa comigo, que sou alérgico a estranhos, que não sou parvo nem romancista russo, aplicado (e romantismo, sim, mas devagar), que entrego, do bolso onde tenho menos dinheiro, uns desinteressados dinheiros ao pedinte, mas não dou troco nenhum à esmola do conversador.
Ora acontece que cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da baixa do mundo, este homem mal vestido da vida, pedinte de atenção por profissão, que se lhe vê na cara, que simpatiza comigo e eu não simpatizo nada com ele, que acha que tem a liberdade pestilenta de ser cúmplice com um tipo que não conhece de lado nenhum e que me confessa, num gorgolejar de corneta falida: "um calor destes em Novembro!"
"Um calor destes em Novembro!" é tudo o que é preciso para que eu entre em pânico. O que é que eu tenho a ver com a a temperatura e o mês deste gajo? Não quero realmente saber se ele tem frio ou calor ou se vai para uma manifestação em Bruxelas. Não, fodasse, tudo menos querer saber deste telejornal, tudo menos ter razão, tudo menos importar-me com a interpretação climática deste gajo x, tudo menos importar-me com a humanidade, tudo menos ceder ao humanitarismo!
Não gosto de quem não conheço. Cada vez gosto menos de quem não conheço. Quem não conheço é o inimigo dentro de mim e não acredito que seja possível ganhar uma guerra à conversa.
E não me queiram converter a convicção: sou lúcido. Já disse: sou lúcido. Irra.