quarta-feira, janeiro 07, 2009

Carta aberta ao Dr. Alfredo Barroso.

Lisboa, 7 de Janeiro de 2009.

Exmo. Senhor Dr. Alfredo Barroso;

Aceite desde já as minhas mais sinceras desculpas por fazer desta carta assunto público, mas compreenderá que já ninguém tem paciência para enviar correspondência pelos CTT. Faz-se hoje de tudo, nos CTT, excepto enviar correspondência. Mais a mais, desconheço o seu endereço electrónico e, convenhamos, para alguma coisa servirá um blog.

O objecto deste meu atrevimento relaciona-se com a sua intervenção de ontem, Terça-Feira, no Jornal das 21h00 da Sic Notícias. Logo no prefácio da sua sábia elocução protestou V. Exa. contra a intervenção das Forças Armadas Israelitas na Faixa de Gaza por ser - e eu cito-o - brutal, desproporcionada e carregada de oportunismo político.

Para rematar a tirada, responsabilizou, com a originalidade e a ironia que se lhe reconhecem, os serviços secretos israelitas pela criação do Hamas, acrescentando - permita-me - a já estafada analogia que responsabiliza a CIA pelos mujaidin e pelos talibãs e pela Al Quaeda (não fossem os americanos a primeira e última doença da Terra).

Ora, caro Sr. Dr., permita-me que conteste a sua tese que - francamente - não está à altura de um protagonista da democracia portuguesa e do seu perfil intelectual.

Comecemos pelo princípio: o de que a intervenção é condenável porque é brutal. Ora, perdoe-me, mas não sei se existe na história universal do ódio um conflito bélico que seja menos que exactamente isso. A Guerra é brutal, Senhor Dr. Alfredo Barroso. E é precisamente a tendência que o homem tem para a brutalidade que o leva à guerra. Não creio que um General, mesmo socialista, esteja preocupado com a brutalidade do ataque que planeia. Ao invés, a lógica de um exército em combate é a de provocar invariavelmente o máximo impacto no inimigo.

Por outro lado, parece-me também brutal a estratégia de despejar periódica, aleatória e impunemente uns morteiros nas cidades israelitas, mas - curiosamente - essa brutalidade já não faz o seu género. Quem sabe, colocará V. Exa. este facto na categoria dos actos de fé, e nesse sentido aceitáveis de acordo com a liberdade religiosa e de prática religiosa, cânone modelar da república segundo a Acção Socialista Portuguesa de que V. Exa. foi membro ilustre.

Queira considerar porém, que não será na Palestina do Hamas que vai encontrar as liberdades fundamentais que defende, mas sim em Israel, nação que apesar de ter origem numa promessa de Deus, constituiu-se como um estado laico, democrático e de direito.

Aliás, faz-me não modesta estranheza que sendo V. Exa. um campeão dos direitos humanos, das causas igualitárias, da promoção do papel das mulheres na sociedade e da defesa das minorias, seja solidário ainda assim com movimentos como o Hamas, cuja filosofia de estado, concepção sociológica e entendimento do género sexual não casam com os ensaios de Bertrand Russel ou os devaneios de Sartre, personagens que, bem sei, guarda ciosamente na sua biblioteca dos afectos.

Mas voltemos às suas palavras: a intervenção israelita na Faixa de Gaza é desproporcionada. Bom, com esta é que, devo reconhecer, o Sr. Dr. me deixou perplexo.
O Sr. Dr. acha talvez que o estado isrealita deveria combater a constante agressão que assola o seu território da mesma forma que este é assolado. Com uns rockets disparados à toa, de tantas em tantas horas, acertem em quem acertarem, com pausa para a sinagoga de uns e a mesquita dos outros. Com tolerância e savoir vivre. Caro Dr. Barroso, francamente, por muito menos do que acontece diariamente naquele bocado do Médio Oriente já rebentaram mais guerras na Europa que discórdias no Olimpo!

Mais a mais, parece-me uma máxima de primeiro ano de escola militar que a invasão armada de um território hostil deve ser considerada apenas quando existe uma desproporção favorável ao exército invasor. Quero dizer: acha que Hitler tinha entrado pela Polónia a dentro se não tivesse a certeza do desequilibro das forças em presença? E os ingleses, não esperaram pelo poder dos tardios americanos para libertar a França? Recuando no tempo, existia ou não uma diferença grande de número, preparação e equipamento entre os dois lados de Austerlitz? Decididos a terminar com os Tudor, não chamaram os espanhóis Invencível à sua armada? Mais para trás ainda: Alexandre chegou à Índia com uma brigada de valentes ou com o maior exército alguma vez formado até aquele momento no tempo? E de volta ao presente do indicativo, como é que responderam os russos ao patético episódio do Cáucaso? Com meios canhões? A desproporção faz parte da guerra e quando não há desproporção não há guerra: foi precisamente o equilíbrio entre duas potências nucleares inimigas que nos salvou a todos daquela que seria a última cena de pancadaria da história dos animais humanos.

Para fechar este parâmetro e numa palavra só, toda a desproporção que pode haver: Hiroxima. V. Exa. provavelmente teria preferido que os americanos invadissem convencionalmente o Japão, numa situação de equilíbrio de forças, mesmo sabendo que o imperador mandou armar a população civil e que as forças reservistas nipónicas contavam-se ainda às centenas de milhar. Mesmo sabendo que uma invasão convencional do Japão provocaria 10 a 20 vezes o número de mortos das duas explosões atómicas que fecharam a Segunda Grande Guerra. São opiniões, mas não tenho nesta matéria - devo confessar - grande respeito pela sua.

Quanto à questão do oportunismo político, estamos mais ou menos no mesmo ponto de desacordo. Não vejo novidade nenhuma ou qualquer anormalidade moral no facto de um conflito bélico ter origem na conveniência política. Até porque os conflitos bélicos têm, fundamentalmente, origem no triunfo de uma ou várias de três grandes vilanias: a religião, a política e a economia. O Sr. Dr. não quererá concerteza insinuar que seria mais nobre invadir a faixa de Gaza por ganância. Ou por amor a deus. Como o território em questão não brilha de jazidas e o estado Israelita é laico, bem vê que outra razão não poderia haver para esta operação militar.

Mas deixe-me questioná-lo: não existe oportunismo político por parte do Irão, quando paga, doutrina, treina e arma as forças do Hamas? Forças que fazem das casas da população civil pontes de assalto provisório, para que depois lá fiquem os inocentes que serão feitos explodir pela retaliação israelita? Forças que doutrinam crianças no uso do ódio e da metralhadora? Agirá, nesta como noutras matérias, o estado Iraniano de forma politicamente desinteressada? Obviamente que não, mas não vejo no Sr. Dr. o mesmo zelo acusatório, facto que me confunde deveras, dado o seu reconhecido sentido ético e equitativo juízo de insigne humanista.

Tendo consciência que esta carta se alongou por demais, não posso por lealdade retórica ainda assim esquivar-me ao último contraditório. Falou também V. Exa. que a Mossad criou em hora desastrada o Hamas que agora combate. Assumindo esta afirmação como verdadeira e axiomática (V. Exa. deve seguramente dispor de privilegiados acessos a informação que não consta nas fontes acessíveis ao comum dos mortais); assumindo que não é só uma opinião da wikipedia, um wishful thinking ou um mito de telejornal; assumindo que a Mossad estaria interessada em envolver-se com a Síria, com a Arábia Saudita e com a Irmandade Muçulmana na criação de um movimento paramilitar de vocação radical islamita na Palestina; assumindo tudo isto com tranquilidade, pergunto-lhe: e então?

Abra comigo, mais uma vez - e ao calhas - o livro de história: Átila foi ensinado pelos romanos, militarizado pelos romanos e só não tomou Roma por causa da doença má que infestava a cidade. A vitória na Batalha de Lepanto resultou da união entre dois lendários inimigos: Filipe II e os Dodges de Veneza. Estes, por seu turno, azucrinaram várias vezes a coroa espanhola ao permitir (e incentivar!) a pirataria levantina sobre o comércio catalão. Os califados desavindos da Península Ibérica da alta idade média uniam-se para combater o infiel. Quando o infiel era batido, entretinham-se em batalhas intestinas. No mais contemporâneo conflito dos Balcãs, croatas e sérvios e bósnios e albaneses, cristãos e muçulmanos e ortodoxos, todos eles trocaram alianças a meio caminho e inverteram a direcção da guerra, no jogo da sobrevivência. Hitler é amiguinho de Estaline, até invadir a Rússia. O Czar Alexandre namorou com Napoleão até que lhe pareceu mais favorável romper com o Bloqueio Continental. Para as nove cruzadas marcharam inimigos antigos, abraçados num pacto de sangue. Alguns deles, mataram-se lá. Outros regressaram para se matarem aqui.

V. Exa. reconhecerá que podíamos estar aqui a arrancar belos exemplos do passado durante a eternidade toda. Por isso, não pasme por serem as alianças de hoje, ameaças para amanhã. O homem é um bicho inconstante.

E, de todo o jeito, dizer que o Hamas de 1987 é o Hamas de hoje, é mais ou menos equivalente a dizer que a Casa Branca de Ronald Reagan é a mesma com Barak Obama lá dentro.

Mas V. Exa. - desconfio eu - sabe concerteza de tudo isto. V. Exa., com a sua intervenção de hoje, demonstrou também algum oportunismo político. E o cinismo retórico sem o qual não teria porventura sido a sua vida marcante sobre o panorama da Terceira República. O que é natural. As pessoas são assim mesmo.

E mais não digo, por decência e economia.

Obrigado pela sua atenção e aceite os meus mais considerados cumprimentos.

De V. Exa. eterno adversário ideológico,

Paulo Hasse Paixão