quinta-feira, maio 14, 2009

A febre Scalex Tric.





Quinta-feira, Julho 29, 2004
Lembro-me de mim adolescente petulante que lia Aldous Huxley entre duas corridas do campeonato de Fórmula 1 em carrinhos da Lego. Lembro-me de mim muito aflito quando a namorada entrava pelo quarto a dentro (nesses tempos, a minha casa oferecia a privacidade de um café central) e me encontrava empurrando carrinhos de um lado para o outro, repetidamente, concentradamente, até decidir, na última volta, quem venceria: Alain Prost ou Alan Jones. Lembro-me das ameaças do género: ou brincas ou namoras. Lembro-me de, a mais das vezes, preferir o ActionMan ou as profecias do Huxley. Lembro-me de desenhar, muito à pressa, o logotipo dos MotorHead na parede (as paredes do meu quarto eram aguarelas da puberdade), mesmo a tempo de terminar a batalha de Inglaterra com os kits da Revell, muito mal montados. Lembro-me desses stukas, desses spitfires e desses Messerschmitt como se fosse hoje que mergulhassem em ataque terminal pelos céus do escritório. Lembro-me de sair mais cedo das matinés dançantes no Rock Rendez-Vous e no Acapulco para ir brincar às escondidas com os Matchbox e os Corgytoys. Lembro-me de pensar com triste lucidez que já não tinha idade para inventar patifarias dignas de Butch Cassidy, para simular o palco sonoro dos disparos de Lone Ranger ou do relinchar de Silver, o seu nobre cavalo branco. Lembro-me de olhar para a minha pista (um oito miserável, mas com contador de voltas e tudo) e como quem arruma os brinquedos para nunca mais brincar, concluir com desesperada clarividência que já não tinha infância para construir, todas as tardes, um admirável mundo novo.

Quarta-feira, Julho 21, 2004
Lembro-me dos tempos paleolíticos em que era criança e construía longas rectas, só para atirar violentamente os carros contra a parede da varanda. Lembro-me de misturar o comboio eléctrico da Lego com a pista de automóveis, os soldadinhos da Timpo, os bonecos da Airfix, os castelos da Knex e o feltro do Subutteo. Lembro-me de não ter consciência de escala e preocupações de realismo. Lembro-me de me divertir à grande e a sós, no meu quarto de filho único, construindo e destruindo mais sonhos que apenas os meus (sim, destruindo também os sonhos dos outros). Todos contra todos, os meus brinquedos banhavam-se em gloriosa cosmogonia para meu deleite. Só para meu exclusivo prazer de deus ímpio, alegre e despreocupado, entornavam-se exércitos em rios de sangue, defrontavam-se grandes clubes do futebol europeu em chacinas de verde, amigavam-se mouros e peles vermelhas, cruzados e cowboys lutavam lado a lado contra o Afrik Corps, enquanto do quartel dos bombeiros da LegoVille saía uma brigada para apagar o incêndio que teria deflagrado algures, na sala de jantar.
Lembro-me de queimar - ligeiramente - um dedo no motor de um carrinho de pista. Lembro-me de pensar que os motores de carrinhos de pista que aquecem ao ponto de me queimar - ligeiramente - o dedo, são a coisa mais prodigiosa da criação toda.

Quinta-feira, Janeiro 06, 2005
Devo dizer que tenho 37 anos, 80 quilos, falta de cabelo e que sou um chato. Devo dizer que me pesam bem mais os 37 anos que propriamente os quilos/libras a mais no comércio da existência. Devo dizer outrossim que gosto pouco de infantilidades, imaturidades, ingenuidades e enfermidades do género que evidenciam certos adultos para os quais não tenho a mínima paciência.
Dito isto, tenho que confessar que sou uma criança. Sou uma criança porque ainda paro nas lojas de brinquedos e ainda faço aquele ar de puto guloso (a que a minha mãe não resistia) perante o banquete lúdico na paisagem. Sou uma criança porque ainda não sei de melhor programa para depois de um jantar de Sábado entre amigos que o magnífico privilégio de poder ir brincar com uma pista Scalextric a sério. E, por obra e graça dos deuses e do meu amigo Jaime Filipe, eu tenho uma. Tenho uma pista de carrinhos, senhores! Com automóveis lindíssimos do WRC, do GranTurismo de resistência e da DTM. Com boxes e mecânicos e fotógrafos e directores de corrida e espectadores. Com partida Les Mans, cronómetro aos centésimos, punhos Pro, base de relva simulada, escapatórias por todo o lado, pontes várias e cruzamentos perigosíssimos!
Psicólogos de todo o mundo rapidamente me enviariam para a Clínica dos Chalados Mor, quarto 33, gente sensata de todos os quadrantes genéticos dir-me-á: mas estás burro ou falta-te a bolha da razão? Estarão certos uns e outros. Persistirei porém no delírio: estou quase a comprar uma plataforma de condução (com banco desportivo) para curtir com realismo apurado o ColinMcrae 2005 que me proporcionam os magos da CodeMasters e os génios da Playstation. E é uma questão de tempo para ver se arranjo um Subutteo como deve ser. Com holofotes, bancadas, banco de suplentes e tudo!