segunda-feira, julho 27, 2009


Quarta-feira, Novembro 29, 2006



Sobre as virtudes do dentífrico.

Imaginem a vida sem pasta de dentes. Imaginem um mundo ao tempo em que se lavava a boca com urina. Os sorrisos castanhos das damas aliviavam aos cavalheiros as permanentes dores da putrefacta e generalizada cárie dentária. Trocavam-se alvarvemente beijos fétidos e as artes da conversação dependiam sobretudo da técnica utilizada para evitar o fedor do interlocutor. Durante séculos e sobre séculos o perdigoto foi um agente tóxico, o escarro trazia as sete pragas do Egipto e a pastosa substância da ressaca ficava na boca dos homens, alegremente, pelo dia a fora. Foi assim até há pouco mais de 150 anos. Lavavam-se os dentes com raízes e mijo, com carvão e giz ou não se levavam os dentes de todo. Imaginem isto. E agradeçam aos deuses por William Colgate.

quinta-feira, julho 09, 2009


Sexta-feira, Outubro 28, 2005



“Escrevi a abertura da Gazza Ladra na véspera da noite de estreia, num sotão do Scala, onde fui fechado pelo director. Seja a presença do copista que espera ansioso pelo trabalho ou o choramingar do empresário que puxa pelos cabelos, nada potencia a inspiração como a necessidade. No meu tempo, todos os empresários de Itália chegavam carecas aos trinta anos.”

GIOACHINO ROSSINI, o mais conhecido e popular compositor da transição entre os séculos XVIII e o XIX - e entre o iluminismo e o romantismo - está hoje reduzido à categoria de autor menor. Ouve-se pouco, fala-se pouco dele, é ausente nas colectâneas para as massas e persona non grata nas recensões dos eruditos.
Tratando-se este lamentável facto de uma injustiça de séria gravidade epistemológica, não deixa de ser fácil de entender. O triunfo da escolástica germânica sobre a arte da ópera, que se iniciou fundamentalmente com a Flauta Mágica de Mozart, e ao qual o próprio Rossini assistiu, como contemporâneo de Beethoven e Wagner; e sobretudo a sua condição de performer de massas (a ópera não era um discurso de elites na Itália oitocentista), retiraram-lhe o devido quinhão na aritmética da eternidade.
A história da música dita Clássica é feita por Paleontólogos do Contraponto, arqueólogos da Harmonia e antropólogos do Dó Menor. Gente, enfim, que não consegue compreender a importância da música como alimento espiritual dos povos nem quer saber da força vital que flui no mainstream sócio-cultural da história. Para estas borolentas baratas de biblioteca, que vão ao Fidelio de cartola e cerimónias - solenes como quem nem gosta de música - é inimaginável a plateia de uma representação de La Pietra del Partagone, que vibra de sapateiros e chulos aos pulos, de prostitutas e proscritos aos gritos, de bêbados e bandidos aos gemidos, de gargalhadas e pateadas, de aplausos mal criados e assobios a fervilhar. Rossini não escrevia música para os deuses, nem para os reis, nem para os filósofos. Não estava preocupado com os caprichos dos príncipes nem com os gostos das cortes. Sabendo bem da alegria da música, o grande mestre da Ópera Buffa propunha intensidade, ritmo, eloquência e entertenimento, para todos.
Não que lhe faltassem os argumentos dos predestinados, não que lhe pulsasse débil a veia dos virtuosos. Rossini produzia música orquestral prodigiosa a um ritmo desenfreado: a partitura do Barbeiro de Sevilha saiu-lhe em 15 dias e, entre 1815 e 1823, o Mestre escreveu 20 das 40 óperas que compôs durante a sua vida, a maior parte das quais verdadeiras obras primordais do talento humano e, quase todas, escritas a bordo de uma carruagem, num quarto de hotel ou sobre a mesa de uma estalagem. Herdando a vocação cosmopolita dos seus pais, Rossini desmultiplicou-se em viagens, concertos e encomendas por toda a Europa, procurando conhecer pessoalmente todos os que admirava, dirigir todas as orquestras de renome, estrear em todas as salas míticas, levar a sua música a todos os que a soubessem apreciar.
Vítima frequente da má-língua, Rossini é acusado de plágios e repetições, fórmulas e pastiches, truques e tiques. Na verdade, não era raro transferir áreas e catavinas de uma ópera para outra. Mas, senhores, como é que julgam que foi possível a Bach compor uma cantata por semana, nos velhos e atarefados tempos de Leipzig?
E que raio fazia Haendel, quando lhe faltava o tempo para cumprir com as solicitações da freguesia?(Seja como for, nem toda a gente tem que ser deus como Mozart, que escrevia ópera italiana dentro dos canônes italianos e ópera alemã dentro dos canônes alemães, sem repetir uma oitava).
Conta-se que, apresentado a Beethoven - de quem era grande admirador - terá sido cumprimentado por este com alguma frieza, sendo congratulando pelo Barbeiro de Sevilha mas com a gentil recomendação de que não criasse Ópera Séria, para a qual "os italianos, por condição, não têm qualquer talento".
Humildemente, Rossini assentiu, agradeceu o conselho e, de uma forma geral, até o seguiu. Mas para mim, porém, La Gazza Ladra continua a ser uma obra bem mais inspirada, e de conteúdo onírico bem mais feliz, que qualquer uma das severas e punitivas partituras de todos os Wagners que andam para aí há que tempos a castigar a sensibilidade ocidental.



La Gazza Ladra - Abertura