quarta-feira, julho 20, 2011

O Testamento

POR ARTUR PAIXÃO

Serafino Condesso, natural de Bordaleja de Baixo, portador do B.I. 222771, casado, em pleno uso das suas faculdades mentais, declara como é de usança e seu direito, expressar as suas últimas vontades, porque não tarda um fósforo estão por aí os abutres do costume para medir o caixote que a coisa está mesmo por um fio, o que, francamente não me chateia mesmo nada.
Estou farto de reumatóides, artroses, artrites, dificuldades respiratórias, prisão de ventre e uma outra data de chatices que me injectam e cápsulas esquisitas com que me atulham as goelas já faz uma quantidade de luas e suas fases. Recuso-me admitir mais clisteres, transfusões de sangue e, sobretudo, aquela maldita vara que segura o saco do soro.
Assim, cedo a quem interessar a Leopoldina, minha consorte, sem quaisquer condições, bem como a minha sogra, veneno puro, velha gaiteira de costumes inclassificáveis. Em pleno uso dos meus direitos de cidadania como claramente determina a Constituição, lego parte do jardim da minha freguesia, urinol incluído, um décimo da sua superfície a bem da comunidade porque, se bem entendo, é espaço de minha e vossa propriedade. Ao Tesouro Público, aos glutões da Fiscalidade que sempre ignorei, deixo-lhes gostosamente a hipoteca a que não liguei peva e, evidentemente, os quinze ou vinte IRS por liquidar. Dos poucos terrenos circundantes do casebre, aproveitem os rabanetes e as urtigas que dão excelentes sopas.
À Nação, enquanto isso mesmo, à politica e aos Srs. Políticos que a vão destruindo pedra sobre pedra segundo li no jornal O Diabo até ao último pelintra, não deixo coisa nenhuma senão as pesadas despesas de que haverá gordo registo nas contas finais do hospital.
Órfão e sem descendência – A Leopoldina é uma ribeira seca conforme foi certificado cientificamente – resta-me um monte de ossos e um canto do olho que vislumbra, ainda, o excelente par de mamas da enfermeira Adozinda – que Deus a proteja – que se vai arrastando em torno da minha maca com sofrida ternura.
Ao meu único primo, o Anacleto, deixo-lhe a incumbência de liquidar as últimas quotas ao Bordalegense que não satisfiz por absoluta insuficiência de fundos como justa compensação dos dinheiros em que não pus o olho aquando da última poda de que me encarregou e também como paga das indecências que acamou com a Leopoldina enquanto me derreava a cavar-lhe a vinha. Não deve ter safado um único cochicho de prazer, o coitado, com aquela espécie de vagem seca, mas cá se fazem cá se pagam.
Não interessará a ninguém mas deixo, contudo, o testemunho da minha miserável incapacidade de ter sido alguém – dizem que por ter tido convulsões em pequeno e muita tosse convulsa - não passar duma besta quadrada, não ter sabido amar senão o meu gatito a quem a Leopoldina já deve ter torcido o pescoço e não entender isso que tanto ouvi dizer que a vida é bela quando em todo o tempo sempre me senti uma inutilidade, um tronco nodoso à deriva na Ribeira Grande.
É verdade que vivi alguns pequenos prazeres com a boa da D. Felismina na vacaria onde me pedia para a ajudar a mungir a Florbela, um amor de vaca tal qual a sua dona e o pôr do sol da ponta do casebre enquanto me regalava com uma lata de sardinhas com o gatito e um garrafão de tinto verde que não paguei ao Ti Timóteo, que certamente não vai ralar-se um copo que seja com o desaforo.
Vêm aí os Srs. Doutores, solenemente cabisbaixos para o que deve ser o seu último veredicto. Vou fazer o impossível para lhes abrir um sorriso amigo, grato com as atenções que me dispensaram apesar da imposição dos malditos clisteres.
Por último, ficaria também muito grato a alguma boa alma que fizesse o favor de repor num dos oratórios da capela de S. Gervásio uma imagem barroca que dali subtraí sem intuitos criminosos, num momento de devoção inexplicável que o patrono da freguesia de certo me perdoará e a quem prestarei contas senão já saldadas.
Devem existir ainda alguns trocos debaixo do meu travesseiro que gostava fossem entregues aos coveiros. Isto se a puta da minha sogra não os trocou por tinto do Dão por que sempre manifestou comovente predilecção.
O porteiro do hospital, o Sr. Gamito, um gajo impecável e a querida mulher da limpeza fizeram-me o subido favor de testemunhar esta tristeza por obrigatória e estúpida exigência legal. Assina Serafino Condesso que vai desta para melhor, ex-vassoureiro da Junta de Freguesia de Bordaleja de Baixo, com todo o respeito pelo Sr. Presidente da mesma, um péssimo cantoneiro mas um copo do antigos.