domingo, janeiro 08, 2012

Francis Albert Sinatra

I've Got You Under My Skin | Frank Sinatra | Live at Madison Square Garden | 1974

POR ARTUR PAIXÃO

Meu grande amigo ignorado no teu espaço e no meu tempo, pelo menos desde a minha juventude que ditou uma admiração que permanece, inquebrável, e empatia para todo o sempre. Será um tanto meloso mas não retiro uma vírgula.
Enquanto arrumo estas linhas, tenho em fundo essa voz, confundida no imenso caleidoscópio da elegância com que sempre te exibiste nos palcos do mundo, demasiado pequeno para ti, bem sei, excepto no Porto, onde tiveste de sofrer as agruras da fria nortada daquelas paragens que te lixou o brilho e uns dos teus 20/30 capachinhos, diria de muito bom gosto e indispensáveis para atapetar a mais notável das calvas de pelo menos 50/60 anos de inigualável actividade, por entre uma chusma de medíocres danados por te chegar aos calcanhares. Com algumas excepções que acompanhaste sem vedetismos ou arrogâncias, que dispensavas generosamente. Aliás, era suficiente a tua presença. Única.
Nos meus 80 anos vida, calcula que mantenho religiosamente arrumados pelo menos 60 dos teus - parece que se diz - “long-plays”; eu que tenho grande dificuldade em distinguir o inglês do javanês; aqueles em vinil que podiam servir de tampa a uma terrina de amassada de torresmos, e agora que te revivo diariamente tenho para aí uma sacada duns bons 50 quilos de cassetes e CD´S que não faço ideia de como compartimentar em termos de respeito dado que não disponho de espaço no cubículo em que me arrumo com um quarto, exígua cozinha para trabalhar uma fritura de migas e uma pia medieval para os despejos que adivinhas, por outro lado não é concebível arrecadar parte do teu imenso espólio sob o miserável catre onde alinho, pela noite, os ossos enquanto te oiço até cerrar as pestanas e sendo tão leves, à parte a tua voz, é sempre um testemunho pelo tanto de belo que nos deixaste. Neste exacto momento ouço o dueto com o também inesquecível amigo, o Sammy Davis. Era assim um bocado para o torradinho e vítima dum ligeiro estrabismo que, por sinal, lhe ia muito bem.
Tiveste momentos inesquecíveis com amigalhaços da maior de que não esqueço, por exemplo, o dueto com a tua filha. Uma efeméride que te honrou e constitui uma afirmação de amor filial que te enriqueceu, dado que nesta questão de amores nunca foste constante, pelo menos aos duros que nunca chegaram ao fundo da tua sensibilidade ou jamais te conheceram de facto, personagem à deriva de permanentes solicitações com que foste confrontado sem defesa possível, especialmente após as noitadas de outra galáxia em que te entregaste, antes e depois à embriaguês da Ava Gardner e depois mais esta e aquela e mais outras, não importa se antes ou depois duma copaneira de marca.
Estou certo que agiste sempre a contento com ou sem capachinho. Com ou sem acessórios não se fez o homem que foste. Essa é também a opinião da minha sogra, uma senhora de critica severa muito respeitável.
Diz-se que desfrutaste dum bom empurrão da rapaziada da Máfia e de outros grupelhos de muito má reputação. Mas não importa se os usaste ou foste usado, é perfeitamente irrelevante. Porque no fim, o que fica é a Voz, a história, o grande senhor.
Declarou-se agora que encarnaste um filmezeco pornográfico num desses pasquins ordinários, segundo eco duma biografia não autorizada, de há uma catrefa de anos, em que desempenhavas um viril “O homem da Máscara Negra” por uma miserável retribuição de 70 e poucos dólares numa situação pouco credível de penúria. Esquece. Lembras-te da tua inolvidável interpretação no “Até à Eternidade”? foi mais do que a tua inteira remissão.
Lembro-me que quando da minha juventude também participei numa cena não muito edificante com uma senhora de muito traquejo com uma rabadilha como que movida a pilhas extras fortes que me preparou, com carinhoso profissionalismo, um montão de indecências que não me fazem corar um bocadinho e, antes me marcou para cometimentos que me deram carta de alforria e fez subir a fasquia da minha reputação um bom par de patamares. Tudo a troco de cem paus o minuto.
Estou agora a ouvir-te no “L.A. Is My Lady” em fundo. Segue-se a espantosa mistura com o bom do Jobim sobre a garota de Ipanema, recordas? que bateu no fundo à dureza do calceteiro e do mais empedernido estivador. Fica para a eternidade, garanto-te com a chancela da minha sogra e até do ordinário do meu senhorio.
Também memorável aquela desgarrada com o Tony Bennett.
Apreciei a tua recusa de te fazeres ouvir com aquele palonço do Elton Jones. Subiste muito na minha consideração pela tua indisponibilidade para emparelhares com esse fedelho contra-natura, mesmo tendo sido assegurado que não estaria a menos de 20 metros de distância da tua insigne figura, por providência cautelar. De facto, seria desastroso embarcares na abertura do espectáculo com a balada da bela e do monstro como essa figurinha ridícula sugerira.
Não há espaço para uma referência mais ampla da colossal discografia. Mas não queria deixar uma homenagem sentida àquele miúdo, um tal Robbie Wiliams, pronto para uma porta escancarada para o sucesso, que no circunspecto Albert Hall de Londres, no decurso dum inesquecível serão, apoiado pela magnífica Orquestra Sinfónica de Londres, a certo tempo, iniciou ele próprio o teu espantoso My Way - diz-se aqui, “À Minha Maneira”, rodeado dum friso de garotas do tipo “agarrem-me, por favor segurem-me”, e interrompeu-se de súbito para te projectar num ecrã gigante para terminares a canção por entre um silêncio mágico, comovido, para depois rebentar numa imparável explosão incontida de emoção. Inesquecível! Mora naquele rapaz um respeito muito grande e um seguidor absolutamente fiel.
Devo dizer-te, que nessa mesma linha e saudade, por alguns restos de noite já com uns abafados no saco a caminho de penantes, cantarolo-te, tentando comedidamente gingar à tua maneira inigualável, o que acaba em sérias dificuldades para acertar com a chave da porta e um significativo olhar de reprovação da consorte. Incompreensões, 'tás a ver?
Não é por acaso que alguns estarolas aqui do Bairro me chamavam o Sinatra de faz de conta, agora já não, que perdi o pio.
Os fados não permitiram que ao menos por um fugidio momento nos cruzássemos para te homenagear ao menos com uma taça de Esporão de reserva, um espanto do nosso Alentejo, estendendo-se por uma planície de sonho, de paz e muita bolota, qualquer coisa como um Paraíso meio adormecido que os teus concidadãos de Nova Iorque, cegos de tanto néon, nunca entenderiam mesmo antes de se encharcarem com as suas discretas botijas de Whisky de bolso. Aliás nem saías daqui por uma boa temporada, se te fosse dado degustar um leitão assado na Bairrada, apoiado num espumante de tarar num pequeno lugarejo do nosso jardim à beira mar plantado.
Estou próximo de ti porque por enquanto deves permanecer no Purgatório, na expectativa do julgamento final e aí não se dobram facilmente às brejeirices que te preenchem o canastro. Quando chegar o momento, com essa admirável dicção diz apenas, com humildade - Sou a voz. Não é justo julgar um artista da tua dimensão com o mesmo critério que usarão comigo, um simples funileiro reformado. E proclamar alto e bom som que estou e estarei sempre contigo. Se houver por aí malta do género Count Baisie vamos armar uma festa de estalo contigo.
Por último queria registar um apontamento que me escapou no “Até À Eternidade”, com um desenho sóbrio, brilhante, totalmente em contraponto com a esfuziante coreografia de, por exemplo, “Um dia em Nova Yorque” em que comparticipas com o Geny Kelly, dançando tanto quanto essa também inesquecível figura. Com todo esse talento, encarnavas o que quisesses. Até o Robin dos Bosques, excepto um regresso ao Porto.
Por fim, meu amigo Francis: quando eu também chegar por aí sussurra-me ao ouvido, se não for possível juntar essa flagelada multidão - diz-se por aqui que por aí são pouco dados a permitir o espírito associativo - “Nova Iorque, Nova Iorque”.
Entretanto fico-me, por agora, a reviver-te com o admirável Jobim e a espantosa Garota de Ipanema.

Garota de Ipanema | Frank Sinatra e António Carlos Jobim  | 1967