segunda-feira, julho 09, 2012

Uma sonata para HGWXX/7


POR MIKE BRAMBLE 

Florian Henckel von Donnersmarck. Por acaso puro, vi – e deleitei-me a ver – na passada quarta-feira um filme de um alemão. Pensado em alemão. Escrito em alemão. Falado em alemão. Com actores alemães. Não tinha essa necessidade, mas é também uma resposta a uma provocação do meu querido amigo Paulo Paixão, que sabe tão quanto eu o que gosto de alguns prodígios que a cultura produzida há vários séculos no actual território que se designa por Alemanha tem dado à degustação do Homo Sapiens.
Florian Henckel von Donnersmarck, portanto. Dirigiu e escreveu o guião, translúcido argumento de ‘Das Leben der Anderen’, traduzido para português em versão dual na tituleira: ‘A(s) vida(s) dos outros’. Saiu para as salas e anfiteatros em 2006, ano em que conseguiu ganhar em Hollywood o Óscar de melhor fime estrangeiro.
Não vou contar a história do filme. É tecnicamente impossível e seria um desperdício criminoso para os que tiverem a condescendência de me lerem.
Mas peço desculpa por tomar a ousadia de realçar alguns detalhes. Película em fotografia zincada a cinzento. Estamos em 1984, cinco anos antes da queda do muro de Berlim. O personagem principal Georg Dreyman (Sebastian Koch), dramaturgo, tem um amor intenso por uma actriz das luzes e da ribalta, Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck). Na RDA de Honnecker, são perigosos desviantes. Logo, a Stasi, excelsa organização propedêutica da moral e dos bons costumes, decide intervir e capitalizar nos pecadilhos de cada um (tipo NKVD, Securitate, CIA, FBI ou PIDE, vá lá). Coloca-os sob vigilância severa.
Entra em cena Hauptmann (capitão) Gerd Wiesler (Ulrich Muhe). E o seu superior Oberstleutenant (tenente) Anton Grubitz (Ulrich Tukur). A história é fascinante, não só porque está bem construída, bem filmada e superiormente interpretada, mas porque, percebe-se, acima de tudo, que emanou de milhares, dezenas de milhar de casos similares, humanos, pungentes, todavia já votados ao esquecimento da História.
‘Das Leben der Anderen’ é um libelo contra o oblívio e a obliteração. No irrepreensível ‘Diário Volúvel’ (Assírio & Alvim), um dos craques actuais da literatura não encastrável e não castrada, Enrique Vila-Matas, dedica-lhe uma merecida nota.
Num país de 17 milhões de habitantes, dizia-se que a percentagem de ‘informadores’, ou espiões, ou escutas, ou bufos, terá oscilado entre 200 mil entes até um terço do universo demográfico daquela ficção dos Sovietes.
Florian Henckel von Donnersmarck coloca livros de Brecht nas mãos de um dos esbirros, por vontade própria do mesmo, funcionário da soviética RDA. Suprema ironia. E a mudança acelera. A personagem principal acaba por escrever um livro em homenagem do seu perseguidor. Uma “Sonata para um Homem Bom”. Há quem diga tratar-se de um dos livros, que apesar de nunca ter sido escrito, é dos mais desejados dos leitores…Pois, pudera! Arriscaria também, eu incluso, que há muitos invejosos que gostariam de ter escrito tal enredo oculto.
HGWXX/7 ficou gravado a fogo na minha memória! Muitos anos depois de me perder com Kafka e Orwell, fiquei ainda a perceber, quão relevante poderá ser uma nave de traço industrial munida de equipamentos e funcionários-autómatos para descolar, em série, a vapor, cartas interceptadas antes de chegar ao destino. Sem laivos de ficção, com personagens tão reais como a própria vida, ou até mais.
Jacques Bonnet, no incisivo e delicioso ‘Bibliotecas Cheias de Fantasmas’ (Quetzal), assume, convicto: “A personagem não envelheceu desde que o seu criador lhe deu vida, ficou sempre igual para a eternidade”. Sublinha, para não termos a veleidade de equívocos ou subterfúgios: “E ao pegar no (ou nos) texto(s) em que ela aparece ficamos na posse de tudo o que o seu autor quis que soubéssemos dos seus actos, das suas palavras e, por vezes, dos seus pensamentos”.
‘Danke’, Florian e Ulrich Muhe, entre os demais contribuintes desta obra primorosa. Além de serem o epítome desta máxima, também na designada vida real. Depois do filme entrar em exibição, foram processados - judicialmente, diga-se - pela ex-mulher do segundo. Segundo consta, essa honorável senhora entregou à ditosa Stassi um ‘dossier’ de centenas de páginas a incriminar o actor, amigo do realizador, mas não queria publicidade gratuita… Mais um acto repugnável que originou uma obra de arte louvável!
Termino com uma citação de Proust, no incomensurável “Em Busca do Tempo Perdido”, escrito um pouco antes (!) do filme em apreço: “o elemento desconhecido nas vidas dos outros é como o da natureza, que cada nova descoberta científica meramente reduz, sem o eliminar”.