quarta-feira, maio 21, 2014

Poema do metal pesado.

"Na ponta de cada baioneta luzem os olhos de Kant."
Fernando Pessoa [António Mora]

Montado nos nervos do Bucéfalo altivo, seu primeiro escudo e derradeiro espadim,
Alexandre, grande, grave e persuasivo, arenga às tropas assim:
Hoje morremos, como soldados fraternos,
ou vivemos, como deuses eternos.
Ao júbilo gutural das fileiras, segue-se o estalar do metal pesado,
armas e armaduras que ressoam de bravatas e bravuras, lado a lado,
tenentes e praças num TONG-TONG de ameaças, percussão de plebeus.

O grito e o ritmo são música para os ouvidos de Deus.

Cipião africano encara Aníbal profano, já depois de lhe ter queimado a sal
a terra de Cartago. No olhar que trocam, carago, caberá o andamento marcial
da Nona de Beethoven. Pode continuar a combater até à eternidade Cipião,
mas Aníbal não.
A inevitabilidade da Segunda Guerra Púnica é de única verdade poética.
Não precisa de gramática nem tem que respeitar a métrica.

Rommel, a raposa, faz 50 panzers e um buldozzer com volkswagens e papelão
e Montgomery, no deserto da sua imaginação,
só vê blindados de metal pesado na cavalaria de cartonado.
Há nisto tudo uma ode romana de que Horácio seria talvez capaz
se não estivesse entretido com os genitais de um rapaz.
Há nisto tudo uma verdade nua crua cruel, feita de pólvora e estilhaços
e corpos aos bocados, decepados espalhados palhaços.

A guerra aberta, sem quartel, de todos contra todos e em cada um de nós;
a guerra total, absurda surda muda, cega e feroz;
a guerra-holocausto, atómica e pós-atómica, apocalíptica, fim da humanidade,
a guerra tem ainda assim poesia e verdade:
A infantaria do Condestável serve a um poema amável,
considerando a catana da cavalaria castelhana - metal pesado em blitz.
E não há nada de mais verdadeiro que o fúnebre terreiro de Austerlitz.

A guerra é mãe de religiões, deuses e profetas
e a constante musa dos estetas.
A recorrente hemorragia da batalha, a insistente razia da metralha
serve ao intelecto humano de acendalha:
foi com o trovar dos canhões, cuspidores de caos e desventura,
que o homem inventou e continuou a literatura.
Não fora a luxúria de Páris, e de Helena a beleza;
não fora a fúria de Menelau, e do infame Agamémnon a natureza;
que serviço prestaria à posteridade Ulisses, astuto e austero?
Heitor, desprovido da morte que Aquiles lhe deu (que lhe deu Homero),
é herói de grau zero.

Os grandes actores da história, por ordem aleatória, são ases kamikazes guerreiros:
Que triunfo para Churchill em tempo de cordeiros?
Que glória para César sem as suas legiões de fila?
Que memória de Esparta sem a morte farta na ponta da termópila?
Uma vez despojado de um egipto, que resta a Napoleão?
E se não tivesse dizimado até ao infinito, quem recordaria Gengis Cão?
Ghandi, o campeão pacifista, não seria artista para além de advogado sério
se os ingleses não tivessem inventado, com sangue derramado, o seu real império;
e o Ronald Reagan teria muito menos piada
se a outra metade do mundo não andasse armada
com uma Kalachnykov.

E, já agora, que faria Tolstoi a esta hora, sem um general Kutuzov?

Solimão e Ricardo, Átila e Marciano, Crasso e Spartacus;
boxers e templários, marines e mercenários, samurais e cossacos;
pattons múltiplos e wellingtons inconcebíveis de inúmeras e invencíveis armadas,
metal pesado trágico marítimo sacrossanto, em Lepanto as esquadras;
são os derradeiros, os verdadeiros guardiões da virtude.
E quem seríamos hoje na Europa, em Portugal, sem a firme atitude
do habsburgo imperial, quando o Turco às portas de Viena fez sala?
É vero facto, é verso lato que devemos a civilização à lei da bala.

As guerras púnicas e médicas, primeiras e segundas, jugurtinas e peloponesas;
as guerras civis e religiosas, mais odiosas, carlistas e camponesas;
as guerras de guerrilha, de fronteira, de conquista e feira, para lá do horizonte;
as guerras do ópio e do petróleo, as que pagam com o espólio aos bandidos a monte;
as guerras revoluções sovietes marionetes maria da fonte,
as guerras revoluções jacobinas, burguesas com guilhotinas,
independentistas e tribais, bolivianas, liberais e libertinas;
as guerras frias e as guerras de nervos, com meticulosos acervos de metal pesado,
são motores da epistemologia, arsenais de valentia para o alívio do pecado.

Há mais poesia na Legião Estrangeira do que versos na tradição de Hesíodo e mais
verdade em Dunquerque que na história universal das capas dos jornais.
É sobretudo o exercício bélico, pura ironia, que liberta os homens da lei da morte,
que eleva plebeus à aristocracia, último argumento da democracia entre o fraco e o forte.
A guerra corrige a cobardia com a coragem e a heresia com a cruzada.
E que seria de Camões, se não soubesse andar à porrada?

Haverá gesta mais perene, mais purificadora; haverá peregrinação mais redentora;
terão os deuses melhores planos, que uma guerra de cem anos?