domingo, janeiro 31, 2016

Aula de História com a Dra. Helena Matos.

A falência do modelo socialista – e ele tinha necessariamente de falir porque foi concebido para redistribuir a riqueza e não para a produzir – fez os socialistas não só descrer de Marx como, e esse é o nosso drama actual, fê-los regredir para Robespierre. Ver os actuais líderes dos socialistas portugueses a fazerem acordos com o BE ou os socialistas espanhóis a ponderarem uma aliança com uma criatura como Iglesias não é um problema político. É um problema civilizacional.
(...)
Desde os tempos de Robespierre e do seu Comité da Saúde Pública (o jacobinismo é indissociável de uma ideia sanitária da sociedade) que se sabe que os radicais, invariavelmente minoritários, conseguem de facto mandar porque os desmandos dos revolucionários são aceites com fatalismo quer pelos moderados, que lhes reconhecem uma óbvia superioridade política, quer por aqueles que num passado recente se destacavam a denunciar os abusos e os falhanços do poder conservador e que perante a pesporrência e a mediocridade dos revolucionários se calam. Uns temerosos. Outros cúmplices.


sexta-feira, janeiro 29, 2016

Sobre as origens sociais e políticas do crime.



Não vi a primeira temporada, mas esta série é qualquer coisa. Com a ambição crítica de The Wire, porém cedendo ainda menos ao factor entretenimento, American Crime discute problemas sociais e políticos de fundo com uma intensidade provocadora e dialéctica. Esta segunda temporada parece querer dissecar o fenómeno "rape culture", um tema quente no contexto das escolas e faculdades dos Estados Unidos. Esse parece ser o tema, de facto, quando vemos o primeiro episódio. Mas ao segundo, já todo percebemos que a ambição é outra. A ambição é retratar os conflitos ideológicos, psico-sociais e económicos do sistema educativo americano. O que é feito com sobriedade, profundidade e desassombro. Uma produção da ABC, criada e escrita por John Ridley, que está muitos furos acima da média.

Marco e Megyn.

That's my man.



Ao contrário do que actualmente acontece na Europa, a federação americana consegue ainda assim (e apesar do inacreditável fenómeno Trump) oferecer ao seu eleitorado excelentes candidatos a chefe de estado. Basta assistir a um debate para perceber isso, mas Marco Rubio é o melhor argumento a favor desta tese. Este rapaz faz política e diz a política como um senador romano. Muito jovem e ambicioso até à medula; esclarecido e corajoso; orador impressionante e ideólogo impenitente, o Senador da Flórida é, de longe, o melhor candidato do Partido Republicano. E está a sério na corrida pelas primárias, sendo um dos favoritos nas sondagens. Não acredito, sinceramente, que seja nomeado. Mas que dá prazer ouvir um candidato assim, dá. Poderoso.


 That's my girl.



Chamo a atenção da gentil audiência para este vibrante momento televisivo. Megyn Kelly, a super-estrela da Fox News, convida Michael Moore, inimigo público desta estação televisiva, para dez minutos de um diálogo explosivo. O simples facto de Moore ter respondido ao convite já é surpreendente. Mais surpreendente ainda é que o famoso iconoclasta da esquerda americana apresenta-se em estúdio como um fã incondicional de Megyn Kelly, muito por causa de uma querela que a jornalista mantém com Trump e que levou o candidato a não estar presente no último debate republicano antes das primárias começarem oficialmente, no Iowa. Vale a pena ver. A certa altura, a propósito do aparente desdém que manifesta consistentemente pelo seu país, Moore assume-se como um homem de relações de amor-ódio e avisa Megyn de que ela perceberia isso se um dia fosse jantar fora com ele. Megyn tranquiliza-o: "Não te preocupes. Eu nunca irei jantar fora contigo."
Esta rapariga manda uma ventania danada. E é um borracho de cair para o lado.

quinta-feira, janeiro 28, 2016

domingo, janeiro 24, 2016

Karaokeville.



The Neighbourhood, outra vez. Estou completamente apaixonado por esta banda. Não consigo ouvir outra coisa. E assim, vítima desta obsessão, vitimizo o blog, que passa a gira-discos-buraco-negro, facebook em onda média. Seja como for, esta é uma grande canção. E deixo um recado a quem não gostar dela: não se atrevam a levantar o braço. É que podem ficar sem ele.

Voto em mim.

Estamos todos de acordo: as presidenciais resultaram no nível zero da política. O José Manuel Fernandes, no seu estilo claro e lapidar, já disse o que era preciso dizer sobre a palhaçada, e eu só acrescento, humildemente, isto: pior que o Nódoa, reitor da sua mediocridade infinita; pior que a senhora Belém, vítima da sua insignificância tanto como do incomensurável cinismo de António Costa; pior que o rapazinho de rãs ou de rans ou de lá o que é e que nem merece o insulto que merece; pior que o triste circo disto tudo, foi a traição nojenta, manhosa, inqualificável de Marcelo Rebelo de Sousa, o palhaço-mor.
Corro o risco, como cidadão desta Terceira República, de acabar com o Nódoa na posição de Chefe de Estado. Mas corro esse risco com a maior tranquilidade que é possível a uma pessoa intranquila como eu sou intranquilo. Que se foda. O Marcelo não leva o meu voto nem que chovam gafanhotos. E se for condenado à humilhação e à derrota certa da segunda volta, ficarei até contente. Deus será grande. O deus do Antigo Testamento, claro está. Porque o deus do Testamento de Cristo estaria certamente pronto para o perdão. Eu não sou assim um gajo tão porreiro como isso. O máximo prazer que posso tirar destas eleições é o de Marcelo Rebelo de Sousa não chegar a ser aquilo que Marcelo Rebelo de Sousa sempre quis ser.
A derrota da estrelinha primeira entre todas as celebridades televisivas pode de facto - admito-o - ser também uma derrota para o país que amo. Mas, desta vez, vou ser radicalmente egoísta e teimar em recusar a ingestão do sapo mais indigesto da martirizada história de Portugal. Desta vez vou votar em mim. Não vou votar em branco, não vou votar nulo (deus sabe como me apetecia a caralhada), não vou votar em Marcelo. Vou ficar em casa a torcer pela decência que não há.

sexta-feira, janeiro 22, 2016

Selvagem. Mas nem por isso bonzinho.

Crâneo multi-fracturado de um homem de Naturuk - Quénia.

Desde que o tristemente célebre Jean Jacques Rousseau popularizou em má hora o mito do bom selvagem, há uma corrente de opinião entre filósofos, historiadores, ideólogos e outros sábios de algibeira que foi infestando a opinião pública e que defende com unhas e dentes a mais disparatada das teses: o sapiens, devolvido ao seu estado puro de caçador-recolector, seria um tipo feliz, livre e pacífico, em equilíbrio com o ambiente e com a sua condição pacata de mamífero errante. Teria assim sido a revolução agrícola, a sedentarização, a invenção do dinheiro e o progresso técnico que fizeram do homem um bicho adepto de porradas, quezilento, ganancioso e cruel. Não fora a enxada, a moeda e o astrolábio e seríamos todos uns gajos muito porreiros, mesmo.
Esta tese é ainda hoje defendida por imensa gente que tinha a obrigação de ter juízo e utilizada amiúde para explicar aos crédulos os males da colonização europeia dos séculos XVI-XIX e fazer pesar ainda mais o insustentável fardo do homem branco. Só para dar um exemplo de como esta abstrusa forma de pensar a condição humana impera ainda nos meios académicos, o recente "Brasil: Uma Biografia", cuja recensão crítica escrita para o Deus Me Livro já foi publicada aqui no Blogville, parte precisamente do pressuposto delirante que os brasileiros eram os mais felizes dos seres antes que os portugueses chegassem lá (tese tão idiota, mas tão idiota que dá vontade de rir).
É claro que a crença idílica e ingénua e completamente disparatada no mito do Bom Selvagem tem sido desmentida pelo bom senso e pelos factos históricos e arqueológicos vezes sem conta, mas talvez nunca como agora: uma equipa de paleontólogos descobriu no Quénia aquilo que são, indesmentivelmente, os restos de um campo de batalha com 10.000 anos. Trata-se de um verdadeiro massacre. Homens, mulheres e crianças jazem brutalmente dilacerados de todas as maneiras e feitios num showcase de violência absolutamente recordista. O paper, publicado esta semana na Nature, está aqui. Mas para quem não tem paciência para a densidade do artigo científico, a versão "readers digest" do El País serve muito bem.
Um trabalho para acabar de vez com uma das mais escandalosas fraudes académicas desde que Platão inventou o conceito de universidade.

quinta-feira, janeiro 21, 2016

As calcinhas da Marisa


POR MÁRCIO ALVES CANDOSO

Convém não ler demasiado depressa os textos que, supostamente, se citam. E enquadrá-los. Estive a ler um discurso de Marisa Matias - uma candidata simpática de uma ideologia antipática - em que às tantas a moça soltava o seguinte sound bite: 'A fauna humana divide-se em homens, mulheres e calcinhas, sendo que estes últimos são aqueles que gostam de tudo'.

Enfio a carapuça do candidato que apoio, Marcelo Rebelo de Sousa, percebendo perfeitamente que é a ele que ela quer adjectivar.

Ora bem. O epíteto tornou-se famoso entre as hostes literatas por graça do escritor angolano, de ascendência portuguesa, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido por Pepetela. Ele usa-o em pelo menos uma das suas obras, que é um dos seus livros mais recentes. Quem quiser vá ler, que a mim não me apanham a perder tempo com mais do que a sinopse da novela em causa.

Ao leitor menos avisado, os 'calcinhas' poderão ficar mal na boca de Marisa Matias. Ora se há homens, mulheres e... outra coisa, uma pessoa até duvida da Marisa. Mas não é nada disso. Os 'calcinhas', na tradição popular racista angolana, eram aqueles africanos mais inteligentes e letrados, por vezes assimilados pela civilização colonial, que se destacavam entre os outros pelos estudos e funções que ocupavam. O 'matumbo', nome porque era conhecido o indiferenciado indígena - algo assim entre o nosso bimbo e o parolo -, não gostava e invejava o 'calcinhas'. Claro que Pepetela, atacado pela entropia clássica do esquerdismo, que confunde a classe social definida por Karl Marx com a inveja e a maledicência - a coberto de ser um escritor 'popular' -, enviesou o 'calcinhas' de modo a que parecesse um lacaio do patrão. Um tipo que falava bem português, não raras vezes mestiço, que comia de faca e garfo - a sério, estas coisas contavam - e que andava... vestido de calças, era um 'assimilado', um tipo que negava a sua 'cultura' africana.

Podia Marisa ter estudado? Podia. Mas assim era 'calcinhas'. E ela não quer tal coisa. Valha-nos, ao menos, que Marcelo é letrado.

sábado, janeiro 16, 2016

Bum. Bomba.



The Neighbourhood. Uma banda que não é estranha ao Blogville. E que bomba loucamente. Esta musiquinha aqui, bom deus, até faz impressão na pele. Não há hipótese: quem não gostar disto ponha o dedo no ar (para ser decepado).

segunda-feira, janeiro 11, 2016

Ninguém vota no Marcelo.

POR MÁRCIO ALVES CANDOSO

Não há ninguém que vote em Marcelo. Ninguém. Foi essa a conclusão a que cheguei depois de uma vista de olhos pelas redes sociais.

Os maçons não votam em Marcelo. O tipo é católico, daqueles manhosos que até vão à missa. Os maçons votam quase todos em Maria de Belém, uns quantos em Sampaio da Nóvoa e imagino que sobrem alguns para Henrique Neto.

Os 'opus dei' não votam em Marcelo. O tipo é muito liberal, até nem se importa que haja uma lei decente sobre o aborto e pensa em primeiro lugar nas crianças, no 'affair' da adopção por homossexuais. Os 'opus dei' votam mais em Maria de Belém ou abstêm-se, enquanto fazem o sinal da cruz e se fustigam.

Os ressabiados de Direita não votam em Marcelo. O gajo anda a fazer muitas pontes à esquerda, a armar-se em consensual, e essa malta gostava mesmo era do Cavaco, tão ressabiado como eles e que puxava sempre a brasa para o Governo cessante. Os ressabiados de Direita abstêm-se, ou votam por raiva num outro candidato qualquer, de preferência um que não tenha hipóteses, como Henrique Neto ou Paulo Morais.

Os socialistas andam à nora para escolher candidato, mas certamente não votam em Marcelo. Aproveitam para por de pantanas ainda mais o albergue espanhol em que se transformou o Partido, para porem em dia vinganças antigas, e distribuem votos por Maria e por Nóvoa, ficando ainda uns restinhos para Neto.

Os comunistas nunca, mas nunca votariam no Marcelo. O mesmo se pode dizer dos bloquistas. Ambos têm candidatos de facção, tipo do que chamavam ao Cavaco, mas é a facção deles, por isso é boa.

Os monárquicos e os fascistas, por coerência, abstêm-se. Alguns, se ninguém os vir, vão cedo e embuçados às urnas, nas quais deixarão um voto branco ou nulo, ou dispersarão tanto por tanto candidato que não contam nem para uma sondagem decente.

Portanto, ninguém vota no Marcelo. Resto eu e mais meia dúzia de pessoas. Não sei como é que vamos conseguir ganhar as eleições, nem mesmo dar razão às sondagens que o apontam perto da vitória à primeira volta. Sinto-me tão sozinho, eu e as sondagens...

'Take care' e um 'x' no boletim :)

sexta-feira, janeiro 08, 2016

Aula de História com o Prof. Rui Ramos

Um presidente da república pode promover um partido, como Eanes em 1985. Pode fazer a vida negra a um governo, como Soares entre 1993 e 1995. Pode provocar viragens políticas, como Sampaio em 2004. Mas poderia mais. Por exemplo, aproveitar um parlamento sem maioria consistentes para orquestrar acordos e alianças, tornando-se no maestro da governação. Ou promover a formação de uma maioria parlamentar que reconhecesse o presidente como seu chefe, o que lhe permitiria escolher um primeiro-ministro da sua confiança. O presidente preside, mas não governa (uma fórmula da monarquia constitucional). Mas sem governar (isto é, sem ser o primeiro-ministro), o presidente pode controlar e liderar a governação, como na França gaullista. Não é a tradição, não seria fácil — mas nada nesta constituição o impede. Tal como um regime pode ter várias constituições (exemplo: a monarquia constitucional), uma constituição pode servir a vários “regimes”, no sentido de sistemas de governo (exemplo: a constituição da república de Weimar).

Rui Ramos - "Um dia destes, um presidente da república mudará o regime" - Observador - 08.01.16

quarta-feira, janeiro 06, 2016

Star Wars Groove.



Moulinex e os Star Troopers interpretam no Lux uma versão muito funkie do clássico de John Williams. São vinte minutos espectaculares. Talvez até a única coisa realmente gira que saiu deste último ciclo de histeria colectiva à volta da cansativa e criativamente esgotada saga que George Lucas vendeu aos "esclavagistas" (!) da Disney.

terça-feira, janeiro 05, 2016

Perdidos no Centro Comercial.



City Calm Down . Rabbit Run

Jornal de Letras . Sapiens - História Breve da Humanidade

“Como nós agradecemos o apocalipse dos dinossauros, também as baratas e as ratazanas do século cinquenta mil hão-de agradecer o apocalipse do Sapiens.”
Yuval Noah Harari

Crónica publicada a 09/12/15

Caro leitor, sente-se o mais confortavelmente possível e aperte por favor o cinto de segurança da sua cultura geral. Os próximos parágrafos trazem turbulências inauditas. Se sofre de enjoos de ruptura cognitiva, procure por gentileza um outro entre os excelentes ensaios críticos que proliferam no Deus Me Livro. É que “Sapiens: História Breve da Humanidade”, de Yuval Noah Harari (Vogais, 2015), não é exactamente uma obra recomendável a inteligências delicadas. É, verdadeiramente, o equivalente científico a uma pedrada no charco.

Os ensaios, mais ou menos ambiciosos, mais ou menos abrangentes, que procuram explicar o Sapiens ao Sapiens, têm crescente procura, talvez porque exista de facto grande dificuldade em entender o mais estranho animal que circula à superfície do terceiro calhau a contar do sol. Desde consagrados biólogos que resumem a condição humana a partir de estudos profundos sobre o comportamento das formigas eusociais (1), antropólogos-ecologistas que determinam o destino do homem pelas condicionantes ambientais (2) ou pela lotaria das doenças, a brutalidade das armas e o triunfo das siderurgias (3), e ideólogos que procuram convencer-nos que as sociedades são historicamente mais bem sucedidas – e os seus indivíduos mais felizes – se forem inclusivas (4), o que não escasseia no mercado são objectos deste género pedagógico.

O livro do professor de História da Universidade Hebraica de Jerusalém será, porém, a coisa mais parecida com um guião para a humanidade escrito por um extraterrestre que alguém possa imaginar. Disruptivo, desassombrado e bastante heterodoxo, Yuval Noah Harari parece não ser daqui, a julgar pela sua objectividade inumana e lucidez radical, e pelo recital bombástico de novas verdades académicas que faz explodir, página sim, página sim.

Numa era em que acreditamos que a religião é um trampolim para a guerra, que o dinheiro é fonte de injustiça social, que os impérios são, regra geral, maléficos, ou até, para ser mais prosaico, que a má língua é indesejável, Harari contrapõe com uma análise estrutural de largo espectro, que invalida ou polemiza estes juízos conjunturais e telejornalísticos originários de uma visão imediatista, contemporânea e mediática da história, como se o animal humano tivesse surgido com a telefonia sem fios e triunfado com a libertação da baleia Willy.


Primórdios: cabeçudos, contra toda a lógica.

Logo à partida é preciso desinstalar do sistema operativo da cultura popular a ideia que o Homo Sapiens é a espécie humana mais bem-sucedida de todas as tentativas da natureza. O Sapiens é um bicho com 80.000 anos e, nos últimos 10.000, tem sido o único Homo a infestar a Terra. Mas existiram outros humanos extremamente bem-sucedidos – e durante muito mais tempo. O autor destaca duas espécies: o Neanderthalensis na Europa e o Erectus na Ásia Ocidental. Este último esperto sobreviveu e prosperou durante 2 milhões de anos, e é duvidoso que o Sapiens consiga sobreviver e prosperar assim por tanto tempo (mais à frente veremos porquê).
Acresce, para tormento das lógicas aceites como boas, que não se percebe lá muito bem porque raio é que os vários Homos conseguiram triunfar. O facto de serem consideravelmente cabeçudos implica uma factura pesada: o cérebro consome 25% da energia do corpo em descanso. Nos restantes símios, o mesmo ratio não ultrapassa os 8%. Por isso, os humanos tinham que passar mais tempo à procura de alimentos e apresentavam os músculos atrofiados, comparativamente com outros predadores. Uma estratégia de sobrevivência não muito aconselhável no ambiente pouco simpático da savana. Ainda por cima, as grandes cabeças humanas implicam um parto precoce e – logo – uma grande fragilidade das crias face ao ambiente e alta dependência perante os progenitores. É verdade que a precocidade das crias também conduziu a seres mais adaptáveis e à necessidade da tribo e dos laços sociais.

Porém, durante mais de 2 milhões de anos, “o cérebro grande não trouxe muitas vantagens, para além de facas de sílex e paus afiados”. Então o que alimentou esta evolução dos enormes cérebros humanos? Noah Harari é lacónico: “sinceramente, não sabemos”. Aliás, o autor não se importa nada de nos confessar as mais diversas ignorâncias, contra aquilo que é costume nas eminências que escrevem sobre estes temas.

Seja como for, o homem passou do meio da cadeia alimentar para o topo muito rapidamente (há cerca de 100.000 anos). O ecossistema não teve tempo para se adaptar à espécie humana como se adaptou progressivamente no caso dos leões e das gazelas, por exemplo (à medida que os leões foram ficando mais agressivos, as gazelas ficaram mais rápidas). Talvez por isso, o impacto humano nas estruturas ecológicas em que se inseriu e insere seja historicamente devastador. As espécies que deviam ter aprendido, durante milhões de anos, a temer o homem – ou a criar mecanismos de defesa contra ele -, não tiveram simplesmente tempo para o fazer. A humanidade evoluiu demasiado depressa.


O fogo: “uma raça de cozinheiros”.

Há cerca de 300.000 anos, Neandertais e Erectus usavam o fogo diariamente. Esta abençoada rotina traduziu-se em menos tempo despendido a comer. Cozinhados, os alimentos são mais macios e originam o surgimento de dentes mais pequenos e intestinos mais curtos que gastam menos energia, permitindo que os excedentes energéticos contribuam para cérebros maiores. Por outro lado, a domesticação do fogo deu poder operacional sobre a natureza. E fez do homem um ser terratransformador com algum poder de transcendência. Com o domínio do fogo, há um Prometeu em cada ser humano.


Homo contra homo: chacina ou miscegenação?

Entretanto o Sapiens sai de África há 70.000 anos e, num hiato de cerca de 50.000 anos, cruza-se com ou chacina os homens das outras espécies que vai encontrando pelo caminho. As opiniões dividem-se, mas a hipótese de genocídio não está fora de causa, sendo a grande questão que permanece. O mais provável é que os dois factores de extinção tenham ocorrido de forma concomitante. Se pensarmos que pequenas diferenças entre sapiens geram grandes e horrendos conflitos, é fácil imaginar que género sangrento de confrontos e razias ocorreram entre espécies diferentes. Porém, testes ao ADN do Homo Neanderthal e do Homo Denisova provaram que a miscegenação aconteceu de facto (embora pareça tratar-se de um fenómeno de baixa incidência – 1 a 4%), e que existem diferenças rácicas profundas entre os sapiens actuais, por muito politicamente incorrecto que seja dizê-lo.
Seja como for, o autor articula um exercício contra-factual extremamente interessante: e se os neanderthais tivessem resistido à hegemonia sapiens e sobrevivido como espécie? Que consequências teria essa sobrevivência na história e nos dias de hoje? “Teria o Livro do Genesis declarado que os neanderthais descendiam de Adão e Eva? Sustentaria a Declaração da Independência Americana como verdade evidente que todos os membros do género Homo foram criados iguais? Teria Karl Marx apelado à União dos trabalhadores de todas as espécies?” São momentos de puro génio como este que fazem de Sapiens um livro fascinante.


A Revolução Cognitiva: da má-língua à ficção.

É também há cerca de 70.000 anos atrás que se encontra a génese de um dos fenómenos mais ruidosos da história do universo: a invenção da linguagem. A maleabilidade e versatilidade da linguagem humana permitem enfrentar com eficácia os perigos exteriores, mas são os mexericos que potenciam a ordem social, a definição de hierarquias e a formulação de uma agenda de prioridades grupais. É a capacidade natural do Sapiens para a má-língua que levanta a consciência política do grupo, como podemos demonstrar ainda hoje recorrendo ao exemplo eloquente do jornalismo.

A linguagem tem um potencial de abstração e ficção que contribui para a coesão e função grupal, mas também para a criação de “realidades imaginadas”, um conceito muito caro a Yuval Noah Harari, que percorre toda a obra. É que os mexericos só servem a coesão social até grupos de 150 indivíduos. A partir daí é a crença em mitos comuns que agrega e universaliza as sociedades. Deuses, nações e empresas são realidades mágicas extremamente poderosas, mais poderosas que as realidades físicas. A rápida alteração destas realidades imaginadas (por exemplo, na Revolução Francesa o mito da soberania de deus foi substituído pelo mito da soberania popular) faz com que a evolução humana transcenda a evolução do genoma, colocando o homem numa “via rápida de evolução cultural”. A verdade é que só o Sapiens é capaz de alterar o comportamento e a tecnologia sem mutação genética ou alteração ambiental. A revolução cognitiva é, assim, o ponto em que a história declara a sua independência da biologia. Tanto assim é que as diferenças entre o chimpanzé e o sapiens são mais notórias quando passamos o limiar dos 150 indivíduos. Ou seja, quando entramos no âmbito da cultura de massas.


Caçadores-recolectores: mais espertos do que nós?

Nos últimos 200 anos o Sapiens foi operário ou empregado de escritório. Nos últimos 10.000 anos foi agricultor ou pastor. Mas nos últimos 70.000 anos foi caçador e é isso que manda muito no aparelho genomático, bem como no comportamento instintivo do homem contemporâneo. É por isso que é importante estudar a vida, os costumes e as crenças do caçador recolector, embora o que se sabe sobre esse inquieto sujeito seja muitíssimo pouco. Estudar a vida dos caçadores recolectores é muito complicado, dada a miríade de possibilidades culturais que existem desde a Revolução Cognitiva. Costumes, crenças e modus vivendi diferem muito, mesmo entre tribos geograficamente próximas.

Sobre a espiritualidade deste bicho, muito pouco se sabe. Os caçadores recolectores seguiriam talvez cultos animistas, mas pouco mais se poderá afirmar até porque “as teorias de académicos que alegam saber o que sentiam os caçadores recolectores lançam muito mais luz sobre os preconceitos dos autores do que acerca das religiões da idade da pedra”.

O pior é que nem sabemos que histórias contavam estes homens, já que desconhecemos a sua literatura. Esta grande lacuna na nossa compreensão da história humana é apenas compensada por dados arqueológicos que demonstram comportamentos sócio-políticos complexos e que comprovam que os caçadores recolectores não eram, provavelmente, mais ou menos violentos que nós (adeus mito do bom selvagem). Os números apontam para a mesma taxa de mortalidade violenta do século XX: 5%.

O autor dá-nos até uma ideia bastante sinistra do recolector: um assassino em série de espécies animais, principalmente mamíferos. Perante o relato de Noah Harari, até os dinossauros coram de vergonha: “Os bandos errantes de sapiens contadores de histórias foram a força mais destrutiva que o reino animal alguma vez produziu.”

Para complicar mais as coisas, parece que o caçador recolector era um tipo mais inteligente e mais hábil que o Sapiens contemporâneo. “O colectivo humano sabe muito mais hoje do que sabiam os bandos antigos. No entanto, ao nível do indivíduo, os antigos recolectores eram as pessoas mais conhecedoras e hábeis da história. Existem algumas provas de que, na verdade, o tamanho do cérebro médio de um sapiens diminuiu desde a era da recolecção.”

O perturbador conceito de que o homem é agora mais estúpido do que já foi um dia não é completamente convincente, e as conclusões sobre a qualidade de vida, alimentação e saúde do homem pré-agrícola, favorecendo este em relação ao agricultor e até ao operário, são bastante discutíveis, embora estejam bem fundamentadas e só nos façam bem: é preciso exercitar a humildade para seguir o raciocínio do professor israelita sem perder a auto-estima e a compostura filosófica.


Revolução Agrícola: a maior fraude da história.

A transição para a agricultura iniciou-se entre 9500 e 8500 a.C. no próximo e médio oriente, e surgiu depois espontânea e gradualmente noutros locais, tendencialmente onde as espécies domesticáveis proliferavam. E, se no século I d.C. os povos da terra eram maioritariamente agrícolas, a inventiva rural parece no entanto ter cristalizado no tempo: nenhuma planta ou animal digno de nota foi domesticado nos últimos 2000 anos.

Para Noah Harari, a revolução agrícola é a grande fraude da história. Através dela, o homem não passou a viver melhor, mas pior. E foram as espécies domesticáveis que domesticaram o homem e não o contrário (!). O trigo, por exemplo, passou de uma pequena planta selvagem do médio oriente para ocupar vastas extensões de monocultura em todo o mundo. De acordo com o princípio da evolução, tornou-se numa das mais bem-sucedidas plantas da história da Terra. E “de uma perspectiva estrita, medindo o êxito pelo número de cópias de ADN, a revolução agrícola foi uma maravilhosa explosão para galinhas, gado, porcos e ovelhas.” Isto embora os animais domesticados tenham, como indivíduos, vidas horríveis. Tal como o que se passa com o homem agrícola (que prosperou em número graças aos cereais e legumes que plantava, bem como aos animais que pastava), mais indivíduos não significa necessariamente melhor qualidade de vida. O que a Revolução Agrícola fez foi manter vivas mais pessoas sob piores condições. A dieta humana também sofreu uma descida de qualidade porque a diversidade dos alimentos foi reduzida. Mas talvez o pior de todos os efeitos secundários da agricultura foi a angústia sobre o futuro que deriva da incerteza sobre o resultado dos ciclos sazonais de produção. “A revolução agrícola tornou o futuro muito mais imprevisível do que alguma vez tinha sido”.

Por outro lado, os agricultores trabalhavam imenso, mas lucravam pouco. Já as elites começaram a descobrir o luxo precisamente porque existiam excedentes agrícolas para transformar em ouro. “A história foi algo que um grupo muito pequeno de pessoas fez, enquanto todos os outros aravam os campos e carregavam baldes de água“. A Revolução Agrícola criou populações e excedentes tributários que permitiram a sedentarização, a religião institucionalizada e os primeiros impérios. Isto embora os recentes dados arqueológicos de Goblek Tepe, já integrados nesta obra, nos façam pensar: foi a agricultura que deu lugar à fé ou a fé que deu lugar à agricultura? É que a mega estrutura de culto religioso da Anatólia, que data de 9500 a.C., incluia extensões de terreno dedicadas ao cultivo agrícola, que permitia alimentar os peregrinos. Isto muito antes de existirem aquilo a que hoje chamamos cidades.


A escrita: o desenho gráfico das realidades imaginadas.

As realidades imaginadas e as complexidades aritméticas decorrentes da revolução agrícola criaram mais informação do que aquela que o Sapiens podia processar. Ao contrário das outras espécies, que nascem programadas para o que vão ser as suas prosaicas e previsíveis vidinhas, o homem não vem preparado geneticamente para o modus operandi da sua instável civilização. Os sírios resolveram o problema da overdose de informação operacional e onírica através da invenção da escrita. É claro que a primeira literatura é de ordem contabilistíca:“infelizmente, os primeiros textos da história não contêm revelações filosóficas, poesias, lendas, leis ou mesmo triunfos reais. São um ramerrão de documentos económicos que registam o pagamento de impostos, a acumulação de dívidas e a posse de propriedades.”

O primeiro nome registado numa tabuinha de cera da cidade de Uruk é Kushim – um contabilista e não um profeta, um poeta ou um conquistador. Também não podia ser de outra maneira, porque a escrita síria do tempo era um sistema de grafia parcial que só foi completo em 2500 a.C., com a escrita cuniforme e com os hieróglifos egípcios. É por essa altura que começamos finalmente a ter poesia, história, drama, profecias e livros de culinária, embora a tarefa prioritária tenha continuado a ser a contabilidade.

A páginas tantas, Harari faz uma comparação absolutamente genial entre o famoso Código Hammurabi (Mesoptâmia, 1776 a.C.) e a Declaração da Independência (América do Norte, 1776 d.C.). Os textos têm, por incrível que possa parecer, muito em comum. Ambos proclamam solenemente a evidência de certos direitos divinos. Como o Rei Hammurabi, Jefferson promete que, se os homens agirem de acordo com esses princípios sagrados, serão capazes de cooperar, prosperar e viver em segurança e paz. Há, porém, diferenças que ironicamente invalidam a sua veracidade: “De acordo com os Norte-americanos, todas as pessoas são iguais, ao passo que, segundo os babilónios, as pessoas são, sem dúvida alguma, desiguais.(…) Na verdade, estão ambos errados. Hammurabi e os Pais Fundadores norte-americanos imaginavam uma realidade governada por princípios de justiça universais e imutáveis como a igualdade ou a hierarquia. No entanto, estes princípios universais só existem na imaginação fértil dos sapiens e nos mitos que inventam e contam uns aos outros. Estes mitos não têm validade objectiva.”

Mas por que raio é que as pessoas acreditam nestas realidades imaginadas como se fossem realidades reais? É que estes aparelhos oníricos estão incorporados no mundo material, decorrem de factos históricos, dão forma e legitimidade aos nossos desejos e são partilhados por milhões de pessoas. Somos todos escravos destes sonhos. “Não temos como escapar da ordem imaginada. Quando derrubamos as paredes da prisão e corremos para a liberdade, estamos, de facto, a correr para o pátio mais espaçoso de uma prisão maior”.


A seta da história: sentido único.

Seguindo o raciocínio de Yuval Noah Harari, as realidades imaginadas acabam por formar uma rede de instintos artificiais que une as pessoas. A essa rede chamamos cultura. As culturas estão em constante mutação, muito por causa das contradições internas que encerram. Por exemplo: liberdade e igualdade são dois valores que se contradizem mutuamente e até “é possível analisar toda a história política do mundo desde 1789 como uma serie de tentativas para reconciliar esta contradição.”

Assim sendo, terá a história uma direcção? O nosso assertivo professor diz que sim, sim, a história tem uma direcção. Corre do múltiplo para o uno por força gravítica de 3 ordens universalizantes: o dinheiro, os impérios e as religiões.


Dinheiro: um valor universal.

Como é fácil de perceber, o sistema de trocas directas em sociedades complexas não é nada prático e resultou apenas ocasionalmente, como no caso da civilização Inca. A invenção do dinheiro, para além de simplificar em muito as transacções comerciais, não requereu avanços tecnológicos, sendo uma revolução puramente mental que transcendeu e transcende as clivagens religiosas e culturais. O dólar, por exemplo, funciona perfeitamente mesmo quando nas mãos do islamita radical mais empedernido. Isto embora não devamos confundir dinheiro com moeda. Os ugandesses pagavam impostos à coroa iglesa em búzios até ao princípio do século XX e não havia qualquer problema com isso. Afinal, mais de 90% de todo o dinheiro que circula actualmente no mundo existe apenas nos servidores dos computadores dos bancos e a maior parte das transações são feitas electronicamente. “A confiança é a matéria-prima a partir da qual são cunhados todos os tipos de dinheiro. (…) O dinheiro é o mais universal e eficiente dos sistemas de confiança mútua alguma vez criados”.

A primeira moeda foi a cevada (Suméria, 3000 a.C.) e as primeiras moedas em ouro e prata datam de 640 a.C. Foram essas primeiras emissões fiduciárias que permitiram o pleno funcionamento dos sistemas tributários e – logo –  dos impérios: o Denário, a moeda do império romano, era usado na índia e ainda hoje há alguns países muçulmanos que designam por Dinar as suas moedas. Foi graças à implementação comercial de um cunho nominal em que toda a gente acredita (em prata, ouro ou bronze) que o comércio global iniciado nos séculos XV e XVI foi possível. E se continua céptico, caro leitor, em relação ao poder benéfico e universalizante do dinheiro, reflicta por gentileza neste parágrafo absolutamente disruptivo:

“Durante milhares de anos, filósofos, pensadores e profetas criticaram o dinheiro e chamaram-lhe a raíz de todos os males. Por muito que assim seja, o dinheiro também é o apogeu da tolerância humana. O dinheiro é mais aberto do que qualquer língua, lei estatal, código cultural, crença religiosa ou hábito social. O dinheiro é o único sistema de confiança, criado pelos humanos, capaz de ultrapassar qualquer fosso cultural e não discrimina com base na religião, no género, na raça, na idade ou na orientação sexual. Graças ao dinheiro, até as pessoas que não se conhecem e que não confiam umas nas outras conseguem cooperar de forma eficaz.”


Impérios: graças a deus por eles.

Apesar de contribuírem de facto para a redução cultural e genética da diversidade humana, os impérios são, na perspectiva do autor, eixos de paz, prosperidade e avanço técnico e espiritual inigualáveis. A crítica das dinâmicas imperiais assenta em alguns disparates que, por serem muitas vezes afirmados, pegaram como verdades, a saber:

a) Os impérios são disfuncionais – Pelo contrário, a análise histórica de longa duração demonstra que são a forma de organização política mais comum, eficiente e duradoura nos últimos 2500 anos.

b) Os impérios são culturalmente estéreis – Dizer isto é muito simplesmente rejeitar a maior parte da história da cultura humana. As línguas, as artes, as literaturas e as filosofias são produtos imperiais por excelência. Sem a massa crítica dos impérios marítimos, comerciais e militares dificilmente teríamos homens como Da Vinci, Camões, Velazquez, Rembrandt, Cervantes, etc., etc.Mais: assistimos, depois da II Guerra Mundial, à afirmação de um império – o americano – que é eminentemente cultural, no sentido em que rejeita a ocupação territorial ou colonial para se afirmar pela hegemonia de hábitos e costumes, modelos de consumo e de gestão, valores políticos e regimentais  (5).

c) Os impérios são destruidores e maléficos – Mentira, diz Noah Harari. Os impérios são geralmente garante de paz e prosperidade. Na China, os períodos históricos não imperiais são de trevas e de caos. O mesmo dizemos da Europa nos sombrios séculos que se seguiram à espalhafatosa queda do Império romano. Muitas vezes, esquecemo-nos do que aconteceu na índia nas semanas que se seguiram à célebre meia-noite da independência. Depois de séculos de coabitação pacífica entre hindus, muçulmanos e sihks, sob a égide do império britânico, os cidadãos livres daquele subcontinente desataram a matar-se uns aos outros de forma recordista e, muitas vezes, absolutamente gratuita  (6). O mesmo aconteceu nos Balcãs, depois da queda do império soviético.

d) Os impérios são imorais – Não se nota nada. Pelo contrário, os códigos éticos e morais mais célebres da humanidade têm origem directa no discurso dos impérios ou indirecta, pela voz dos seus políticos, filósofos e teólogos.

e) Os impérios são racistas e não inclusivos. Outro disparate que não encontra justificação na história. Ao invés, as estruturas de poder imperial acabam invariavelmente por integrar os povos conquistados nas suas elites. Cláudio, um dos mais sensatos imperadores romanos, convidou os gauleses para o senado e muitos dos mais bem-sucedidos imperadores que se lhe seguiram eram oriundos da Península Ibérica. Durante vastos períodos temporais, a elite dominante no império árabe não era árabe, era turca, persa, síria, egípcia, berbere. A dinastia Han, que dominou a China durante 4 séculos, tem origens bárbaras.

Os impérios são grandes exportadores de valores universais. Hoje em dia, os valores da civilização ocidental são adoptados pela maioria dos povos e nações do mundo, muito porque as descolonizações foram feitas no quadro desses valores. Yuval Noah Harari acredita que este sistema de valores é aquele que conduzirá, em última análise, o movimento histórico para um único império multiétnico.


Religião: a fé que une os homens.

Nos dias que correm, e por razões que são fáceis de perceber, é comum considerar a religião uma força de divisão e de conflitos entre os homens, mas Noah Harari, com o espírito de contradição que o caracteriza, procura desqualificar esse preconceito. Até porque as religiões que triunfam sobre as eras são de carácter necessariamente universalista. As religiões animistas, primordiais e não universais, foram devoradas pelos cultos missionários, evangelizadores e generalistas que surgiram a partir do primeiro milénio a.C. e com a Revolução Agrícola. Destas, as religiões politeístas seriam menos zelosas e mais tolerantes e, por isso, pasto para a voracidade da fé monoteísta, intolerante, dogmática e combativa; embora na verdade: “o monoteísmo, tal como se desenvolveu ao longo da história, é um caleidoscópio de legados monoteístas, dualistas, politeístas e animistas, que se misturam sob uma só protecção divina. (…) O sincretismo talvez seja, de facto, a única grande religião do mundo.”

Entretanto, religiões ateias prosperam num quadro secular: o epicurismo ou o estoicismo; o comunismo, o nazismo e o humanismo; o nacionalismo e o capitalismo dão aos cépticos e crentes de todos os tempos e de todas as partes consistentes alternativas religiosas à existência de Deus. Talvez aqui tenha origem o carácter indeterminado da história: sem que nada o indicasse, Costantino decidiu converter Roma ao cristianismo, mas isso podia muito bem não ter acontecido. A fé ateia, como a crente, alcança grandes e deveras surpreeendentes proezas. Há voltas e reviravoltas inesperadas e caóticas. Veja-se o caso da ascensão e queda do império soviético ou da incrivelmente célere e ambiciosa expansão da fé e da espada de Maomé. Estes acontecimentos não poderiam ser previstos. A história humana é um sistema caótico e, para piorar as coisas, caótico de nível 2, ou seja, que reage e interage com qualquer previsão. Um exemplo lapidar: “as revoluções são, por definição, imprevisíveis. Uma revolução previsível nunca vê a luz do dia.”


Revolução científica: o primado da ignorância.

É verdade. Também aqui o mestre da antítese que é o autor deste livro desalinhado mostra a sua raça: a revolução do conhecimento “não tem sido uma revolução do conhecimento. Tem sido uma revolução da ignorância.” Até ao século XV os cartógrafos desconheciam vastas regiões do planeta, mas os seus mapas estavam repletos de monstros e deuses, olimpos e infernos. Depois, com o conhecimento geográfico decorrente dos descobrimentos, os mapas assumiram os espaços vazios, correspondentes a áreas ainda não conhecidas pela ciência cartográfica. A ignorância faz parte do pensamento lógico e é a aceitação racional do que não sabemos que permite o método científico, processo que ofereceu à condição humana vários super poderes e uma ideia de progresso que até aqui nunca tinha existido. Ora, é precisamente por causa das ideias de maximização do poder e acreditação do progresso que a revolução científica e o imperialismo moderno são inseparáveis.

Até ao século XVII, o continente asiático era muito mais rico que a Europa e sempre o tinha sido até aí. Só no século XIX é que as coisas mudaram graças ao capitalismo e ao complexo militar-científico-industrial das potências ocidentais. A partir de 1850, o domínio dos impérios ocidentais foi de tal intensidade que no princípio deste século XXI todos parecemos moldados pelo mesmo sistema básico de princípios e valores culturais. E porque é que foram os Europeus – e não os asiáticos – a influenciar decisivamente esse sistema de valores global? Porque o modelo ocidental soube como nenhum outro conjugar conquista com ciência. A descoberta da Austrália por Cook aconteceu numa missão científica e de corso. Como a volta ao mundo de Fernão de Magalhães. Como, de uma maneira geral, os descobrimentos. Quando Napoleão invadiu o Egipto em 1798, levou consigo 168 académicos. A odisseia de Darwin nas ilhas Galápagos enquadrou-se no âmbito de uma missão militar. Aztecas e Incas não se conheciam, mas os espanhóis, num espaço de tempo muito curto, dominaram os dois impérios. Os ingleses descobriam matéria de facto sobre antigas civilizações e línguas na índia que os nativos desconheciam. A vontade de saber, o espírito científico, ajudou muito.

O problema é que o objectivo último da ciência será sempre a eliminação da morte. E nessa conquista da imortalidade estará, ironicamente, o fim do Homo Sapiens.


Capitalismo: o elogio do crédito.

Na versão dos acontecimentos de Yuval Noah Harari, o capitalismo é uma religião muito bem-sucedida, principalmente porque não exige muito das pessoas. Determina apenas que o capitalista invista e que o consumidor compre. Convenhamos que estes mandamentos, comparados com as exigências éticas do cristianismo, do budismo ou do confucionismo, são bastante fáceis de seguir. “A grande maioria das pessoas corresponde hoje, com êxito, ao ideal capitalista-consumista. A nova ética promete o paraíso na condição de os ricos se manterem gananciosos e passarem o seu tempo a ganharem mais dinheiro e de as massas darem rédea solta aos seus desejos e paixões – e comprarem cada vez mais. Esta é a primeira religião da história cujos seguidores fazem realmente o que lhes é pedido.”

Acresce que antes do crédito não havia crescimento económico. Para enriquecer era necessário roubar ou esperar a falência de alguém. O capitalismo trouxe o crédito e a prosperidade que gera prosperidade por si só, sem contar com a desgraça alheia. A partir destes muito originais pressupostos, o autor faz uma espécie de história do capitalismo em 10 páginas que é bastante eloquente e que permite até perceber muito do que é e de como funciona o mundo económico actual.

É que se até aqui tem sido a ciência que precisa do capitalismo, desde 2008 é o capitalismo que precisa da inventiva científica para criar novas tecnologias. Sem revoluções tecnológicas só muito dificilmente serão superados os efeitos da bolha criada pela frenética emissão de moeda fingida, e seremos rapidamente esmagados por aquilo que desde a célebre conferência do Clube de Roma de 1972 chamamos os limites do crescimento. Mas nem tudo está perdido. O professor israelita apresenta um visão optimista sobre recursos e matérias-primas para nos tranquilizar um pouco: os recursos são de facto finitos, mas como o Sapiens está sempre a descobrir ou a criar novos materiais, não é por causa disso que a civilização vai cair.


A implosão da comunidade: uma revolução pacífica.

Depois de dezenas de milhares de anos a depender da comunidade e da família, o Sapiens substitui-os pelo Estado e pelo Mercado em dois séculos apenas. “A maior revolução social que alguma vez afectou a humanidade “foi possível através do poder da cultura de massas e da força centrífuga das suas diversas realidades imaginadas. Hoje em dia, “a mãe e o pai têm tantas hipóteses de se safar num tribunal freudiano como os arguidos num dos julgamentos manipulados de Estaline”.

Apesar deste factor de ruptura e instabilidade, as últimas sete décadas foram as mais pacíficas da história humana, mesmo considerando os genocídios e a ameaça nuclear. Morrem hoje mais pessoas em desastres de automóvel ou por recurso ao suicídio do que por violência infligida por outros. Até os impérios já não caem com o estrondo antigo. O Império Soviético, por exemplo, faleceu com relativa tranquilidade. Desde 1945 que nenhum país aceite pela ONU é riscado do mapa e “nunca antes a paz foi tão predominante, ao ponto das pessoas nem sequer serem capazes de imaginar a guerra”. Os confrontos bélicos modernos são de tal forma onerosos em baixas e dinheiros que a paz é, por si só, um bom negócio. “O império mundial defenderá, de facto, a paz mundial”.


Felicidade: entre a química e a semântica.

Apesar de nos últimos 500 anos as sociedades humanas terem progredido bastante, Harari insiste em perguntar: mas seremos hoje mais felizes? Apesar da redução na eclosão de guerras e mortes violentas, da progressiva erradicação da fome e da melhoria drástica na qualidade dos cuidados médicos e do acesso a esses cuidados, o autor avisa que é demasiado cedo para percebermos em definitivo se somos hoje mais felizes do que éramos há 50.000 anos atrás. A actual bonomia pode não ser mais que um dado conjuntural, sem significado de relevo no contexto extra-longo das eras.

O Sapiens continua a portar-se como um bárbaro em muitas áreas do seu comportamento social e ambiental e daqui a um ou dois séculos, o mais provável é que o homem de 2015 seja considerado um selvagem cruel, pela forma como trata, por exemplo, o gado. O processamento industrial dos animais que nos servem de alimento vai deixar tão repugnados os historiadores do Século XXIII como agora nos repugna a escravatura do ciclo do açúcar oitocentista.

É  claro que a felicidade é coisa complicada de medir, de definir e de comparar. Um humano imortal será mais feliz? Ou pelo contrário, será um triste hipocondríaco, escondido do mundo pelo receio de perder num acidente a vida eterna? A Revolução Francesa fez as pessoas mais felizes? Provavelmente não. A evolução social não é necessariamente uma caminhada na direcção da alegria. E o que acontece geralmente às utopias é transformarem-se muito rapidamente em pesadelos distópicos. Os amanhãs nunca chegam realmente a cantar.

Além disso, para sermos realmente objectivos, devemos encarar a felicidade como um fenómeno essencialmente bioquímico. E até sobre essa definição concreta e aparentemente inócua Aldous Huxley (7) conseguiu criar um cenário bastante tenebroso.
Resta-nos a felicidade através da captura de um significado. Mas Harari concorda com Schopenhauer: a vida humana não tem qualquer significado e, por isso, para sermos felizes somos obrigados a iludirmo-nos.


Profecia: o fim do sapiens.

A revolução científica e a consequente capacidade de manipulação do ADN humano elevou o Sapiens ao sagrado ofício do Design Inteligente pela primeira vez em 4 milhões de anos de selecção natural. A engenharia contemporânea está a criar cyborgs, biológicos e não biológicos; e sistemas de inteligência artificial, com e sem estruturas orgânicas. O genoma do rato tem 2,5 mil milhões de bases azotadas. O genoma humano só tem mais 400,000. Assim, o mais provável é que a  engenharia genética transforme em breve o Sapiens noutra espécie. E se a Revolução Agrícola, tecnologicamente insipiente e absolutamente analógica, implicou subtis alterações no cérebro humano, o que pode fazer a genética na era digital? As preocupações de ordem ética serão sempre conjunturais e mutáveis e as dificuldades técnicas são superáveis. O super-homem vem aí, mais tarde ou mais cedo, até porque o que está em causa é o prolongamento da vida humana.

As próteses activadas pelo cérebro, as retinas digitais, os interfaces entre o cérebro e o processador digital da sociedade da informação libertam potencialidades que estão na verdade por considerar, mas que irão por certo transcender as narrativas do mais criativo dos escritores de ficção científica. Basta pensarmos que os vírus informáticos podem sofrer mutações e evoluir apesar de serem inorgânicos, para ficarmos com um arrepio na imaginação. Uma coisa, para Noah Harari, é certa: o Homo do futuro será mais diferente do Sapiens do que este é diferente do Neanderthal. O Homo do futuro, para todos os efeitos, será Deus.
O futuro guarda não só transformações tecnológicas e organizacionais como também alterações substantivas na consciência e na identidade humana. É por isso necessário cuidar do contexto cultural em que o super-homem vai ser criado. Não convém que a próxima espécie de homens seja parecida com os consumidores pueris e diletantes em que se transformaram milhões e milhões de sapiens. “Existirá algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis, que não sabem o que querem?”


Conclusão: para o bem ou para o mal, um manifesto incontornável.

Um facto de que esta obra faz prova provada é que um historiador, por mais objectivo e clarividente que seja, nunca consegue trair completamente a sua humanidade. Apesar do registo geral, que é de desassombro alienígena e originalidade incontestável, o professor Yuval Noah Harari cai, ainda assim e algumas vezes, na armadilha de ser – ele mesmo – um Sapiens.

E, por isso, mostra aqui e ali estranhas idiossincrasias e contradições. Comparar a estratificação social norte americana contemporânea com a da índia actual, por exemplo, é um exercício escandalosamente subjectivo e até algo disparatado. Tanto como a valorização das “tentativas do governo democrático para derrubar as distinções das 3000 castas da índia.”, quando todos sabemos muito bem que os políticos em Nova Deli pertencem quase invariavelmente às castas superiores.

A dado passo, Noah Harari afirma que as diferenças entre homens e mulheres são culturais e não biológicas. Mas dificilmente alguém conhece ou conheceu o estranho caso de uma mulher que deva a sua condição à cultura. O que separa os dois géneros de Sapiens é precisamente a biologia. O que não os deve separar será precisamente a cultura.

Existem no texto alguns ataques brutais de optimismo, que contrastam e de que maneira, com o realismo dominante. Harari acredita sinceramente que a direcção da história convergirá para um império único e multiétnico, assente nos valores ocidentais. Há muitas, há imensas razões para termos sérias dúvidas sobre este anunciado destino da humanidade.

Aqui e ali, notamos a cedência ao politicamente correcto, que sendo rara, é por vezes lamechas: “o nosso mundo, outrora verde e azul, está a transformar-se num centro comercial de betão e plástico”. Um cliché do tamanho do mundo.

Yuval Noah Harari não consegue, ao longo destas saborosas páginas, resolver um dilema, que decorrerá afinal da sua secreta fraqueza humanista: o bicho homem, por um lado, é insignificante e, por outro, tem o poder de um deus omnipotente e vai levar à extinção as outras espécies todas, mesmo quando “a natureza não pode ser destruída”. Há aqui várias contradições em termos: ou o Sapiens é um animal ridículo, vítima de forças físicas e históricas transcendentes ou é uma criatura divina, capaz de deixar uma marca no cosmos. Mas dificilmente poderá, na verdade, ser as duas coisas.

A prosa do bom professor é também menos virtuosa quando disserta sobre a questão da felicidade humana. O caçador recolector era mais feliz que o agricultor? O servo do Ancient Regime era mais feliz que o operário da Revolução Industrial? A ciência histórica deve recusar este inquérito na medida em que a ideia de felicidade muda com as eras, com os contextos, com as situações. O próprio autor reconhece que a felicidade tem a ver com expectativas e as expectativas são voláteis. Mas, se quisermos ir por esse caminho, temos a obrigação da  honestidade intelectual e devemos valorizar os factos mais objectivos que é possível recolher. A baixa na mortalidade infantil não promoverá a felicidade das pessoas? E, nesse caso, não serão os jovens casais do século XX d.C. bastante mais felizes que os casais do milénio 50 a.C?

Tudo o resto é de qualidade gritante e pertinácia substantiva. São 480 páginas inspiradas, repletas de erudição sem pretensão e do mais fino humor que um historiador pode utilizar sem perder a seriedade académica. O leitor terá dificuldade em acompanhar e apreciar o brilhantismo exuberante mas nunca pueril de Harari, tal a frequência com que se manifesta; tal o exercício prodigioso e às vezes chocante de lucidez e ousadia. Essa dificuldade é, não obstante, abençoada. Este é, decididamente, um livro que faz bem à (grande) cabeça do Sapiens.


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(1) Edward O. Wilson – A Conquista da Terra. A Nova História da Evolução Humana – Clube do Autor
(2) Jared Diamond – Colapso. Ascensão e Queda das Sociedades Humanas – Gradiva
(3) Jared Diamond – Armas, Germes e Aço – Os Destinos das Sociedades Humanas – Círculo dos Leitores
(4) Daron Acemoglu e James A. Robinson – Porque Falham As Nações – Círculo de Leitores
(5) Colosso – Ascensão e Queda do Império Americano – Círculo dos Leitores
(6) Dominique Lapierre e Larry Collins – Esta Noite a Liberdade – Ática
(7) Aldous Huxley – Admirável Mundo Novo – Livros do Brasil

segunda-feira, janeiro 04, 2016

Super Man Cam.


A NFL não permite a partilha dos seus videos em blogs, mas estão aqui 5 minutos bem eloquentes sobre o talento de Cam Newton, o quarter back dos Carolina Panthers e novo prodígio do desporto profissional norte-americano. Grande candidato a MVP da época regular deste ano, este rapazinho nasceu para passar a bola. E correr com ela. É que Cam não é apenas um excepcional lançador. Graças a um porte físico impressionante e à velocidade supersónica com que executa quase todos os gestos técnicos, o super-homem de Charlotte faz rushing yards que nunca mais acabam e touchdowns em barda, sendo actualmente o rookie com o maior número de jardas combinadas da história da NFL. Além disto tudo, é um atleta que dá sempre gosto ver em acção, principalmente quando lança a distâncias monumentais com uma certeza de sucesso absolutamente incrível. Os playoffs estão aí, e vale mesmo a pena ver um joguinho dos Panthers. O espectáculo é garantido.