segunda-feira, março 07, 2016

Zaman, Turquia e cenas (porque nunca se deve tomar os outros por nós próprios).



POR MÁRCIO ALVES CANDOSO


Não sei se por preguiça, simplismo ou até arrogância, muitos ocidentais, hoje em dia, gostam de analisar a realidade dos países muçulmanos segundo os seus pontos de vista ou à luz da sua própria hierarquia de valores.

Se, no que diz respeito a direitos humanos considerados fundamentais, devemos fugir o mais possível do relativismo - não há que ter medo em declarar a superioridade das democracias ocidentais neste aspecto, com todos os defeitos inerentes -, em matéria de análise política local a coisa muda de figura.

Como tantas vezes tem acontecido, foi - e é - por uma errada análise de contexto que os poderes ocidentais, ao meterem o nariz na Síria, em vez de melhorarem o estado das coisas só contribuíram para uma ainda maior confusão, estando longe de terem evitado o desastre. Basta ver a posição dos EUA e de alguns países europeus nas alegadas 'Primaveras Árabes' para aquilatar da qualidade dos pézudos políticos que nos têm calhado em sorte.

A falta de jeito com que se olha a Turquia, ou o problema dos imigrantes/refugiados, é, neste momento, outra das mais gritantes irresponsabilidades do Ocidente. Isso e a pressa com que se rotula de 'bom' ou 'mau' todo e qualquer movimento real ou aparente que emerja nesses países.

A Turquia de Gamal Ataturk ainda resiste; mas já não é maioritária. Por entre as brumas da má memória, os diversos islamismos mais ou menos disfarçados tomaram conta de um país que, no seu tempo revolucionário, aspirou a ser laico e europeu. Talvez contra a sua própria natureza orientalista, o pai da República Turca quis dar um banho de civilização no País, adoptando até aquela que era, na época, a florescente ideologia do progresso - a social-democracia.

O tempo de Erdogan - o tempo presente - é outro. Disparando em diversos sentidos, o semi-ditador turco que em tempos fez a sua formação política aderir ao Partido Popular Europeu - mas que entretanto resolveu sair, antes que levasse com a porta na cara - está em guerra com tudo e com todos.

Os curdos continuam a ser o elo mais fraco nas chancelarias ocidentais - mas não no terreno, onde a bravura e o nível estratégico dos seus militares são uma lição para o mundo. Erdogan ataca a Síria de Assad, dá-se mal com Putin, tenta reprimir os islâmicos radicais no seu país, esmaga a oposição democrática. Tudo com um supremo fim - manter o poder a todo o custo.

Mas é com este fulano que Merkel gosta de se reunir e dar alvíssaras. É este regime que, mais uma vez, dá um nó nas boas almas ocidentais, ao atacar e censurar o maior jornal da Turquia - o Zaman. O que é o Zaman? É um jornal (ou mais do que isso, um grupo de comunicação social) financiado pelo movimento Gülen, ligado ao clérigo islâmico no exílio com o mesmo nome.

É difícil dizer que movimento é esse. Aparentemente, trata-se de uma seita elitista e moderada (pelos cânones do Corão), que aposta numa teia mundial ligada à educação e aos OCS para tomar conta do poder nos países de maioria muçulmana. É impossível não vir à ideia a comparação com uma Opus Dei, talvez mais 'centrista'.

Obviamente que já foi apanhada em teias de corrupção. Não é fácil andar numa semi-clandestinidade e ter, para isso, de angariar fortunas, se é que se quer continuar a ter alguma influência. Erdogan, na lógica de atirar sobre tudo o que mexe, não gosta deles.

Fechar ou censurar um jornal é... fechar ou censurar um jornal. Ponto. Nas imagens televisivas que dão conta das manifestações de apoio ao Zaman, não vi as mulheres de Istambul a atravessar a Ponte do Bósforo de cabelos ao vento e blusas de botões abertos - como noutras ocasiões tinha sido uma realidade. Vi, sim, jovens de varinos compridos, com a cabeça devidamente tapada.

O simplismo e as primeiras impressões nunca foram boas ferramentas de análise. Não na Turquia.