sábado, julho 28, 2018

Tour de Force.



A centésima quinta edição do Tour de France não tem fugido à regra sobre-humana: trata-se de uma competição dura como o diabo. Uma prova de resistência física e resiliência anímica que é pura e simplesmente brutal. E, parece-me a mim, que sigo atentamente esta prova há uns bons 25 a 30 anos, está a ficar cada vez mais brutal.

Este ano as coisas começaram a aquecer logo na primeira etapa, que apesar do seu perfil plano, apesar do seu carácter pacífico de introdução ao inferno, fez com que Chris Froome perdesse logo cerca de 50 segundos. Com o decorrer das semanas, e com excepção de Geraint Thomas, o mais que provável vencedor em Paris, no próximo domingo, todos os favoritos tiveram problemas mecânicos, quedas, distracções, noites mal passadas, problemas nutricionais, disfunções gástricas, abruptas falências de energia, precalços de vária ordem e dias maus que os levaram a perder segundos e minutos, quando não obrigaram ao abandono, como aconteceu com os infortunados Vicenzo Nibali e Richie Porte.

Quando chegaram as primeiras montanhas, a corrida já tinha sido de tal forma implacável que os sprinters entraram em debandada. Na verdade, este Tour vai chegar ao fim com um sprinter de elite apenas: Arnaud Démare (não considero Peter Sagan um sprinter puro). Foi muito difícil aguentar o ritmo a que seguiu geralmente o pelotão, mesmo em etapas menos agressivas. Aliás e paradoxalmente, este nem foi o traçado mais exigente, no sentido montanhoso da palavra, dos últimos anos, pelo contrário. O problema é que o ciclismo internacional mudou muito desde que Lance Armstrong conseguiu demonstrar com factos que um rolador típico, se perder um pouco de peso, pode perfeitamente ser um campeão nas estradas da Gália. E estes roladores, contrarelogistas de gema, andam depressa em todo o lado: no plano, no falso plano, no plano inclinado para cima, no plano inclinado para baixo e no plano cronometrado. O Tour ainda não acabou e amanhã há um contrarelógio determinante para a classificação final, mas estou razoavelmente seguro que Geraint Thomas, Tom Dumoulin, Primoz Roglic e Chris Froome serão, por esta ordem, os quatro primeiros. Quatro contrarelogistas que dominam a montanha. Nairo Quintana, o prototipo do trepador que aqui há uns 20 anos atrás seria o crónico vencedor do Tour, está neste momento em nono na classificação geral, a mais de dez minutos do líder. E num estado físico e psiquíco que dá pena.

Este pódio será também um dos mais surpreendentes da história centenária do Tour de France: ninguém pensava que, com Chris Froome como líder natural da Sky, fosse o seu compatriota Geraint Thomas a dominar a prova. Ninguém pensava que Tom Dumoulin sozinho (a SunWeb como equipa vale muito pouco ou quase nada) e depois do esforço épico que fez, também sozinho, no Giro de Itália, fosse capaz de mais uma epopeia de esforços (é actualmente o meu ciclista preferido). Ninguém esperava, por fim, que o fabuloso Primoz Roglic, que até 2012 foi atleta de saltos de esqui (campeão do mundo de juniores em 2011) e que só começou a ser levado a sério no pelotão a partir do Giro de 2016, desse a luta brava e rija que está a dar a toda a gente.

A etapa de hoje, a última de montanha em linha, somava uns belos 200 kms de tortura nos Pirenéus, contando com dois prémios de quarta categoria, um prémio de segunda categoria, outro de primeira categoria e dois de categoria especial, os simpáticos e acessíveis cumes de Tourmalet (2115 metros de altitude) e Aubisque (1719 metros de altitude). Os atletas que ainda tinham alguma coisa para ganhar atacaram-na com sangue nos dentes, fogo nos pulmões e pernas de aço. E foi um espectáculo. Um tour de force intenso e dramático, com toda a gente a atacar toda a gente, doses generosas de transcendência atlética e abundantes rodadas da mais pura determinação.

Se o sr. Christian Prudhomme, o infeliz director da prova, tivesse resistido à sua imaginação delirante e a alguma negligência natural, cedências que levaram a episódios tão tristes e ridículos que nem vale a pena relatá-los, este teria sido um dos Tours mais bonitos que já vi. Assim sendo, foi meramente magnífico.

E ainda há gente que gosta de futebol.