sexta-feira, dezembro 30, 2005

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Insónia na Amazónia.

No dicionário de rimas
do Senhor Visconde de Castelões
(Editorial Domingos Barreira),
as palavras passam a palavrões
e reduzem o Português a poeira.

Insónia, por fatalidade,
rima com Paflagónia,
com adansónia,
com escalónia.
E com santimónia, é verdade.

Esta minha vontade de não dormir
por força terá que admitir
a troca de favores com bolónia,
com sidónia
e com plutónia;
palavras sábias, sem dúvida nenhuma,
para todos e cada uma;
excepto para o infeliz desgraçado
que permanece acordado.

Excepto para o versador de fim-de-semana
de pesada pestana que:
não tem sono nem harmónia;
não gosta de banhar a lírica em água de colónia;
não sabe onde é que fica a Esclavónia;
não acerta na estirpe do vírús da monocotiledónea
e acha excessivamente excessivo levar o verso até Semprónia.

Não encontrei a cachimónia
mas tenho a certeza que o mestre da rima
sabendo dela, a colocaria logo por cima
de cassidónia.

Porque, sim, temos a estética
da ordem alfabética!

Ora, o Senhor Visconde de Castelões, que é um artista,
podia era ir à fava, com o seu dicionário surrealista!

terça-feira, dezembro 13, 2005

À escuta das Vozes da Poesia Europeia - II

Celebrando a feliz edição da revista Colóquio Letras - que traz à estampa, em três cuidados volumes, as traduções que David Mourão-Ferreira fez da poesia europeia.

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CATULO, IPSITILA, LÉSBIA E O MARIDO DELA.

Gaio Valério Catulo (84 A.C.- 55 A.C.) foi um dos mais influentes poetas romanos do seu tempo e por muitas e saborosas razões. Vanguardista doido, teve a coragem de mandar às urtigas o cânone homérico, trazendo para a poética as coisas mais pequenas e saborosas da vida quotidiana. Nada de telenovelas divinas ou da improvável glória dos guerreiros facínoras, maiores que a própria vida: a verdade é não haver heróis que se aguentem à bronca do dia-a-dia, nem força na multidão que transcenda o egotismo, e a poesia precisa é da humanidade corriqueira, do individualismo e da pilhéria, da contestação e do escândalo. Em vez do sal épico, a pimenta erótica. Por oposição ao formalismo estético, a diatribe lírica.
David Mourão Ferreira escolhe 3 obras deliciosas que reflectem bem o espírito desta romanesca figura, imparável beijoqueiro e valente fornicador. Lésbia, personagem que inspirou frequentemente o líbido e a veia do poeta, será muito provavelmente a mulher de um infame contemporâneo (Cláudio Pulcher), embora o seu nome decorra da alusão à poetisa Sappho de Lesbos (séc. VII A.C.). Sobre Ipsitila, não encontrei referências, mas perante a natureza do Convite, é ajuízado deixar que a memória da musa permaneça no anonimato. Eis portanto Catulo, o menino terrível da Grande Alcova do Império Romano.


CONVITE A IPSITILA

Como eu queria, ò doce Ipsitila,
que me fazes arder, delícia amada,
fazer contigo a sesta neste dia!
Se te apetece o mesmo, se te agrada,
a porta deixa então só encostada...
E não saias de casa. E me convida...
Prometo que serás bem fornicada
ao todo nove vezes de seguida!


A LÉSBIA

Vivamos, Lésbia, amando,
e que não nos perturbe
o cansado murmúrio
de quem envelheceu.
Podem morrer, nascer
seguidamente os sóis:
a nós porém, assim
que a breve luz nos foge,
logo nos é forçoso
dormir a inteira noite.
Beija-me cem, mil vezes,
inda mais cem, mais mil,
agora mil, e cem...
Depois, quando fizermos
tantos milhares que nem
os possamos contar,
baralhemos a conta,
para evitar que alguém,
sabendo o número exacto,
nos venha a invejar.


AO MARIDO DE LÉSBIA

Se Lésbia me difama em frente do marido,
eis logo o imbecil no auge da alegria!
Pois não entendes, burro? O silêncio, o olvido
seriam bem melhor... E se ela me injuria
é não só por se recordar ainda
mas porque no seu peito a chama não se extingue!

sábado, dezembro 03, 2005

I was a punk before you were a punk.

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"You want some action? I'll put your ass in traction baby,
I was a punk before you were,
I was a punk before you."

Spooner/Evans/Waybill - 1977

É apenas justo que eu diga assim: a front cover que vêem na imagem apresenta aquele que é, na minha envergonhada/orgulhosa opinião, o melhor disco de rock de todos os tempos. The Tubes é uma banda que nunca consegui deixar de ouvir e este foi o segundo álbum que comprei na minha vida e esta gravação ao vivo, para além de ser precursora dos grandes e multimediáticos concertos como os conhecemos hoje, é uma verdadeira ópera. Passou no Dramático de Cascais, com a pompa e a circunstância e a logística louca que os Tubes colocavam em palco. Não sei como é que foi possível não encontrar na net uma foto que seja da magnificência cénica dos concertos desta banda que - em 1978 - arrasava a cultura musical do mundo. Mas lembro-me das parangonas dos jornais ingleses perguntarem ao burguês se achava que a sua filha devia ver este concerto. Mas lembro-me do Fee Waybil com rolos de papel higiénico nas virilhas antes de saber quem eram esses tais de Sex Pistols. Mas lembro-me muitíssimo bem de ser punk antes que os Clash dessem um peido que fosse. Aliás, os Beatles existiram só para que os Tubes pudessem interpretar a canção "I Saw Her Standing There". Estou a falar de uma banda que não ficou para a história senão para a minha história. E estou, por isso, muito contente comigo e muito contente com eles.

quinta-feira, dezembro 01, 2005

Caso passes por aqui um dia.

Faz hoje setenta anos que morreste
e - como já era tua previsão -
é quando faz anos a tua morte que se lembram de ti.

Faz hoje setenta anos que morreste
e não deve ter sido lá muito agradável
ir a enterrar com tantos gajos na mesma urna

(O Álvaro, tu dizes que não, mas devia ser gordo,
o Ricardo por certo que não tomava banho,
o Bernardo tinha mau dormir e o Alberto,

Que passou a vida doente dos olhos,
não estava ainda preparado psicologicamente
para aquilo). A propósito,

Em que hospital internaste o Alexander Search?
Faz hoje setenta anos que morreste
e eu acho até que te enterraram vivo.

Porque - mesmo com a televisão a dizer
que faz hoje setenta anos que morreste,
não me cheira.

Tu enganaste-os bem, Fernandinho meu querido,
que ainda andas por aí aos pulos por dentro,
à procura do mistério. Que ainda

Brincas com a metafísica e inventas horóscopos
para deus. Que ainda trocas correspondência
com aquele inglês tresloucado e vigarista

(Nunca foste grande coisa a escolher os amigos),
que ainda andas por aí a fingir que és tu
e mascarado de ti, para que ninguém te reconheça.

Tu levaste-os foi com a conversa pagã do Caeeiro
e os ateísmos naturalistas do Reis, (tiveste olho!)
pois juro-te que foi contigo que em Portugal

Se desacreditou a imortalidade.
Só para que agora possas andar em Lisboa
à tua vontade, para cá e para lá.

Porque se faz hoje setenta anos que morreste,
eu sei que só de virgindade contas tu
mais de um século, meu grande maricas.

(Que diabo, Fernando, faz hoje
117 anos que nasceste,
e ainda não foste um animal, pá.)

Sim, Romeu de papel de carta,
que trocaste a eterna Ofélia pelo trans-sexual
do Álvaro de Campos! Um engenheiro!

Mais a mais com essa tua veia,
e as confissões queriduchas que lhe escrevias,
encantadoras para ti, mas que pensaria realmente

ela, Ofélia, Atena de olhos garços,
que provavelmente ia buscar a Ulisses
o que não tirava do teu corpo imaterial?

Faz hoje 70 anos que foste a enterrar, isso sim.
No velório a malta de que falavas estava lá,
inconsolável e contando anedotas.

O funeral foi lacónico e havia crianças
a chorar por birra. Não pelo tio Fernando,
mas pela ausência do cavalinho de pau.

E quando todos se retiraram, já predispostos
a celebrar-te duas vezes por ano:
à data do teu nascimento e à data da tua morte,

Continuaste estranhamente espertíssimo
e bem acompanhado; sacudiste a poeira do cadáver
que afinal sempre tinhas sido e foste à tua vida,

Malandro. Afinal, não podias entregar a alma
assim de borla. Não sem que primeiro fizesses
o devido comércio com o diabo, coisa proveitosa

Para toda a gente de bom senso e especialmente
proveitosa seria para ti se a vendesses
em troca de mais uma mascarilha

ou de qualquer outro adereço de prestidigitador.
Faz hoje setenta anos que morreste?
Nem pensar, por esta altura deves estar

Enfiado num quarto qualquer do chiado
encharcado em absinto e a pregar aos rebanhos,
e a escrever odes industriais e a fumar

Cigarros americanos. Sim a esta hora, deves
estar a fabricar mais não sei quantas maneiras
de ser imortal, que é isso que tu fazes melhor

E que é isso que tu não explicas a ninguém;
também não és parvo nem romancista russo.
Faz hoje setenta anos que morreste, uma ova!

Está-se mesmo a ver: logo tu, que em vida
te comprazias a enganar toda a gente,
ias agora ser um morto de verdade...

Mas nem por isso julgues, mestre querido,
que te quero mal. Só pela graça de te parir
valeu a pena fazer Portugal.

sábado, novembro 19, 2005

À escuta das Vozes da Poesia Europeia - I

Celebrando a feliz edição da revista Colóquio Letras - que traz à estampa, em três cuidados volumes, as traduções que David Mourão-Ferreira fez da poesia europeia - publico aqui alguns excertos da obra que me agradam de sobremaneira, às quais adiciono umas quantas notas biográficas e bibliográficas.

ARISTÓFANES E OS PRAZERES DA PAZ.
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Considerado o mais brilhante autor de comédias da literatura grega, Aristófanes (sec IV A.C.) era um erudito conservador, apesar do uso de uma linguagem muitas vezes obscena e escatológica, que transformou o teatro grego num palco de intervenção política e social. Feroz adversário da Democracia de Sócrates e Eurípedes, acaba no entanto por ser vítima da censura imposta pelo despotismo aristocrático, consequente ao desfecho desfavorável para Atenas da Guerra do Peloponeso.
Talvez por isso, desenvolve um discurso pacifista absolutamente delicioso, que evita as banalidades filosóficas humanitárias, assumindo a preferência pelos prazeres epicuristas decorrentes do lazer: a guerra é uma chatice que impede o homem de preguiçar deveras, comer bem e fornicar bastante.
Dois exemplos magníficos de David Mourão-Ferreira:


HINO AO FALO

"Ó compincha, do vinho bom amigo,
Ó conviva das noites de folia,
Sedutor de mulheres e rapazinhos!
Depois de cinco anos de serviço,
aqui estou a saudar-te. Que alegria!

Eis-me já de regresso ao domicílio.
às malvas atirei, mais às urtigas,
aquilo de que fiz meu compromisso,
A paz, bem vês, assinei-a sozinho.
E os que fazem a guerra, que se lixem!

Quanto a mim, ó compincha, o que prefiro
é encontrar no bosque uma mocinha
- ou antes: surpreendê-la no delito
de lenha rapinar aos meus domínios -
e prendê-la, despi-la, possuí-la! (...)"


ELOGIO DA PAZ

"Que alegria! Oh, que alegria
do capacete estar livre,
dos feijões e das cebolas!
Batalhar não é comigo.
Prefiro, ao canto do fogo,
de parola co'os amigos,
garrafas ir esvaziando,
(...)
não sem ir aproveitando
- se por sorte, distraída,
minha mulher 'stá no banho -,
pra me pôr na criadita!"

Mais vale tarde do que nunca.

No Expresso desta semana, nota-se bem que - finalmente e talvez tarde demais - os formadores da opinião pública começam a perceber a natureza da ameaça islâmica. Nos escritos de Inês Pedrosa, Cândida Pinto ou Henrique Monteiro (na semana passada) é bem vísivel o susto. Mas, como sempre, o inteligente de serviço é João Pereira Coutinho que coloca a questão do ponto de vista civilizacional. Eu, que - e desculpem-me a indelicadeza - ando há que tempos a dizer e a escrever que o problema árabe não é económico, nem social, mas sim e precisamente civilizacional, agradeço o tardio contributo do Expresso e dos seus esclarecidos articulistas para a Causa do Ocidente.

quinta-feira, novembro 10, 2005

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A Deriva do Continente.

Mais uma noite em que Paris ardeu.
a CNN transmite o velório de Platão
e, sem engano, também Adriano morreu
na trama de um programa de Televisão.

A França chora Descartes, decapitado
e Emile Zola acaba de perecer.
Jesus ficou na cruz, e eu sintonizado
fico de bico calado a ver: Paris a arder.

Mais uma noite em que Paris ardeu:
Kant caiu nas chamas da redenção,
Rousseau naufragou e Espinoza faleceu
na auto-estrada danada da informação.

Viúvas vão a carpir! Homero foi fuzilado
e deixado no fosso a apodrecer.
Enquanto Aristóteles é enterrado
fico quieto e calado a ver: Paris a arder.

Mais uma noite em que Paris ardeu:
chegam as notícias do fim de Napoleão
e do fausto funeral de Ptolomeu
em directo pelo recto da televisão.

Todas as noites Goethe é apedrejado
e outras será até que se deixe morrer.
Churchill foi julgado e condenado
e eu fico calado a ver: Paris a arder.

Mais uma noite em que Paris ardeu:
a Voltaire sobreveio-lhe um apagão,
Sócrates pegou no cálice e bebeu
a cicuta da puta da informação.

Alexandre o Grande foi executado
Nietzsche foi internado e Marx a saber
por vinte vezes foi sem dó supliciado.
Estou só e calado a ver: Paris a arder.

Mais uma noite em que Paris ardeu:
por ordens desta santa inquisição
Cromwell, Lutero e Montesquieu
são crucificados nos apanhados da televisão.

Esta noite será, um dia, fúnebre feriado,
Cícero e Suetonio deixaram de viver
e à hora em que Gibbon foi guilhotinado
Sei que fiquei calado a ver: Paris a arder.
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terça-feira, novembro 08, 2005

Coitadinhos dos bandidos.

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Pobres rapazes (adolescentes ainda!) que destroem escolas e sedes municipais, fábricas e automóveis, piscinas comunitárias e hospitais públicos porque não têm emprego nem lhes mostram o devido respeito. Sim, coitadinhos deles a quem deram nacionalidade e saúde grátis, liberdade para praticar todo o tipo de disparates e grandes bairros onde podem passar droga à vontadinha. Ah, desafortunados infantes que largam fogo a carrinhas escolares e afinam a pontaria nos cús dos polícias porque o Estado não os trata como eles acham que merecem! Desgraçados mártires que, com meticulosa organização de guerrilha experimentada, vão destruíndo o que lhes aparece à frente porque não gostaram de ser tratados pelo nome próprio: Escumalha. Coitadinhos dos excluídos e enjeitados e incompreendidos da república bárbara e desumana que é a França, que mesmo assim os protege com falinhas mansas e medos eleitorais, que porém lhes perdoa as atrocidades por complexos de culpa e outros tiques marxistas do grande fardo do homem branco! Ah, infelizes filhos de uma sociedade injusta que os educa e os emprega e os deixa votar, que lhes garante o direito de serem brutos, que lhes permite a oratória do ódio nas mesquitas de Paris e o recrutamento para-militar nos Campos Elíseos, que lhes premeia a marginalidade e a intolerância com mais direitos e mais liberdades. Sim, rogo-vos, mostrem alguma comiseração por estes tristes inocentes, castigados por uma Europa que não lhes humilha as mulheres, nem lhes vampiriza a alma com a tirania de deus nem os conduz ao sacrifício divino de explodir dentro de um autocarro!
Por quem sois, tenham coração e deixem que os pobres infelizes vos destruam as ruas e as cidades, a propriedade e a lei, e - pelo caminho - esta ideia de uma civilização minimamente decente que andamos na Europa a tentar parir vai para quatro séculos. Vamos!, força com isso de abrir de uma vez por todas essas fronteiras (igalité oblige), de trazer definitivamente a cultura superior do povo árabe para a Europa e instalá-la convenientemente no lugar da República! Ofereçam a Alah o governo de França! Deixem que as rapariguinhas levem a sua burka e os seus mais bárbaros maneirismos para as escolas, para que os vossos filhos aprendam a viver como gloriosamente se vive na geografia do Islão. Façam o favor de permitir que estes gentis expoliados do capitalismo reduzam a cinzas os princípios básicos que fundamentam as vossas vidinhas de burgueses envergonhados e depois, cruzem os braços para assistar com complacência ao espectáculo do declínio do império da boa vontade.

quarta-feira, novembro 02, 2005

Fragilidades do século XXI

O recente grande terramoto no Paquistão fez mais de 70.000 vítimas mortais. Calcula-se que o de Lisboa tenha sido responsável pela morte de cerca de 10.000 pessoas. Como também foi óbvio no tsunami do Índico, à medida que a civilização humana evolui tecnológica e demograficamente sobre os séculos, fica mais frágil perante as catástrofes naturais.
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CÂNDIDO NO MELHOR DOS MUNDOS
(in Ocidental Praia - 2003)

A história de Cândido, segundo Voltaire, é uma excelente iniciação ao cepticismo. Inspirada nos disparates da filosofia de Leibniz, que infectou o pensamento racionalista com a ideia de que o homem vivia no melhor dos mundos graças á constante providência divina, esta breve odisseia demonstra-nos com satírica eloquência que o mundo do século XVIII seria tudo menos o melhor possível.
Para tal, o bravo iluminista herege coloca com alegria e espírito o seu infeliz herói na roda dos horrores terrenos. Cândido é um ingénuo e bem intencionado adolescente alemão, bastardo de nascimento mas mesmo assim educado nos princípios da Razão Suficiente, que por motivos de saias é escorraçado da casa nobre onde fora até então tolerado e afilhado. Será a partir daí cruelmente submetido à dura realidade dos factos: atirado à soldadesca búlgara recebe mil vergastadas, depositado por uma tempestade em Lisboa, desembarca em pleno terramoto de 1755, nos escombros do qual quase acaba por perecer, por mãos da Santa Inquisição. Recupera e parte para América do Sul para ganhar o soldo a matar franciscanos e finalmente encontra o El-Dorado, só para que lhe seja espoliado o seu lugar no paraíso. Entrementes, como bom cristão e esgrimista, vai enviando para o inferno um punhado de infelizes, entre os quais um bispo em Lisboa e um Padre no Paraguai. Assim sucessivamente, Cândido mergulha na efeverscência das guerras vorazes, das pestes em fúria, das fomes e das misérias, do caos e da loucura. Quando a sua viagem termina percebe enfim que Leibniz estava enganado. A não ser, claro, que estivesse certo. Mas nesse caso, e se este é verdadeiramente o resultado de uma preocupada e hiperactiva providência, que diabo, não poderia Deus fazer um melhor trabalho?


POEME SUR LE DESASTRE DE LISBONNE
OU EXAMEN DE CET AXIOME: "TOUT EST BIEN"
(Voltaire - 1756)

O malheureux mortels! ô terre déplorable!
O de tous les mortels assemblage effroyable!
D'inutiles douleurs éternel entretien!
Philosophes trompés qui criez: "Tout est bien"
Accourez, contemplez ces ruines affreuses
Ces débris, ces lambeaux, ces cendres malheureuses,
Ces femmes, ces enfants l'un sur l'autre entassés,
Sous ces marbres rompus ces membres dispersés;
Cent mille infortunés que la terre dévore,
Qui, sanglants, déchirés, et palpitants encore,
Enterrés sous leurs toits, terminent sans secours
Dans l'horreur des tourments leurs lamentables jours!
Aux cris demi-formés de leurs voix expirantes,
Au spectacle effrayant de leurs cendres fumantes,
Direz-vous: "C'est l'effet des éternelles lois
Qui d'un Dieu libre et bon nécessitent le choix"?
Direz-vous, en voyant cet amas de victimes:
"Dieu s'est vengé, leur mort est le prix de leurs crimes"?
Quel crime, quelle faute ont commis ces enfants
Sur le sein maternel écrasés et sanglants?
Lisbonne, qui n'est plus, eut-elle plus de vices
Que Londres, que Paris, plongés dans les délices?
(...)
Allez interroger les rivages du Tage;
Fouillez dans les débris de ce sanglant ravage;
Demandez aux mourants, dans ce séjour d'effroi
Si c'est l'orgueil qui crie "O ciel, secourez-moi!
O ciel, ayez pitié de l'humaine misère!"
 "Tout est bien, dites-vous, et tout est nécessaire."
Quoi! l'univers entier, sans ce gouffre infernal
Sans engloutir Lisbonne, eût-il été plus mal?
Etes-vous assurés que la cause éternelle
Qui fait tout, qui sait tout, qui créa tout pour elle,
Ne pouvait nous jeter dans ces tristes climats
Sans former des volcans allumés sous nos pas?
Borneriez-vous ainsi la suprême puissance?
Lui défendriez-vous d'exercer sa clémence?
L'éternel artisan n'a-t-il pas dans ses mains
Des moyens infinis tout prêts pour ses desseins?
Je désire humblement, sans offenser mon maître,
Que ce gouffre enflammé de soufre et de salpêtre
Eût allumé ses feux dans le fond des déserts.
Je respecte mon Dieu, mais j'aime l'univers.
(...)
Non, ne présentez plus à mon coeur agité
Ces immuables lois de la nécessité
Cette chaîne des corps, des esprits, et des mondes.
O rêves des savants! ô chimères profondes!
Dieu tient en main la chaîne, et n'est point enchaîné
Par son choix bienfaisant tout est déterminé:
Il est libre, il est juste, il n'est point implacable.
Pourquoi donc souffrons-nous sous un maître équitable?
Voilà le noeud fatal qu'il fallait délier.
Guérirez-vous nos maux en osant les nier?
Tous les peuples, tremblant sous une main divine
Du mal que vous niez ont cherché l'origine.
Si l'éternelle loi qui meut les éléments
Fait tomber les rochers sous les efforts des vents
Si les chênes touffus par la foudre s'embrasent,
Ils ne ressentent point des coups qui les écrasent:
Mais je vis, mais je sens, mais mon coeur opprimé
Demande des secours au Dieu qui l'a formé.
(...)
Tout semble bien pour lui, mais bientôt à son tour
Un aigle au bec tranchant dévore le vautour;
L'homme d'un plomb mortel atteint cette aigle altière:
Et l'homme aux champs de Mars couché sur la poussière,
Sanglant, percé de coups, sur un tas de mourants,
Sert d'aliment affreux aux oiseaux dévorants.
Ainsi du monde entier tous les membres gémissent;
Nés tous pour les tourments, l'un par l'autre ils périssent:
Et vous composerez dans ce chaos fatal
Des malheurs de chaque être un bonheur général!
Quel bonheur! ô mortel et faible et misérable.
Vous criez: "Tout est bien" d'une voix lamentable,
L'univers vous dément, et votre propre coeur
Cent fois de votre esprit a réfuté l'erreur.
(...)
Mais comment concevoir un Dieu, la bonté même,
Qui prodigua ses biens à ses enfants qu'il aime,
Et qui versa sur eux les maux à pleines mains?
Quel oeil peut pénétrer dans ses profonds desseins?
De l'Etre tout parfait le mal ne pouvait naître;
Il ne vient point d'autrui, puisque Dieu seul est maître:
Il existe pourtant. O tristes vérités!
O mélange étonnant de contrariétés!
Un Dieu vint consoler notre race affligée;
Il visita la terre et ne l'a point changée!
Un sophiste arrogant nous dit qu'il ne l'a pu;
"Il le pouvait, dit l'autre, et ne l'a point voulu:
Il le voudra, sans doute"; et tandis qu'on raisonne,
Des foudres souterrains engloutissent Lisbonne,
Et de trente cités dispersent les débris,
Des bords sanglants du Tage à la mer de Cadix.
(...)
Quelque parti qu'on prenne, on doit frémir, sans doute
Il n'est rien qu'on connaisse, et rien qu'on ne redoute.
La nature est muette, on l'interroge en vain;
On a besoin d'un Dieu qui parle au genre humain.
Il n'appartient qu'à lui d'expliquer son ouvrage,
De consoler le faible, et d'éclairer le sage.
L'homme, au doute, à l'erreur, abandonné sans lui,
Cherche en vain des roseaux qui lui servent d'appui.
Leibnitz ne m'apprend point par quels noeuds invisibles,
Dans le mieux ordonné des univers possibles,
Un désordre éternel, un chaos de malheurs,
Mêle à nos vains plaisirs de réelles douleurs,
Ni pourquoi l'innocent, ainsi que le coupable
Subit également ce mal inévitable.
Je ne conçois pas plus comment tout serait bien:
Je suis comme un docteur, hélas! je ne sais rien.
Platon dit qu'autrefois l'homme avait eu des ailes,
Un corps impénétrable aux atteintes mortelles;
La douleur, le trépas, n'approchaient point de lui.
De cet état brillant qu'il diffère aujourd'hui!
Il rampe, il souffre, il meurt; tout ce qui naît expire;
De la destruction la nature est l'empire.
Un faible composé de nerfs et d'ossements
Ne peut être insensible au choc des éléments;
Ce mélange de sang, de liqueurs, et de poudre,
Puisqu'il fut assemblé, fut fait pour se dissoudre;
Et le sentiment prompt de ces nerfs délicats
Fut soumis aux douleurs, ministres du trépas:
C'est là ce que m'apprend la voix de la nature.
J'abandonne Platon, je rejette Epicure.
Bayle en sait plus qu'eux tous; je vais le consulter:
La balance à la main, Bayle enseigne à douter,
Assez sage, assez grand pour être sans système,
Il les a tous détruits, et se combat lui-même:
Semblable à cet aveugle en butte aux Philistins
Qui tomba sous les murs abattus par ses mains.
Que peut donc de l'esprit la plus vaste étendue?
Rien; le livre du sort se ferme à notre vue.
L'homme, étranger à soi, de l'homme est ignoré.
Que suis-je, où suis-je, où vais-je, et d'où suis-je tiré?
Atomes tourmentés sur cet amas de boue
Que la mort engloutit et dont le sort se joue,
Mais atomes pensants, atomes dont les yeux,
Guidés par la pensée, ont mesuré les cieux;
Au sein de l'infini nous élançons notre être,
Sans pouvoir un moment nous voir et nous connaître.
Ce monde, ce théâtre et d'orgueil et d'erreur,
Est plein d'infortunés qui parlent de bonheur.
Tout se plaint, tout gémit en cherchant le bien-être:
Nul ne voudrait mourir, nul ne voudrait renaître.
Quelquefois, dans nos jours consacrés aux douleurs,
Par la main du plaisir nous essuyons nos pleurs;
Mais le plaisir s'envole, et passe comme une ombre;
Nos chagrins, nos regrets, nos pertes, sont sans nombre.
Le passé n'est pour nous qu'un triste souvenir;
Le présent est affreux, s'il n'est point d'avenir,
Si la nuit du tombeau détruit l'être qui pense.
Un jour tout sera bien, voilà notre espérance;
Tout est bien aujourd'hui, voilà l'illusion.
Les sages me trompaient, et Dieu seul a raison.
Humble dans mes soupirs, soumis dans ma souffrance,
Je ne m'élève point contre la Providence.
Sur un ton moins lugubre on me vit autrefois
Chanter des doux plaisirs les séduisantes lois:
D'autres temps, d'autres moeurs: instruit par la vieillesse,
Des humains égarés partageant la faiblesse
Dans une épaisse nuit cherchant à m'éclairer,
Je ne sais que souffrir, et non pas murmurer.
Un calife autrefois, à son heure dernière,
Au Dieu qu'il adorait dit pour toute prière:
"Je t'apporte, ô seul roi, seul être illimité,
Tout ce que tu n'as pas dans ton immensité,
Les défauts, les regrets, les maux et l'ignorance."
Mais il pouvait encore ajouter l'espérance.

De rumores, relatos e ruínas.

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- Em vez de andarem a assassinar as espécies migratórias às centenas de milhar, com medos histéricos da Gripe das Aves (onde é que estão os ambientalistas?), as autoridades europeias deviam preocupar-se sim com o número anual de suícidios entre os respectivos súbditos, que já excede o mesmo cálculo de vítimas mortais em acidentes de automóvel e faz desta prática uma das principais causas de morte no velho continente.
Acho ainda espantoso que aqueles irresponsáveis (leia-se: jornalistas) que criaram e multiplicaram e inculcaram o pânico e a confusão na consciência social, venham agora fazer programas de esclarecimento, sugerindo que esse medo é desproporcionado. Os mesmos agentes da histeria (leia-se, os jornalistas) vêm agora gritar calma, como se não fosse nada com eles. Irra, que é demais.

- Parece que as SCUDs vão custar dez por cento do PIB daqui a uma dezena de anos. E ninguém vai parar à prisão por causa disto?

- Os juízes deste país já deveriam estar cansadinhos de provar a sua iniquidade. Mas não é que insistem? Dos livres arbítrios escandalosos no lodo do futebol, às decisões jurídicas mais inacreditáveis, da corrupção evidente ao compadrio camarada, da atracção compulsiva pela comunicação social à arrogância militante, vão reinando gordinhos, privilegiados e incompetentes sobre a justiça nacional. Não deixam, claro está, de aconselhar o sacrifício e a honorabilidade até que lhes toca a eles a vez de se sacrificarem e de serem honrados. Nesse momento, mostram-se tão reles como qualquer ratazana de esgoto. O generalizado direito à greve já é em si uma coisa abstrusa. Um juiz fazer greve é matéria fenomenológica do planeta dos macacos (que me desculpem os símios).

- De uma maneira geral, o assinalar dos 250 anos sobre a primeira grande catástrofe natural da era moderna, tem demonstrado que ainda há inteligência a oeste de Badajoz. De tudo o que li e vi de bom sobre o assunto - e não foi pouco - destaco o esplêndido ensaio "O Pequeno Livro do Grande Terramoto", do blogger Rui Tavares. Uma obra realmente imperdível. O blog de apoio ao livro também tem interesse.

- Cuidado com os rumores de uma independência Catalã. A desintegração do estado Espanhol que lhe será inevitável ameaçará e de que maneira a independência de Portugal.

- As Terças-Feiras são bons dias de televisão na RTP. Na 2: a viagem do notabilíssimo Michael Palin entre o Ganges e os Himalaias. Na 1, o tagarelar entretido e mais ou menos pertinente do Trio de Ataque.

- O que se passa com os salários dos jogadores do Vitória de Setúbal é vergonhoso. E a responsabilidade é mais de Liga do que do triste Chumbita. Porque das duas, uma: ou a Liga não obriga os clubes à apresentação de garantias bancárias - o que é caricato - ou, obrigando, não faz cumprir a lei - o que é ridículo.

sexta-feira, outubro 28, 2005


“Escrevi a abertura da Gazza Ladra na véspera da noite de estreia, num sotão do Scala, onde fui fechado pelo director. Seja a presença do copista que espera ansioso pelo trabalho ou o choramingar do empresário que puxa pelos cabelos, nada potencia a inspiração como a necessidade. No meu tempo, todos os empresários de Itália chegavam carecas aos trinta anos.”

GIOACHINO ROSSINI, o mais conhecido e popular compositor da transição entre os séculos XVIII e o XIX - e entre o iluminismo e o romantismo - está hoje reduzido à categoria de autor menor. Ouve-se pouco, fala-se pouco dele, é ausente nas colectâneas para as massas e persona non grata nas recenssões dos eruditos.
Tratando-se este lamentável facto de uma injustiça de séria gravidade epistemológica, não deixa de ser fácil de entender. O triunfo da escolástica germânica sobre a arte da ópera, que se iniciou fundamentalmente com a Flauta Mágica de Mozart, e ao qual o próprio Rossini assistiu, como contemporâneo de Beethoven e Wagner; e sobretudo a sua condição de performer de massas (a ópera não era um discurso de elites na Itália oitocentista), retiraram-lhe o devido quinhão na aritmética da eternidade.
A história da música dita Clássica é feita por Paleontólogos do Contraponto, arqueólogos da Harmonia e antropólogos do Dó Menor. Gente, enfim, que não consegue compreender a importância da música como alimento espiritual dos povos nem quer saber da força vital que flui no mainstream sócio-cultural da história. Para estas borolentas baratas de biblioteca, que vão ao Fidelio de cartola e cerimónias - solenes como quem nem gosta de música - é inimaginável a plateia de uma representação de La Pietra del Partagone, que vibra de sapateiros e chulos aos pulos, de prostitutas e proscritos aos gritos, de bêbados e bandidos aos gemidos, de gargalhadas e pateadas, de aplausos mal criados e assobios a fervilhar. Rossini não escrevia música para os deuses, nem para os reis, nem para os filósofos. Não estava preocupado com os caprichos dos príncipes nem com os gostos das cortes. Sabendo bem da alegria da música, o grande mestre da Ópera Buffa propunha intensidade, ritmo, eloquência e entretenimento, para todos.
Não que lhe faltassem os argumentos dos predestinados, não que lhe pulsasse fraca a veia dos virtuosos. Rossini produzia música orquestral prodigiosa a um ritmo desenfreado: a partitura do Barbeiro de Sevilha saiu-lhe em 15 dias e, entre 1815 e 1823, o Mestre escreveu 20 das 40 óperas que compôs durante a sua vida, a maior parte das quais verdadeiras obras primordais do talento humano e, quase todas, escritas a bordo de uma carruagem, num quarto de hotel ou sobre a mesa de uma estalagem. Herdando a vocação cosmopolita dos seus pais, Rossini desmultiplicou-se em viagens, concertos e encomendas por toda a Europa, procurando conhecer pessoalmente todos os que admirava, dirigir todas as orquestras de renome, estrear em todas as salas míticas, levar a sua música a todos os que a soubessem apreciar.
Vítima frequente da má-língua, Rossini é acusado de plágios e repetições, fórmulas e pastiches, truques e tiques. Na verdade, não era raro transferir áreas e catavinas de uma ópera para outra. Mas, senhores, como é que julgam que foi possível a Bach compor uma cantata por semana, nos velhos e atarefados tempos de Leipzig?
E que raio fazia Haendel, quando lhe faltava o tempo para cumprir com as solicitações da freguesia?
(Seja como for, nem toda a gente tem que ser deus como Mozart, que escrevia ópera italiana dentro dos canônes italianos e ópera alemã dentro dos canônes alemães, sem repetir uma oitava).
Conta-se que, apresentado por Salieri a Beethoven - de quem era grande admirador - este o recebeu com alguma frieza, congratulando-o pelo Barbeiro de Sevilha mas recomendando-lhe que não criasse Ópera Séria, para a qual os italianos, por condição, não tinham qualquer talento.
Humildemente, Rossini assentiu, agradeceu o conselho e, de uma forma geral, até o seguiu. Mas para mim, porém, La Gazza Ladra continua a ser uma obra bem mais inspirada, e de conteúdo onírico bem mais feliz, que qualquer uma das severas e punitivas partituras de todos os Wagners que andam para aí há que tempos a castigar a sensibilidade ocidental.

domingo, outubro 23, 2005

Carreira Neves no Expresso

Agora que sabemos que o chato do arquitecto se vai embora (em boa hora) para ser substituído por Henrique Monteiro (uma boa notícia), talvez seja possível voltar a ter um semanário decente neste país. Por enquanto, a única coisa realmente digna que encontramos na sacola imensa que nos entregam quando apenas queremos comprar um jornal, é o suplemento Actual. Esta semana o trabalho dedicado ao terramoto de Lisboa é competentíssimo em forma gráfica e conteúdo substantivo. Há 15 dias, as peças sobre a integração ou exclusão da Turquia na Comunidade Europeia e a vida de Hugo Pratt são de aplaudir; mas, o melhor mesmo, foi a entrevista da semana passada com o Padre Carreira das Neves, um reputado biblista e homem notável, cujo brilhantismo, clarividência teológica e coragem missionária vão fazer muita falta à igreja e à Universidade Católica, onde leccionou durante décadas e de que agora se retira. Entre não sei quantas afirmações de grande valentia moral e génio académico, deixo aqui aquelas que me pareceram mais poderosas.

Sobre o Genesis: "A descrição da construção do Céu e da Terra nada tem a ver com a verdade histórica."

Sobre o pecado original : "Nenhuma mãe dá à luz uma criança em estado de pecado."

Sobre Moisés e o Êxodo: "Se realmente o Êxodo tivesse tanta importância como a Bíblia manifesta, com certeza que os faraós, que conservavam anais e escreviam nos templos, algum registo haveriam de ter deixado. Ora, não aparece nada, nenhuma pedra, nenhum escrito sobre Moisés."

Sobre a infância de Cristo: "Os relatos de infância de Jesus, desde o lugar onde nasceu à matança dos inocentes e mesmo a fuga para o Egipto não são história factual. São construções eclesiais funcionais."

Sobre a virgindade de Maria: Interessa perguntar porque é que os judeus na diáspora traduziram Almah - palavra hebraica que significa jovem - para parthenos - palavra grega que designa donzela virgem."

Sobre os milagres de Cristo: "Quando se refere a multiplicação dos pães e dos peixes, estamos de facto a falar de milagres eclesiais. Este relato está relacionado com a acção da eucaristia. Na eucaristia, todos devem comer. Este milagre não foi um acontecimento com varinha mágica, com Jesus a dizer: Venha mais uma fornada de pães. Tem de ser examinado e de ser visto numa perspectiva messiânica."

Sobre a Ressurreição de Cristo: "Nunca Jesus ressuscitado falou com as pessoas ou partilhou refeições com elas."

Sobre a origem dos testamentos: "A bíblia não caiu do céu."
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Max Stirner: o Anti-Cristo Super-Homem - III

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Uma descoberta.

Descobri Gerrit Komrij ao acaso, na Bertrand do Chiado. Num dos escaparates, a caveira que a Assírio escolheu para a capa de "Contrabando" chamava por mim. Abri o livro e li:

"Subiu-te do peito um Excelso suspiro.
Eram-te as costelas aros cromados.
Ciclista-poeta, fugias à frente
De um milhão de belgas desenfreados."

Andei a tarde toda com o livro na mão, encantado com o escrevinhar insólito deste holandês inspirado e satírico, que me diverte e que me assusta. É muito bom, descobrir poesia assim. Sem receitas de crítico nem conselhos de amigo. Só com a ajuda de uma livraria onde uma pessoa pode de facto conviver com os livros.

quinta-feira, outubro 20, 2005

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Em cima, a primeira representação dos pelos púbicos da mulher na história da arte ocidental. Em baixo, uma réplica decente que Goya foi obrigado a executar, perante o escândalo que causou a nudez da senhora amante do Duque de Alcudia, que tinha encomendado o retrato ao Mestre, e que de pronto o recusou.
Muito sofreu Goya por causa da "Maia Nua". 15 anos depois de a ter concluído é chamado ao tribunal da Santa Inquisição para responder pela heresia e, por ela, perder o seu muito querido lugar de pintor da Corte espanhola.
A imortalidade sai sempre muito cara.

quinta-feira, outubro 13, 2005

O Prémio Nobel da Falta de Vergonha

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A atribuição do Prémio Nobel da Paz a Mohammed ElBaradei e à sua Agência Internacional de Energia Atómica é um daqueles gestos completamente abstrusos do Comité Nobel Norueguês (este prémio não é atribuído pelos suecos mas os noruegueses fazem o favor de se manterem coerentes com a tradicional imbecilidade dos seus vizinhos), que só vem comprovar a total degradação moral, filosófica e política da Instituição.
Aparentemente, os vencedores foram distinguidos pelos "esforços para impedir que energia nuclear seja usada para fins militares e garantir que a destinada a fins pacíficos seja usada da maneira mais segura possível". Ora, deixem-me recordar que passaram apenas dois anos desde que esta deplorável criatura agora laureada, em discurso ao Conselho de Segurança da ONU, insistia que o programa nuclear do Irão se destinava exclusivamente à produção de energia para consumo doméstico e industrial... Nessa altura escrevi eu no Ocidental Praia:

Mohamed ElBaradei e a sua hilariante Agência Internacional da Energia Atómica ainda acreditam que as instalações nucleares iranianas estão a ser desenvolvidas com um fim pacífico. A ingenuidade ou cumplicidade deste senhor não tem paralelo: O Irão, riqíssimo em petróleo e em carvão, não precisa de criar formas subsidiárias e comparativamente dispendiosas para acender a luz e é evidente que o regime iraniano - um dos mais perigosos, ferozes, fanáticos e totalitários do mapa político - pretende apenas aumentar a pressão nuclear sobre o Médio Oriente.

Hoje, que já toda a gente sabe ao que é que vem o programa nuclear iraniano, premeia-se este árabe tendencioso e inconsciente não por qualquer mérito ligado às suas competências (obviamente nulas), mas sobretudo porque chateou imenso os americanos a propósito das desaparecidas armas de destruição maciça no Iraque.
O problema da proliferação das armas nucleares é aliás de uma bizarria monstruosa. Certos países como a Coreia do Norte e o Irão e outros que tais, limitam-se a iniciar os seus programas pseudo-apocalípticos como forma de obterem posteriormente, como contrapartida da destruição desses programas, ajudas financeiras internacionais e benefícios comerciais.Tudo com a descarada conivência da infeliz agência dirigida por ElBaradei, que devia estar preso numa gruta qualquer de Guantanamo.
Hoje em dia, ser premiado Nobel - em letras ou em políticas - não é uma honra. É uma vergonha.
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Sim, estas duas obras foram pintadas pelo mesmo génio. Francisco Goya (1746/1828) foi um muito bem sucedido retratista de reis e cronista de cortes - e assim viveu grande parte da sua vida - até que a doença, a traição e o desespero lhe estragaram o olho idílico.
Depois de experimentar os horrores da Guerra da Península, de ser perseguido pelas obsessões e delírios de Fernando VII e da Santa Inquisição e de ficar progressivamente insano, cego e surdo - envenenado pelos pigmentos das tintas que usava - Francisco Goya enclausurou-se e começou a pintar a sério.
E, sendo um dos grandes pioneiros do aborrecido, bucólico e ingénuo Romantismo Europeu, Francisco Goya soube enlouquecer um bocado e viver o suficiente para inventar o Expressionismo.

sexta-feira, outubro 07, 2005

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Do discurso eleitoral.

Portugal deve ser o único país no mundo em que o marketing político teima em regredir de qualidade. E nem vale a pena falar dos casos óbvios, que poluem despudoradamente os cenários urbanos, quando crescem como cogumelos algumas verdadeiras pérolas da comunicação ideológica nos mais escondidos lugares da nação profunda. No lugar de Carne Assada (sim, Carne Assada, concelho de Mafra) está plantado um outdoor que diz assim: "A FREGUESIA AOS FREGUESES". Deuses da República, digam-me, a democracia é isto?

quinta-feira, outubro 06, 2005

O Relatório Kinsey não é o Diário de Bridget Jones.

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Eis o estado a que as coisas chegaram: na Áustria; um País tão politicamente correcto - ou tão reaccionário, não percebo bem - que até tem um Ministério dos Assuntos Femininos; o hino nacional vai ser corrigido de forma a não ofender a condição da Mulher. Assim, onde antes se cantava “coros irmãos”, cantar-se-á “coros alegres”; o verso que elevava os “grandiosos filhos da Nação” passará a elevar os “grandiosos filhos e filhas da Nação” e a palavra pátria (Vaterland), porque dá ênfase ao conceito patriarcal da república, será substituída por “Terra Lar”.
É claro que ninguém torna a vida mais fácil à difícil vida da mulher ocidental com este tipo de ridicularias. Nenhuma mulher inteligente pode achar que estes artigos de barata cosmética lhe devolvem a dignidade perdida, se é que ela acha que perdeu alguma.
Tais símbolismos abstrusos de baixa política, pelo contrário, rebaixam a condição da mulher, simplesmente porque conduzir o assunto da condição feminina como se de uma minoria étnica se tratasse, é de uma vilania inominável.
Em vez da discriminação positiva, da gramática revisionista e do moralismo abjecto e arcaico das comunas de Paris, o que se deve dar às mulheres, são direitos e oportunidades iguais. Ponto final. Tudo o mais é lamechice insuportável, ou pior ainda, tudo o mais é querer tranformá-las. É querer alterar a sua antropologia. Tudo o mais é que é ser paternalista, fascizóide, segregacionista. Tudo o mais é não perceber coisa nenhuma de biologia, é não saber aceitar que homem e mulher cumprem papeis diferentes no quadro da mecânica natural da sua espécie. É não conseguir compreender que o Homo Sapiens é um produto relativamente bem sucedido dessas diferenças simbióticas, dessa multiplicidade diversa, que também é responsável pelo género que têm as palavras, tanto como pela ordem semântica da linguagem. Tudo o mais é querer transformar mulheres em homens.
A Eva dos nossos dias - chamemos-lhe Bridget Jones - é o paradigma da mulher em falência de missão ontológica que a escolástica socialistóide dos estados europeus tem parido a torto e a direito. É uma tonta que não percebe qual o seu papel no enredo: a biologia diz-lhe uma coisa, as aspirações de animal moderno exigem outra. Sexualmente esquizofrénica, não sabe se deve seduzir ou ser seduzida, entregar-se ao casamento ou abandonar-se à luxúria, assumir-se predadora ou entregar-se presa fácil. Operacionalmente inepta, não sabe se há-de cozinhar ou sair em reportagem, seguir carreira ou construir família. É a confusão e a falta de senso, é a neura e a deselegância crónica. É o caos e o divórcio.
Desde a revolução sexual do século XX que a mulher ocidental anda metida numa batalha contra si própria, e tudo por causa de quem a quer salvar do seu destino trágico, não se percebendo bem que tragédia maluca aguarda Bridget, sabendo-se que é ela, em última análise, a fiel depositária do mistério da vida.
Curiosamente, o grande pioneiro desta revolução, sabia bem demais que as diferenças entre géneros na espécie humana eram não só evidentes como elementos causais da civilização. Quando Alfred Kinsey lançou em 1946 "O Comportamento Sexual do Homem" e depois, em 52, "O Comportamento Sexual da Mulher", produtos do primeiro estudo científico alguma vez realizado sobre a sexualidade humana, a dicotomia estava assumida.
Neste sentido, o Diário de Bridget Jones só é inspirado no Relatório de Kinsey por equívoco do argumentista.
Maravilhado desde sempre com a diversidade do reino biológico, naturalista fanático e metodologista radical, Kinsey acreditava que o comportamento sexual da espécie humana seria consistente com as idiossincrasias do indivíduo e do seu meio envolvente. E que toda a actividade sexual, da masturbação ao coito com animais, da homossexualidade aos sonhos húmidos, decorreria de um impulso natural, entendido como uma manifestação individual de cada ser vivo, em função do seu determinado contexto existencial.
Estudando, registando e catalogando uma imensidão estatística de depoimentos anónimos com base nas divergências morfológicas, sensoriais e culturais dos entrevistados, Kinsey propôs uma abordagem baseada não na uniformidade, mas antes num padrão multiforme de comportamentos, também sustentados pelas particularidades decorrentes do Género.
Lamentavelmente, o estudo foi entendido precisamente como um elo de convergência comportamental - e portanto “de natureza” - entre homens e mulheres, os desvios ao regime puritano foram colados na mesma caderneta unisexo do senso comum e daí o caudal de dislates politico-filosóficos que se seguiram.
Não por acaso, o segundo volume do estudo de Alfred “Prok” Kinsey foi a sua desgraça: a sociedade americana, que o tinha aclamado por trazer à consciência social a terrível verdade sobre o líbido masculino, não o perdoou por escarrapachar nos escaparates os segredos de alcova das mulheres americanas. O espírito proteccionista de ontem e de hoje é o mesmo e as mesmas bestas que não percebem as diferenças agora, também não as entendiam há 50 anos atrás.
Assim, Bridget, que não se soube decidir entre o soutien chamuscado e a cinta de ligas, vai sempre parecer uma coelhinha da playboy numa missa luterana. E enquanto entoa a canção pátria que já não é pátria, que é orfâ de pais para que não lhe ofendam a dignidade de plástico que comprou nas televendas dos editoriais e dos projectos-lei, Bridget Jones vai perdendo irremediavelmente a sua identidade de fêmea, de mamífero e de sapiens.

Voando Sobre um Ninho de Corvos


(Original de 1993 em cinco posts)
POST QUINTO

Lembro-me bem da vida lá fora. Lembro-me dos semáforos e dos centros comerciais, lembro-me das bocas de incêndio e das estações de metropolitano. Recordo-me bem da pressa com que se movimentam as gentes da cidade, agitando-se febris na expectativa do naufrágio.
Abandonei a vida lá fora porque sempre me cheiraram as ruas a morte. Foi exactamente por isso que me acolheram aqui, solícitos como comerciantes marroquinos, neste convento do silêncio e do espanto endémico. Cheiram-me as ruas a morte, doutor. A pássaro mortos. Na baixa é um cheirete insuportável a corvos putrefactos, o doutor sabe lá. E nas avenidas novas, parece que lá vão a morrer as gaivotas. Eu já não aguento mais a pestilência. Até em Alvalade, é um pivete a pombos em decomposição que tira o apetite a um homem que não come há três dias, doutor, verdade, verdadinha como eu estar a aqui a falar consigo.
Abandonei a vida lá fora porque o cheiro a morte não entra aqui dentro da gaiola. E mais a mais, sempre me deixam voar do trapézio para o refeitório (não me falta a alpista), do refeitório para a farmácia (não há escassez de barbitúricos) e da farmácia para a sala da televisão (não há falência de erotismo durante o telejornal). Voar até à sala da televisão é ser mais livre que um náufrago chapinhando a meio caminho entre dois oceanos.
Hoje, faz dez anos que aqui estou. E não tenho saudades nenhumas da vida lá fora. Talvez porque me lembre tão bem de ter que pagar a renda e fazer a barba. Talvez porque ainda sobrevivam nas narinas da memória, esses aromas da morte alada que sujam as ruas do Bairro Alto.

terça-feira, outubro 04, 2005

A propaganda do medo.

Feitas as tristes contas, o Furacão Katrina provocou 1033 mortos, contando os desaparecidos.
Então porquê a loucura dos 10.000 mortos projectados pela imprensa? É legítimo vender notícias assim?
É digno inventar vítimas para servir interesses? É aceitável agravar artificialmente as catástrofes por razões de ordem política e económica?
Cada dia que passa, os meios de comunicação social assumem com maior fanatismo a sua missão de instalar o medo, porque é o pânico global que faz o mundo rodar. E não há quem saiba ou possa contrariar esta perversa mania dos últimos dias que se instalou nas redacções, nos gabinetes editoriais e nos conselhos de administração. Toda a gente sonha com a manchete que traga a notícia do Fim e quanto maior a tragédia, mais profética a ficção.
A construção romanesca de ameaças biológicas e climátéricas, a transformação dos palcos de guerra em cenografias multimediáticas, a difusão de mitos apocalíticos, tudo serve para vender mais pomada para os calos da existência.
Os efeitos psico-sociais desta terrível tendência são devastadores. As pessoas vivem hoje sobrecarregadas com o fardo dos horrores do mundo e dos medos ciclópicos que trazem consigo e um suicídio em Sidney, um assalto em Los Angeles, um surto de Malária em Angola ou uma bomba em Bali bastam para preencher essa falsa expectativa da condenação eterna.
Para quando um poder que responsabilize este (quarto-primeiro) poder?

quarta-feira, setembro 28, 2005

Um imbecil chamado Ronald Koeman.

O Benfica perdeu ontem uma rara oportunidade de ganhar em Old Traford e a responsabilidade é inteirinha do débil mental que o Sr. Veiga (outro atrasado) achou por bem contratar para treinar os campeões nacionais. Ronald Koeman é, de longe, o pior treinador da história do clube, revelando uma estupidez absolutamente devastadora e um total desconhecimento da profissão que exerce. Vou ver se me lembro de não lhe perdoar a noite de 27 de Setembro de 2005 até ao fim dos meus dias.

segunda-feira, setembro 19, 2005

Max Stirner, o anti-cristo super-homem - I

Quando Max Stirner publica, em 1844, "O Único e a Sua Propriedade", a sociedade bem pensante da Europa deixa cair o queixo, num primeiro momento de espanto, para logo mostrar os dentes da censura, quando percebe que está em causa tudo o que de sagrado tinham escrito e dito até ali as mais brilhantes mentes liberais e socialistas, humanitaristas e revolucionárias, idealistas e conservadoras. Se Marx colocou Hegel de cabeça para baixo, Stirner dá-lhe, 20 anos antes, um pontapé no traseiro. Encostando os liberais triunfadores e vanguardistas às cordas da reacção, também desqualifica Proudhon, que chamava roubo ao exercício da propriedade, expropriando-o de qualquer tipo de pertinácia filosófica. Na altura em que o Estado de Direito dá os seus primeiros passos, o bravo Bávaro devolve-o ao útero da inutilidade ou à campa da imoralidade, o leitor decide. Com a morte de Deus ainda fresca, acabada de enunciar por Feuerbach, Stirner acusa os iluministas de devoção mística. Quando o niilismo era coisa de romancistas russos, já este valente da grande filosofia desacreditava valores morais, sociais e políticos a torto e a direito.
"O Único e a Sua Propriedade" é um dos grandes manuais de filosofia do século XIX, porque, fazendo tábua rasa do património intelectual, sensorial e empírico da Europa, num tom sardónico, rude e verdadeiramente inspirado, recentra a questão ontológica neste ponto: em última análise só poderei ser realmente proprietário do meu corpo, derradeira tangibilidade psicosomática e único valor a proteger. Assim, faz todo o sentido respeitar as prioridades que são as do meu sistema físico-químico e as da minha unicidade: rotinar o egotismo é viver com sensatez. Não reconhecer causas que transcendam a inevitabilidade de quem eu sou, é pois, uma obrigação moral, no sentido em que a moral é um instrumento de sobrevivência. Conceitos como a Religião, o Estado e a Nação são fraudes fiscais, no tribunal de contas da mãe natureza. Eu só posso ser soberano sobre mim e só de mim sou súbdito. E o único imperativo categórico digno de ser respeitado é o que decorre das necessidades da minha fisiologia. A individualidade, a singularidade, a consciência identitária de que só estou ao serviço de mim, esse sim, é o caminho para a redenção.
O livro foi, obviamente, proíbido e escondido e esquecido e amaldiçoado e ridicularizado e queimado nas fogueiras dos salões onde se reunia a gorda elite intelectual do velho continente. Gente ilustre que o leu, como Joyce, Pound Ou Miller, não falam dele nunca. Freud - que muito lhe deve - renega-o. Nietzsche que lhe deve quase tudo - esquece-se dele. Marx e Engels precisaram de 300 páginas de intenso fluxo invectivo para combater o pequeno rebelde. Darwinistas sociais e deterministas de toda a espécie fingiram que não sabiam da sua existência. Todos enfim se esforçaram por aniquilar a obra, e com tanto afinco o fizeram, que acabaram por imortalizá-la.
"O Único e a Sua Propriedade" é um tratado escrito e pensado em nome da liberdade do indivíduo. E foi por isso que incomodou tanto.
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Voando Sobre um Ninho de Corvos


(Original de 1993 em cinco posts)
POST QUARTO

Faço tudo o que é humanamente possível para que não me mandem embora. Seria absolutamente degradante falhar como doente mental e uma asneira das grandes voltar para o mundo lá fora. Aqui dentro, as regras são mais simples. Não é tão difícil viver. Não há grandes preocupações filosóficas nem dilemas existenciais. Digam-me, para que precisa um louco de Schopenhauer? Aqui, uma pessoa é alimentada, é drogada e deixa-se dormir. Tudo o resto é fazer por não perceber as palestras dos estagiários e os mandamentos dos consagrados.
Se o Fragoso andasse para aí a masturbar-se pela via pública era preso. Fechavam-no numa espelunca qualquer onde, com toda a certeza, não haveria televisão, nem pássaros, nem enfermeiras. Não está certo. Eu e o Fragoso não arredamos pé; aqui é que é bom. Temos gralhas na TV e já nos prometeram um rádio cheio de cucos. As corujas habitam o frigorífico de Verão e a lavandaria no Inverno. Tudo está no seu devido lugar.
Quando a milícia psiquiátrica desconfia que eu estou a recuperar (e eu apercebo-me da tolice sempre que olham para mim com o ar expectante do vendedor de gelados em Outubro), desato imediatamente num chinfrim acrobático de dislates de primeira categoria, babo-me, cago-me, parto a loiça, uivo bastante, esbracejo como um aflito, esperneio como um dançarino russo, coço as orelhas com os pés, canto a Internacional, exorciso os arcanjos todos que há no Inferno e dou dentadas que me farto. Depois disto, os doutores, desapontados com a terapia, envergonhados da incompetência, fecham-me a sete chaves e alimentam-me regularmente. Só de pensar que anda por aí tanta gente à procura de uns minutos de felicidade durante a vida inteira e só conseguem filhos, empregos de merda, cansaços muitos e uma morte estúpida, suja e desejada, vêem-me corvos aos olhos e acabo por adormecer na paz do nosso senhor Jesus Cristo, junkie de todas as ordens, dealer de todos os créditos, padroeiro de todos os loucos.
Sou um corvo fechado num celeiro. Enquanto houver milho para encher a barriga, não vale a pena sair.

quinta-feira, setembro 15, 2005

Versões Katrina

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O furacão Katrina foi recebido globalmente como um cavaleiro do apocalipse, um evento paralógico cuja missão divina transcende as razões da física e da metereologia. E, assim sendo, a tragédia prestou-se ao dislate recordista.
Para os ambientalistas da ONU, se aconteceu o que aconteceu foi porque os americanos não quiseram assinar o protocolo de Quioto. Mais: é pelo mesmo motivo que os furacões hoje em dia são mais severos (facto desenterrado da enciclopédia do empirismo delirante, anedotário zero).
Para os génios da Internacional Socialista, a catástrofe em New Orleans deveu-se essencialmente ao facto dos americanos não terem um estado social, não se percebendo bem o que é que o cú do socialismo tem a ver com as calças de uma tempestade devastadora.
Para as mentes brilhantes do Bloco de Esquerda, a destruição deve-se antes que tudo ao racismo e à pobreza que grassa nos Estados Unidos. Não me parece que a ordem de evacuar o delta do Mississipi fosse dada apenas aos brancos, nem que as equipas de salvamento andassem a recolher aflitos por categorias de tom de pele. E quanto à pobreza dos americanos, que efeito teria este fenómeno climático se tivesse acontecido em Cuba?
Para o inteligente Rebelo de Sousa (mas ninguém cala este homem?) o terrível evento é prova rigorosa de que os americanos estão de tal forma preocupados com a segurança que já não ligam nenhuma aos furacões. A simplicidade mental desta iluminária não lhe permite entender que os mecanismos de emergência médica e protecção civil cumprem exactamente a mesma função e têm precisamente a mesma importância operacional caso as pessoas estejam a morrer afogadas por uma cheia ou queimadas por uma bomba. O argumento é arrepiantemente idiota.
Para os parasitocratas da União Europeia, o furacão serviu bem para demonstrar que os Estados Unidos têm insuficiências organizacionais, facto que com muito agrado registam, enquanto chafurdam no esterco da sua inoperância crónica e da mais exemplar disfunção orgânica da história das organizações europeias.
Para os anti-americanos primários, o estrago é, claro está, devido à presença dos Estados Unidos no Iraque.
Para os anti-americanos intelectuais, a tragédia deve-se ao facto de Bush, certa vez, ter passado férias em New Orleans.
Para os colunistas é um banquete.
Para os jornalistas, é uma orgia.
Para os cínicos, é bem feito.
Para os fanáticos, é a vingança de Alá.
Para os terroristas, é instrutivo.
E eu, que vivo num país realmente miserável; eu que vivo numa nação em que há pontes a cair com as primeiras chuvadas de Outono; eu que tenho uma pátria que arde descontroladamente, ritualmente, todos os verões desde que me lembro de existirem verões; eu que sou natural da terra onde se inventou a disfunção organizacional; eu cá gosto cada vez mais de americanos, cada vez menos de europeus e quanto aos portugueses, que se calem rapidamente, antes que chegue o Inverno e Portugal fique submerso porque alguém se esqueceu de limpar a sarjeta para onde corre a merda destas opiniões todas.

Nota de rodapé - A propósito de argumentos imbecis: Mário Soares justificou em França a anormalidade da sua candidatura às presidenciais porque Cavaco Silva não tem o perfil humanista necessário para ser Presidente da nossa pequenina República. Quer isto dizer objectivamente o quê? Nadinha, acho eu.

segunda-feira, setembro 12, 2005

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Uma das grandes fragilidades das democracias ocidentais é o carácter não evolutivo e dogmático da sua filosofia política. Muito particularmente na Europa, os regimes não se questionam: colocar a democracia socialista em causa é a heresia suprema do Século XXI. Na medida que o dogma se vai perpetuando, os cidadãos, entretidos com a tecnologia e alimentados pela indústria, mal criados, mal educados e mal habituados, vão adormecendo sobre a noite decadente e abre-se na Europa um vazio de poder: o poder das ideias. E enquanto o crescimento cancerígeno de uma comunicação social completamente livre e integralmente irresponsável vai aniquilando as lideranças políticas - normalizando comportamentos até á morte da individualidade - instala-se na administração pública um buraco negro: a ausência de homens de génio.
Em Portugal, a Terceira República esgotou o seu modelo e isso é tão evidente que dá raiva ver esta gente toda a assobiar para o lado. A candidatura de Soares resume bem toda a decadência das instituições políticas: um homem antigo (nem importa realmente que idade tem) e que é o símbolo de um regime velho, justifica a sua candidatura com a resignada apreciação de que esse regime geronte que fundou é incapaz de produzir candidaturas contemporâneas com um mínimo de credibilidade (Manuel Alegre era outro homem antigo, e sem credibilidade nenhuma). Caso vença, Soares levará para Belém o mais arcaico modelo ideológico dos modelos ideológicos actualmente residentes nos palácios presidenciais de toda a Europa.
É por isto, e por tudo o resto, que é preciso ter consciência da inadequação dos paradigmas filosóficos, políticos e económicos que nos governam a vida social, antes que isso implique a falência técnica e moral da nação. É preciso perceber porque é que ficámos entregues a uma classe de dirigentes sem espírito, sem dignidade e sem ideias para além das que lhes ensinaram na quarta-classe de Salazar e nos cafés de Paris; bonecos de anedotário, obcecados por um assento confortável na Presidência da Vaidade, no Ministério da Inveja ou na Caixa Geral das Ganâncias. E é preciso agir. É preciso, por exemplo, usar as armas destes senhores e destas senhoras contra eles próprios. É preciso ignorá-los na televisão, é preciso ignorá-los nas eleições. É preciso fundar modelos teóricos e experimentá-los em células sociais. É preciso procurar soluções de gestão pública que devolvam as responsabilidades cívicas às pessoas. É preciso retirar ao estado a sua opulência disfuncional e acabar com a terrível mentalidade paternalista sobre os povos. É preciso deixar de submeter os intérpretes da vida política, e os desígnios autênticos do país, ao inquérito de pasquim e à lógica de tablóide. É preciso saber que podemos e devemos reinventar a democracia. Ou inventar uma outra utopia qualquer.
É preciso saber edificar a Quarta República.

segunda-feira, setembro 05, 2005

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Voando Sobre um Ninho de Corvos


(Original de 1993 em cinco posts)
POST TERCEIRO

O caso não é para menos, diz-me a enfermeira Saudade, gaguejando um pouco nos últimos pedaços gordurosos da sanduíche verde fungo. Eu entretenho-me a discordar. A opinião do louco Marques sobre a higiene íntima da enfermeira Saudade não tem qualquer significado pela razão simplória de que os loucos não têm opiniões; são opiniões. Péssimas opiniões, fedorentas e equívocas opiniões. Miseráveis, andrajosas, infames e dolorosas opiniões. Os loucos são essas opiniões envergonhadas dos doutores e dos sábios, dos ministros e dos profetas, dos construtores de civilização, dos professores, dos bastonários, dos juízes, dos serviços de emergência médica e dos génios da psicologia e da psiquiatria e do diabo que os carregue. Disfarçando o arroto carbónico da laranjada, a enfermeira Saudade perde-se no abismo e objecta com despeito: mas se o menino é louco, a sua opinião também não tem significado. Sim, sim, o caso não é para menos. Vou apresentar queixa do Marques. Isto não pode continuar. É uma indignidade. Saudade, que me trata por menino com a condescendência de um inquisidor espanhol, não percebe que me calou com Euclíades, o cretense mentiroso que dizia a verdade. Todos os loucos são mentirosos. Eu que o digo, sou Louco. E porque sou louco, sou mentiroso. Logo, nenhum louco é mentiroso. Se fosse um corvo, voava para Creta.

sexta-feira, setembro 02, 2005

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Os estudos laboratoriais que levaram à descoberta e industrialização da vacina contra a Poliomielite implicaram a morte de 3,6 milhões de chimpanzés.

Todos os anos milhões de animais são mortos, envenenados, torturados, queimados e gaseados em laboratórios de produtos cosméticos.
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Trova do Narciso Triste

Era uma vez um gajo que estava sózinho num quadrado e em guerra com toda a gente porque o mundo não lhe fazia a vontade e ele achava simplesmente irritante que ninguém percebesse do seu génio político até porque não há génio político que se lhe compare ou poeta que lhe transtorne os imaculados calcanhares.
Era uma vez Narciso Triste, candidato imbatível às presidenciais da inconsciência, distraído de espelhos como despido de humildade, velha glória da terceira república que agora morre e mesmo assim o senhor da nova política e da alternativa credível. Antifascista de suspensórios, senador na assembleia de si mesmo e todo ufano e todo ofendido, eis que discursa com pose de estadista encornado para a audiência de tasca que o aplaude, circunspecta.
Era uma vez a paciência.

sexta-feira, agosto 26, 2005

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Volta à Vergonha.

O que os franceses e os alemães estão a fazer com o Lance Armstrong é bem o exemplo da decadência moral da Europa. O homem deve ser para aí o atleta mais controlado pela polícia do doping de todos os tempos e o ciclismo deve ser para aí o desporto mais dopado da história universal. A Volta à França foi, até 1998, um retiro seguro para os dopers mais radicais e, nos últimos 40 anos, o único grande atleta que a venceu sem o empurrão da droga deve ter sido precisamente Lance Armstrong. O homem ganhou a Volta a França 7 vezes seguidas, fazendo chichi para a proveta dia sim, dia não. Não pode existir qualquer dúvida sobre a sua superioridade atlética e desportiva e é preciso não ter vergonha nenhuma para fazer uma coisa destas. É preciso ser-se francês ou alemão, é preciso ser-se baixote e pequenino, ser-se invejoso e traumatizado, mal formado e mal amado para conceber uma armadilha destas. Bem armada, para não dar lugar a contra-análises. Bem temporizada, para ser fabricada às escondidas do atleta. Bem promovida, para convencer os incautos. Que tristeza.

Voando Sobre um Ninho de Corvos


(Original de 1993 em cinco posts)
POST SEGUNDO

Também temos televisão. É importante termos televisão, muita televisão. Acho que guardam pássaros lá dentro. Quando me deixam sair da cela, o que acontece com uma curiosa e assimétrica raridade, é para a saleta da televisão que eu vou. O Fragoso está lá sempre à espreita dos pássaros, segurando o inseparável bacio como quem arma uma caçadeira de canos curtos. O Fragoso já cá mora há que tempos. Foi por causa de uma constipação, diz ele, daquelas que alteram a constituição metafísica do universo?, pergunto eu. Está sempre a escarrar para o penico e de vez em quando lá se masturba um bocadinho na saleta, à conta de certas gralhas do horário nobre. Os enfermeiros dão-lhe imensos chutos nos tomates, para ver se ele perde o vício, mas é debalde. Seja como for é um sujeito às direitas, o Fragoso; sempre com bons modos para os médicos, como se lhes entendesse a linguagem. Deve ser por isso que o deixam andar por todo o lado, ele e o seu querido escarrador de esmalte. Uma vez contou-me que cuspiu na cara de um sargento, quando esteve a cumprir o serviço militar nos Açores. Perguntei-lhe porque carga de água mas ele já nem se lembrava. Tem má memória, o Fragoso, mas é católico e volta não volta sai-se com umas rábulas sobre deus e o diabo e os arcanjos todos juntos para a festa do fim dos tempos. Nunca consegui acreditar no deus do Papa; a minha mitologia é outra: Zeus todo poderoso joga Black Jack no casino celestial. Aposta com vidas humanas e a banca ganha sempre. Pássaros. Olho para o telejornal e só vejo pássaros.

segunda-feira, agosto 22, 2005

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"Tudo menos importar-se com a humanidade! 
Tudo menos ceder ao humanitarismo! "
- Álvaro de Campos -

Tenho uma amiga que se considera "humanista". Que acha simplesmente impossível ser-se de outro modo. Ora eu, que acho até mais que possível; eu, que acho até muitíssimo aconselhável evitar um afecto apriorístico, generalista e piegas pelas pessoas todas; eu que acho até higiénico desconfiar da mole humana; tenho o prazer de discordar. Elevado este assunto a post do Elsinore, não tenho outro dever que a exposição de um breve argumentário.

Para já, para já: não sou um humanista porque tenho a consciência de que a humanidade é um virús. Se retirarmos o homem do universo, obtemos uma constante cósmica - um pleno de perfeição. O Chimpanzé, amigos, faz sentido. A Formiga Vermelha, a Mosca da Fruta, O Colibri e o Rinoceronte fazem sentido. Estas sim, são criaturas Sapiens, na medida em que têm a sabedoria campeã para qualquer locatário do Planeta Terra. Sobrevivem com competência e sentido estético, não fazem perguntas, não precisam de deus, não têm moral e não desfeiam a paisagem. Já o homem, caramba, o homem não faz sentido ontológico absolutamente nenhum porque precisa de transcendência e é uma bactéria religiosa, científica, civilizacional, complexa e, claro está, destrambelhada! Se a mãe natureza é um logaritmo imperfeito é apenas porque se deixou penetrar pelo Lambda irritante da alma humana! O homem é este animal que persegue ambições delirantes como o saber fenomenológico da origem das coisas, o mastigar constante da ideia do divino, o devaneio arrogante de pensar que existem conceitos penta-essenciais como a Verdade, o Conhecimento, a Imortalidade. Conceitos diletantes como o bem e o mal, o pecado e a redenção. É que o homem exige a redenção e o caminho para a redenção do homem é o humanismo. Digam-me: Algum golfinho seria insensato o que baste para ser um golfista? Só mesmo um homem para ser um humanista. Para acreditar em si próprio como alguém que merece a complacência de deus e o reconhecimento do espírito santo (entidades que - mesmo a propósito - ele próprio criou).
Henry George escreveu: "Homens e gaviões alimentam-se de frangos. Se aumenta a população de gaviões, diminui a de frangos. Mas se aumenta a população de homens, a população de frangos cresce também." A humanidade é um artificialismo, uma doença, uma disfunção endémica e imperialista, um problema na equação das coisas.

Depois: não sou um humanista porque as pessoas incomodam-me. Incomodam-me na praia e na estrada. Incomodam-me no cinema e na rua, incomodam-me no Verão e no Inverno, de manhã e à noite, incomodam-me mesmo e especialmente quando eu não quero ser incomodado. Incomodam-me os vizinhos, os carteiros, os técnicos de telemarketing, os arrumadores, os que passeiam, os que estão à espera, os que compram, os que vendem, os que trabalham, os que roubam, os que matam, os que esfolam; incomodam-me os que cravam, os que choram, os que perdem, os que ganham, os gordos e os magros, os mártires, os heróis, os que vão à pesca, os que vão para a festa e os que vêm da festa e os que jantam no mesmo restaurante que eu escolhi para não ser incomodado! Incomodam-me as filas de gente e os supermercados e as manifestações e os encontros de motards e as eleições autárquicas e a feira popular e as excursões e os espectáculos de circo com as criancinhas aos berros e os festivais de rock e os festivais de jazz e os festivais de loucura e os festivais de morte e os festivais de estupidez e o barulho estrondo que fazem dentro da minha cabeça!
Não há lugar de sonho no mundo que não passe rapidamente a pesadelo depois de ter sido infectado por pessoas. Não há sossego, se há pessoas. Não há paz, claro que não pode haver paz, quando há gente no cenário.
Schopenhauer escreveu: "Não se pode atribuir outra finalidade à nossa existência, senão a de nos ensinar que, para nós, seria melhor não existir".

A seguir: não sou um humanista porque o humanismo sempre levou certos incompetentes a pensarem que estavam à altura de tomar conta dos outros incompetentes todos. Um erro cujas consequências foram muitas vezes devastadoras para a... humanidade. Mais a mais, é por causa das derivações do humanismo em ismos diversos que as pessoas acreditam que podem ser donas do seu destino, como se isso quisesse dizer alguma coisa ou tivesse alguma importância gloriosa na estrutura fundamental do universo. Gaetano Mosca escreveu: "A igualdade absoluta nunca existiu nas sociedades humanas. O poder político nunca foi e nunca será fundado sobre o consentimento explícito das maiorias. Foi e será sempre exercido por minorias organizadas que tiveram e terão os meios, variáveis consoante o tempo, para impor a sua supremacia sobre as multidões".
Não é acreditando na santidade olímpica de um predador cruel e facínora, que se governa o animal. Assim, é-se apenas vítima dos seus piores instintos.

Mais: o humanismo é um tique egotista para nos sentirmos bem com a mediocridade e a ferocidade e a ignorância alheias. É uma maneira de, desculpando os outros, aliviarmos a nossa própria culpa. Só que o homem é o único e o derradeiro culpado. Camus escreveu: "Não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos".

Acresce que: o humanismo é uma assumpção de filósofo caloiro. Herbert Spencer escreveu: "Ninguém pode ser perfeitamente livre até que todos sejam livres; ninguém pode ser perfeitamente moral até que todos sejam morais, ninguém pode ser perfeitamente feliz até que todos sejam felizes". Ora, se todos fossemos perfeitamente livres e perfeitamente morais e perfeitamente felizes, seríamos ainda assim capazes de discernir o que é isso da perfeição? Seríamos ainda assim vítimas de um pensamento humanista? Se o infeliz axioma existe é precisamente porque decorre da condição imperfeita, maliciosa, corruptora, degradante, vexatória e pestilenta do bicho homem. É porque sabemos que não prestamos para nada, que somos uns brutos e que estamos indefesos, que nos obrigamos à auto-comiseração.

Para terminar: não sou um humanista porque gosto apenas das pessoas de quem gosto. Não tenho amor por estranhos nem ternura por desconhecidos. Muito por causa disso não faço minhas as causas da multidão. Nem pretendo que sejam colectivas as minhas convicções individuais. Max Stirner escreveu: "Há tanta coisa a querer a ser a minha causa! A começar pela boa causa, depois a causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade, do humanitarismo, da justiça; para além disso, a causa do meu povo, do meu príncipe, da minha pátria, e finalmente até a causa do espírito e milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha causa seja a causa de mim mesmo!"
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quinta-feira, agosto 18, 2005

Voando Sobre um Ninho de Corvos


(Original de 1993 em cinco posts)
POST PRIMEIRO

De súbito abrem a porta. Não é o pequeno-almoço, é mais um psiquiatra. Novato. Não há melhores e mais prestáveis cobaias no mundo clínico que os loucos e, entre os loucos, os furiosos. Os que rasgam cortinas e partem as cadeiras e berram como lobos ao luar e trepam pelas paredes; os que mordem a sério e cospem a valer e agridem os gorilas da segurança; os que espumam da boca e pontapeiam as enfermeiras na boca e são enfiados em camisas de forças antes que um corvo alcance a maturidade. Os loucos furiosos que são enfiados em camisas de forças antes que um corvo alcance a maturidade são o Santo Graal dos laboratórios de investigação psiquiátrica.
O tipo diz-me qualquer coisa que não percebo, repete-se com insistência e eu insistentemente continuo desentendido: nunca cheguei a ser fluente no idioma destes gajos. Fazem perguntas cretinas e querem saber tudo para escarrapachar nos seus mestrados e nas suas pós-graduações para impressionar catedráticos tão ignorantes como eles, mas mais velhos. Generalizando, acho que são extremamente bisbilhoteiros. Bisbilhoteiros e ininteligíveis, autênticos marcianos formados em medicina, criaturas de um pesadelo em BD. Quero o meu pequeno almoço. É inadmissível doutor, até os loucos - sobretudo os loucos - têm o direito inalienável à primeira refeição do dia. A insanidade não se alimenta assim, a pão e água e jejuns forçados. Se querem as sintomatologias, façam favor de contribuirem com as vitaminas!
O rapazote tenta comunicar algo, é um facto. Vá lá saber-se o quê. Primeiro a paparoca, depois a charada. É o meu lema, é o meu tema, é a fome - a mais negra de todas as carências, a mais apertada de todas as necessidades. Mesmo um doido sabe isso. Doutor, seja sensato, traga-me ovos mexidos, torta de ananás, sumo de laranja, pão de noz, Mozart, mulatas de seios vermelhos; traga-me batatas fritas e o conduto da metafísica, traga-me crocodilos em conserva, enfermeiras em calda, salsichas às rodelas, torradas com compota de foca e antes do banquete, traga-me o aperitivo de ser livre e por fim traga-me um belo Bairrada tinto para regar esta infelicidade de ter um vazio enorme no estômago e um psiquiatra de Marte na cela do hospício mais infecto de todos os infectos hospícios do universo. (cont.)

domingo, agosto 14, 2005

Este é grande.

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Gosto à brava deste aventureiro marinheiro. Casado com uma mulher nobre e fiel, sabe que pode partir para a viagem sem perigos de desonra. É esperto e é romântico (rara alquímica!). Gosto do Ulisses porque o homem não usa a cabeça só porque dá jeito ao elmo, tem presença de espírito e é assertivo e é pertinaz e resolve problemas e segue o seu caminho à procura não se sabe bem do quê. Isto, claro está, para além de estar sempre a querer regressar a casa (um gajo que percorre todo o mundo antigo para conseguir chegar a casa desperta-me uma ternura imensa). Gosto deveras deste construtor de barcos e de cavalos, deste engenheiro da aventura que - protegido por Atena, a Deusa dos Olhos Garços - se faz um herói como deve ser. E até mais que um mito grego, solidifica-se num deus católico e irlandês. Não é de se meter em brigas, mas vence a barbárie da violência, com violência se necessário for, com astúcia se proveito de superior qualidade lhe trouxer a inteligência. É corajoso mas não é parvo, e passa montes de tempo na proa, a perscrutar o horizonte mediterrânico, na senda da origem das coisas. Gosto dele.

Este é pequeno.

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Não gosto nada deste guerreiro interesseiro. Não gosto deste gajo que faz birras na presença de reis, que é invejoso de escravos e, mais cruel que valente, mais mercenário que soldado, permanece um enormíssimo maricas (afinal, quem é que alguma vez morreu com uma seta enfiada no tornozelo?). Armado em parvo e armado aos cucos, amantiado com um primo imberbe (e péssimo esgrimista), esmagando exércitos com a sua magnífica Excalibur de calibre helénico 3000 AC, Aquiles é, mesmo assim, um frouxo. É um frouxo porque faz tudo pelas razões erradas. Até quando entrega a Príamo o corpo morto e violentado do seu filho, o cavaleiro não é nobre porque fica pequenino de remorsos. Depois de ter cavalgado as sete colinas de Tróia com o cadáver de Heitor de rojo pelo mato, insultando de tragédia e ignomínia a alma troiana, corrompendo rituais sagrados e retirando ao seu adversário a glória da morte em combate, Aquiles é seguramente o bandido palhaço que vai ter remorsos. Não gosto dele.
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