quinta-feira, outubro 06, 2005

Voando Sobre um Ninho de Corvos


(Original de 1993 em cinco posts)
POST QUINTO

Lembro-me bem da vida lá fora. Lembro-me dos semáforos e dos centros comerciais, lembro-me das bocas de incêndio e das estações de metropolitano. Recordo-me bem da pressa com que se movimentam as gentes da cidade, agitando-se febris na expectativa do naufrágio.
Abandonei a vida lá fora porque sempre me cheiraram as ruas a morte. Foi exactamente por isso que me acolheram aqui, solícitos como comerciantes marroquinos, neste convento do silêncio e do espanto endémico. Cheiram-me as ruas a morte, doutor. A pássaro mortos. Na baixa é um cheirete insuportável a corvos putrefactos, o doutor sabe lá. E nas avenidas novas, parece que lá vão a morrer as gaivotas. Eu já não aguento mais a pestilência. Até em Alvalade, é um pivete a pombos em decomposição que tira o apetite a um homem que não come há três dias, doutor, verdade, verdadinha como eu estar a aqui a falar consigo.
Abandonei a vida lá fora porque o cheiro a morte não entra aqui dentro da gaiola. E mais a mais, sempre me deixam voar do trapézio para o refeitório (não me falta a alpista), do refeitório para a farmácia (não há escassez de barbitúricos) e da farmácia para a sala da televisão (não há falência de erotismo durante o telejornal). Voar até à sala da televisão é ser mais livre que um náufrago chapinhando a meio caminho entre dois oceanos.
Hoje, faz dez anos que aqui estou. E não tenho saudades nenhumas da vida lá fora. Talvez porque me lembre tão bem de ter que pagar a renda e fazer a barba. Talvez porque ainda sobrevivam nas narinas da memória, esses aromas da morte alada que sujam as ruas do Bairro Alto.