quinta-feira, dezembro 30, 2004

Pretensão e ignorância.

Apesar da importância enorme que atribuímos à raça própria e às consequências dos nossos actos, a terrível mãe natureza persiste, ao longo das eras, em reduzir a condição humana ao seu real tamanho. O movimento tectónico - e titânico - que provocou a maré de morte do Índico equivaleu, em poder destrutivo, à explosão do arsenal termo-nuclear acumulado pelos soldadinhos de chumbo dos pentágonos todos. Esta eloquente manifestação de força deveria fazer-nos pensar na forma como construímos a civilização, nas fragilidades inerentes ao ecossistema sócio-tecnológico que teimamos em levantar sobre a instável superfície do planeta e na pretensão de homenzinhos estúpidos com que encaramos a vida na Terra. Mas não. Com sorte, serão apenas instalados mais sensores sísmicos nas profundezas do oceano e é seguir em frente, sempre a abrir, no sentido único de um crescimento viral que só pode ter como fim um curto circuíto de dimensão bíblica. Do menú do apocalipse, hão-de inevitavelmente sair degelos ou glaciares, terramotos e maremotos, erupções vulcânicas ou quedas de meteoros e eu temo bem que só iremos perceber que não somos nós os deuses quando for demasiado tarde.

sexta-feira, dezembro 17, 2004

Quando for grande quero ser como o Jay.

A figura decadente e ridícula que responde quando lhe chamam Herman (Zé Gordo para os amigos, Loura Burra para os trolhas de Azeitão), acorda todos os dias com a mesma mania de esquizofrénica natureza: “Quando for grande, quero ser como o Jay Leno”. O pobre triste não sabe que não tem o país do Jay Leno, o talento do Jay Leno, a máquina de produção do Jay Leno, o humor do Jay Leno, o saber receber e o saber estar do Jay Leno, o sentido de espectáculo do Jay Leno e, fundamentalmente, não sabe esta cavalgadura que nunca terá a elegância, a sensibilidade e a inteligência do Jay Leno. Claro está que sai esta ignorância de sobremaneira dispendiosa aos escassos recursos em bom senso e bom gosto que a nação ainda assim vai comedidamente aforrando.
Na imagem, Jay conversa com um impecavelmente engomado e imaculadamente barbeado Michael Moore num dos mais memoráveis eventos televisivos que tive oportunidade de assistir no ano de 2004. Perante o ilustre convidado, aposto a minha reputação como jogador de matraquilhos que o nosso abstruso Herman José iniciaria a conversa perguntando-lhe logo quanto é que paga de impostos. E ainda antes que o Mike pudesse estender uma resposta, já estaria o ovo estrelado a inventar um insulto qualquer, próprio de um invejoso profissional. O Jay, que não quer saber de coisas pequenas para nada, perguntou-lhe antes: "Como é que se perdem estas eleições?" Michael Moore fez a sua pausa de buda. E com toda a tranquilidade de um homem que vive num país livre, respondeu: “os republicanpos tinham uma boa história para contar. Nós, democratas, nunca fomos grande coisa a contar histórias”. Herman José: eat your heart out.

A traição não é um crime, é um nojo. Ou o que diz Oriana.

A propósito da inqualificável iniciativa de acelerar o processo de adesão da Turquia à União Europeia, protagonizado pelo Dr. Durão Umbigo, surgem as enormes, as belas, as sábias e as lúcidas palavras de Oriana Fallaci:

“Há a Europa dos banqueiros que inventaram a farsa da União Europeia, dos papas que inventaram a fábula do ecumenismo, dos facínoras que inventaram a mentira do Pacifismo, dos hipócritas que inventaram a fraude do Humanitarismo. Há a Europa dos chefes de Estado sem honra e sem cérebro, dos políticos sem consciência e sem inteligência, dos intelectuais sem dignidade e sem coragem. Em suma, a Europa doente. A Europa que se vende como uma galdéria aos sultões, aos califas, aos vizires, aos janízaros do novo Império Otomano. Em suma, a Eurábia.”

Duas coisas me impressionam neste momento. Impressiona-me substantivamente a enorme falta de vergonha na cara de um homem que ainda no outro dia fazia dos Açores o eixo da coligação cristã, e que agora - vá-se lá não saber porquê - exige negociações para infestar o mundo civilizado de barbárie e intolerância. E impressiona-me deveras este fabuloso ensaio de Oriana, “A força da razão”, onde está tudo muito bem explicadinho: o Islão tiraniza, o Ocidente confraterniza. E eu, que não tenho filhos, receio pelos filhos que temos.

segunda-feira, dezembro 06, 2004

Meet Joe Black


Em Serralves, uma exposição que vai marcar a década mostra a morte vista pelos olhos de Paula Rego. A morte com dor e pânico. A morte com remorso e arrependimento. A morte insustentável, em carne viva. Horrível. Sobre tudo poderosa. Confesso que só vi morte nas telas. Confesso que saí de lá meio atordoado. Confesso que a francesinha que comi de seguida não me caiu lá muito bem. Confesso que vim a correr para Lisboa.

Partido da Pouca Vergonha

O Partido Social Democrata - o meu Partido - acaba de demonstrar ao país que se demitiu de todo o vestígio de decência, decoro e sentido de estado que podia ainda fingir que tinha. Esta gente indizível que, apenas há umas poucas semanas e em congresso esconjurava previsíveis núpcias com Paulo Portas, decidiu agora perder a vergonha e, em Conselho Nacional, esmolar ao PP uma aliança pré-eleitoral. Esta gente cobarde que se encolhe perante a adversidade, que se enoja perante a sua própria merda, permite e promove um futuro sorridente para o PS, mesmo que choroso para a nação. Sócrates, que nunca chegaria lá sem uma ajudinha, Guterres, que jamais triunfaria contra Cavaco Silva e Santana, que não quer ir a votos sózinho, agradecem. Os portugueses, que correm para a casa de banho a vomitar, esmorecem. Valha-nos Deus, esse canalha que se diverte com a minha pátria.

sábado, dezembro 04, 2004

Exit

"Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém... "

-Álvaro de Campos-

Quero dizer ao dr. Santana Lopes: faça o favor de se retirar. De se retirar o mais silenciosa e sorrateiramente que lhe for possível, dada a grandiloquência própria do seu carácter e - claro está - dessa metafórica veia de tribuno precoce. De se retirar, aliás e precisamente para a incubadora do esquecimento, para a caverna de Sócrates ou para o diabo que o carregue, desde que vá calado para o diabo, com o devido rabinho entre as respectivas perninhas de dançarino, resignado da sua incapacidade absoluta e dessa lamentável tendência para o desastre da razão. O Sr. dr. não faz falta nenhuma nem ao país, nem ao partido e muito menos a quem anda para aqui há uns desgraçados meses a aturar a sua prosápia desconjuntada e incoerente de narciso em incontinência técnica. O Sr. dr. perceba por gentileza que foi à falência e retire-se imediatamente do casino. Tenha vergonha ou mostre piedade da vergonha que temos de si e suba até à saída. Muitíssimo obrigado.

segunda-feira, novembro 22, 2004

Razão prática da bipolarização.

"Dois partidos (...), sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes (...) vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, - de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."
 
Guerra Junqueiro, in "Pátria", 1896

terça-feira, novembro 16, 2004

Cartas Portuguesas - A 1ª República por correspondência

Para o bem ou para o mal não sou gajo de poucas palavras. E muito raramente me faltam os ditos. Mas desta vez, só consigo dizer pouco: entrem aqui e leiam a História que não é feita por historiadores. Que é escrita pelos protagonistas. Um blog como deve ser, na forma e na função.

terça-feira, novembro 09, 2004

O próximo paradigma perdido.


Se há herança bela e telúrgica, nobre e gloriosa, que a civilização deste início de século pariu para boa descendência da história universal, essa manifestação suprema e metalínguistica é o futebol de alta competição. Nos dias que vivemos acontecem na arena fenómenos Dostoievsky, como Mourinho - um ano depois de ser campeão europeu pelo Futebol Clube do Porto - estar em posição de conduzir o clube aos últimos lugares da competição. Acontecem fenómenos poltergeist como o mesmo Mourinho treinar os líderes da Premier League. Fenómenos verdadeiramente sobrenaturais como Tchevchenko. Fenómenos mesmo paranormais como um Real Madrid incapaz. Fenómenos esotéricos como a Selecção Grega ser campeã europeia e fenómenos naturais como a físico-química do Arsenal. Acontecem fenómenos estéticos como Nedved com uma bola nos pés. Fenómenos éticos como Luís Figo ao serviço de um clube de futebol. Fenómenos de afirmação como o de Deco no Barcelona. Fenómenos de negação como o de Thierry Henry deixar de ser, uma noite em cada ano, o melhor jogador europeu. Fenómenos fenómeno como Cristiano Ronaldo. Fenómenos Paul Auster como o Principe do Mónaco torcer pela sua equipa numa final europeia. Fenómenos vitorianos como Sir Alex Fergusson. Fenómenos platónicos como a febre do fanático, fenómenos kantianos como o imperar sobre as audiências, fenómenos hegelianos como a violência imanente. Nos dias que vivemos acontecem à volta da tribo do futebol fenómenos mediáticos, imediáticos, traumáticos; fenómenos de histeria, adolatria, entropia; fenómenos sociais, passionais, viscerais e de todo em todo fenómenos financeiros, que por isso são prolixos em género, forma, função e maravilha. Quem não gosta de futebol não percebe nada de nada porque está lá tudo: o instinto, a pulsão, a transcendência. E, claro está: o necessário génio.

quarta-feira, novembro 03, 2004

Wishful thinking

Ao contrário do que a esquerda gosta de pensar, a abstenção não protege a direita. Nem na América nem em Portugal nem em lugar nenhum do mundo.

sábado, outubro 30, 2004

Diz-me tu a verdade, mestre.

“Um príncipe deve fazer pouco caso da fama de cruel a fim de conservar os seus súbditos unidos e fiéis. Não são mais piedosos aqueles que, por demasiada piedade, deixam prosseguir as desordens de que nascem mortes ou rapinas.”
Maquievel - O Príncipe

Que maldição devora as grandes dinastias do Ocidente? Que trágico destino os desfavorece? Que praga lançaram os deuses sobre os aristóteles, os alexandres, os césares, os apóstolos, os merovíngios, os da távola redonda, os santos agostinho, os imperadores do sacrossanto império germânico-romano, os medicis, os sforza, os bórgias, os maquievel, os habsburgos, os fairfax,os cromwell, os stuart, os romanov, os bourbon, os bragança, os luíses, os salieri, os richelieu,os robespierre, os rousseau,os montesquieau, os napoleões, os bolívares, os lincoln, os príncipes de gales, os nazis, os churchill, os degaule,os roosevelt, os sovietes, os martin luther king, os kennedy?
Há um horror sublime e submerso na profundidade homérica das vidas de quem governa os povos, como há um horror imenso e imerso na dimensão trágica das vidas de quem foi governado por esta gente infeliz.
Consanguíneos desastres da ontologia, génios obscuros e distópicos - animais no zoo da falácia! - tiranos acéfalos, patetas e cobardes da história da administração pública, guerreiros ensandecidos, assasinos de suas mães e exterminadores dos filhos que fizeram em má hora, profetas da desgraça humana, líderes de um mundo escravo, estadistas da vã glória, monarcas de si mesmos, pederastas da moral - todos! Que terrível estigma contagia a gente distinta que construiu com sangue e azáfama de usurário este lado porreiro do mundo?
Porque são tão infelizes os imperadores da razão política?
Alguém me consegue explicar, mesmo que por amor de um deus ausente, porque castigam as leis da providência aqueles que, para o mal ou para o bem (activos mobiliários em comércio na bolsa de valores da história universal), assumem o desígnio de levantar a civilização?
Hã?

segunda-feira, outubro 25, 2004

Saudades do Almada

BASTA PUM BASTA
Uma geração que consente ser informada pela Manuela Moura Guedes é uma geração que nunca o foi. É uma audiência d'indigentes, d'indignos e de cegos! É um tele-público de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo do zero!
Abaixo a geração!
Abaixo a Manuela!
Morra a Manuela, morra! Pim!
Uma geração com a Manuela a cavalo da moral é um burro impotente!
Uma geração com a Manuela à proa do prime time é uma canoa em seco!
A Manuela é uma cigana!
A Manuela é meio cigana!
A Manuela é um pau de virar tripas!
A Manuela saberá cantar, saberá parlamentar, saberá opinar, saberá desopinar, saberá desopilar, saberá disparatar, saberá tudo menos informar que é a única coisa que ela teima em fazer!
A Manuela pesca tanto de jornalismo que até faz notícias com a Quinta das Celebridades!
A Manuela é uma habilidosa!
A Manuela veste-se mal!
A Manuela especula e inocula os concubinos!
A Manuela é Manuela!
A Manuela é Moura!
A Manuela É Guedes!
Morra a Manuela, morra! Pim!
Não é preciso ir prá TVI pra se ser pantomineira, basta ser-se pantomineira!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteadora, basta falar como a Manuela! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem éticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas, e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicada e usar baton e olhos espertos! Basta ser judas! Basta ser Guedes! Basta Ser Moura! Basta ser Manuela!
A Manuela é um tele-ponto dela própria!
A Manuela em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.
A Manuela nua é horrorosa!
A Manuela cheira mal da boca!
A Manuela Moura Guedes é a minha impotência!
Morra a Manuela, morra! Pim!
A Manuela é o escárnio da consciência!
Se a Manuela é portuguesa eu quero ser espanhol.
A Manuela é a vergonha da televisão nacional!
A Manuela é a meta da decadência mental!
E ainda há quem não core quando diz admirar a Manuela!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó da Manuela!
E ainda há quem duvide de que a Manuela não vale nada e não sabe nada e que nem é inteligente nem decente nem zero!
(...)
Continue a Dona Manuela a desinformar assim que há-de ganhar muito com o Share e há-de ver que ainda inspira um instalação em Serralves, uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional da "Caras" a favor dos oprimidos da Palestina, e o Parque das Descobertas mudado para Parque da Dra. Manuela Moura Guedes, e com festas da Cidade plos aniversários, e Contraceptivos em conta "Manuela" e pasta de dentes Manuela, e BigMac’s Manuela e um jogo de Consola Manuela Ataca à Dentada, e Prozac Manuela, e autoclismos Manuela e Manuela, Manuela, Manuela, Manuela... E Ice Tea Manuela - Light.
(...)
Portugal, que com senhoras e senhores assim conseguiu a classificação do país mais atrasado da Europa e de todo o mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
Morra a Manuela, morra! Pim!

sábado, outubro 16, 2004

Átila, o Flagelo de Deus.

451 D. C. - Depois de infligir graves derrotas e submeter a tributo os imperadores de Toma e de Constantinopla, Átila e o seu terrível exército de 50.000 hunos atravessa a Germânia como se nada fosse e devasta a Gália. O império romano está entre a espada e a agonia e Valentiniano - cauteloso e sábio césar - convoca Aécio, o seu melhor general, para travar um dos combates militares mais dramáticos e intensos da antiguidade e salvar o mundo civilizado.
Aéssio passara anos nos balcãs a treinar estes mesmos hunos e teve frequentemente em Átila um poderoso aliado contra as hordas visigodas. Foi aliás pelas inúmeras batalhas que travou pelo império, que Átila pensava ser o único rei do seu tempo com legitimidade para herdar - ou roubar - a púrpura romana.
Genial estratega na melhor tradição dos grandes líderes militares romanos, Aéssio percebe rapidamente que as suas legiões se encontram em desvantagem anímica e numérica e recorre de imediato à implementação de uma estratégia diplomática que envergonharia Francis Dracon, convencendo os Visigodos de Teodoro e os Francos de Meroveu (sim, o patriarca da dinastia merovíngia de que tanto fala Dan Brown) a assumirem uma aliança com o santo império, enormidade trágica que haviam de pagar em sangue abundante nos campos Cataláunicos. Numa monumental orgia de violência e crueldade inigualável - 60.000 mortos em menos de 48 horas - decide-se o futuro do Ocidente. Apesar da mortandade assolar os dois lados da contenda, Aéssio acaba por dominar a situação, mas de forma a restabelecer o frágil equilíbrio das fronteiras do norte, permite conscientemente a fuga de Átila e do que restava do seu exército.
Como vigoroso bárbaro e obstinado conquistador que era, Átila recupera num ápice e dirige-se para Itália logo no ano seguinte. Arrasa Aquileia, Milão e Pavia e detém-se às portas de Roma para reorganizar as tropas: o trono dos césares está finalmente ao seu alcance. É então que acontece um dos mais inconcebíveis eventos da história da diplomacia. O Papa Leão, o Grande, dirige-se ao aquartelamento do Rei Huno e consegue o prodigioso feito de convencer Átila a abandonar as suas intenções de conquista e usurpação e a retirar-se - como um magnífico cordeiro no melhor rebanho de Cristo - da Península Itálica. Considerando que o Vaticano não possuia à altura algo que se assemelhasse a um exército, que este Papa tinha anteriormente atribuído a Átila a elogiosa alcunha de “Flagelo de Deus” e que nada impedia o Rei Huno de muito simplesmente o mandar cozinhar para banquete da soldadesca, a circunstância ganha estatuto lendário. Escreve-se hoje que Átila tinha motivações bem mais prosaicas para fugir de Roma. Por exemplo: o medo de uma epidemia. Seja como for, o Huno retira-se para Panónia, nas margens do Danúbio, onde acaba por morrer, vitimado pela ressaca de uma bebedeira épica (facto). Com o seu desaparecimento, o reino dos Hunos desintegra-se definitivamente. Mas fica, ao menos, esta noção utilíssima de que os impérios fazem-se e defendem-se assim: alterando alianças, ignorando acordos, pelejando imenso, morrendo à barda, traíndo muito e arriscando deveras.

segunda-feira, outubro 11, 2004

Desenrascanço: uma abordagem enciclopédica.

Capital mundial do improviso, Portugal é um país de criativos ao minuto. Conscientes deste facto relevante para a história universal, os redactores da wikipedia (uma enciclopédia online verdadeiramente notável) editaram uma entrada sobre o assunto que é simplesmente deliciosa. Do Quinto Império a McGiver, tudo o que precisamos de saber sobre o desenrascanço, essa magnífica ferramenta civilizacional que até o mais comum dos tugas oferece diária e generosamente ao acervo megalómano das grandes conquistas da humanidade.

domingo, outubro 03, 2004

The world says no to female slavery.

A minha querida amiga Carla de Elsinore tem, já vai para uns meses, como subtítulo do seu muitíssimo competente blog, a seguinte afirmação: "The world says no to Bush".
Parece-me - e já lho disse - um pouco triste introduzir tão ilustre blog com uma afirmação destas. Afinal, trata-se de um manifesto contra alguém que nem merece o manifesto. E, por outro lado, é sempre um bocadinho ousado falar pelo mundo todo. A Carla assume que todos estamos de acordo sobre este assunto (inclusivamente os republicanos de New Hampshire, os boers da Cidade do Cabo,os australianos de Adelaide, os bandidos das Pampas ou o diabo que os carregue), o que não é pretensão pouca. Mas o que me incomoda mais nisto, é que a minha querida amiga não abre o blog dela manifestando o seu repúdio por terroristas, ditadores, senhores da guerra ou facínoras civilizacionais, e há por aí tantos que - reconheço - é difícil escolher um para parangona de blog. Apesar de todos os horrores últimos, a preocupação fundamental da Carla está concentrada num tipo que os americanos escolheram (e desgraçadamente vão voltar a escolher) para chefe de tribo. E, mal ou bem, os americanos lá vão tendo a sua democraciazinha, que até deixou um rasto de liberdade pela opressora e opressiva história universal da infâmia que é a rábula dos homens e das mulheres que têm vindo, século após século, a infestar o mundo. Ora, quem elegeu Bin Laden? Os talibans? Fidel Castro? Kim Jong-il? Arafat? Al Zawari, e já agora, Saddam Hussein? De que tradição de decência, dignidade e humanismo (terrível palavra) resultam estes personagens ausentes do ódio da Carla? Quem é que elegeu estes tipos todos contra os quais a prezada blogger nunca deixou vestígio de revolta e que acham, por exemplo, que as mulheres devem ser tratadas abaixo de um cão com cólera? Sim, quem deu legitimidade a esta gente de que não fala a rebeldia do Welcome to Elsinore e que persegue as pessoas porque pertencem a um determinado sexo, porque nasceram numa determinada casta, porque não acreditam num determinado deus, porque não seguem uma determinada visão da história, porque não pactuam com uma determinada fé política? Porque será, minha querida amiga, que teimas em identificar os teus inimigos no âmbito da tua civilização? Da tua civilização que te reconhece a dignidade de seres mulher, de teres opinião, de dares subtítulos idiotas aos blogs que crias em liberdade? Neste sentido, não achas que seria mais sensato defenderes o teu lado do mundo? Nem que fosse por seres mulher. Nem que fosse por seres jornalista. Nem que fosse por respeito que deves à tua própria inteligência. Desafio-te assim, a colocares como subtítulo do teu blog, o título deste meu post. Ou então, caramba, assume a burka de uma vez por todas! E se não souberes para que lado fica Meca, telefona.

Da natureza do génio.

“Muss es sein? Es muss sein! Es muss sein!”

- Ludwig van Beethoven, comment written on the finale of his String Quartet in F Major, Op. 135

Ludwig van Beethoven. O nome, gordo e grandiloquente, soa génio e ele era um. Trincado pelos maus tratos de seu pai, que o queria em criança bobo da corte como Mozart (para desgraça de todos), passado a ferro pela crueldade da vida e humilhado pelo seu próprio temperamento de touro na arena, espancado pelo desgosto de amor (ele, que só teve um amor), empalado na sua moral austera, crucificado pela surdez, garroteado pela ausência de talento do sobrinho que amava, encornado pelo irmão, vilipendiado pela doença, aprisionado em Viena, enlouquecido pela solidão; Beethoven transcendeu o desespero e gritou arte a viva voz. A um dado passo, na sua última sinfonia - a Nona - compõe para a Ode à Alegria de Schiller uma partitura que parece perdoar a humanidade e os deuses e a cruz que nos espera a todos. Mas não. O grande mestre da história da música não perdoa ninguém e muito menos os deuses. E porque é que eu sei isto? Porque ele próprio o escreveu: “Muss es sein? Es muss sein! Es muss sein!” Pois tinha que ser assim e não podia ser de outra maneira. Tinha que ser surdo o génio, tinha que ser pisado e insultado, tinha que ser castrado e enfurecido, injustiçado e diminuído, ignorado e humilhado. Não seria a arte imortal se fosse ausente das dores da vida. E não seria humano quem, mesmo assim, perdoasse o verdugo. Filósofos e escritores, biógrafos e clubes de fãs andam à séculos às voltas com o imperativo categórico do Opús 135, sem perceber coisa alguma. O palerma do Milan Kundera (meu quixotesco e falacioso herói de adolescência) até vendeu a história de que o estranho epigrama resultava de uma zanga entre o mestre e uma das suas incontáveis mulheres a dias. Disparate enorme. O que Beethoven quis deixar claro é cristalino: o que tem que ser, tem muita força. E a força da Nona Sinfonia só resulta da angústia que nos oferece o mundo, o homem e a religião. Neste sentido, creio bem que a arte, para Ludwing van Beethoven, era uma espécie de vingança.

sexta-feira, setembro 24, 2004

A culpa é minha.

Cada dia que passa, é mais e mais evidente que este é, por agora, o pior governo da Terceira República. Caramba, parece até que estes senhores e estas senhoras ambicionam a idiotia suprema, o vexame público, a ignomínia e a desonra. Dá a sensação que desejam mesmo ser tratados por doutores em incompetência da grossa e mestres em disparate compulsivo. E digo-vos: trago comigo a suspeita de que Santana Lopes quer acabar com o País, ou vendê-lo aos espanhóis ou matar os portugueses de constrangimento, ou qualquer outra coisa vergonhosa do género.
Apesar disto, parece-me - no mínimo - draconiano crucificar a Ministra da Educação pelo escandaloso atraso mental e despudorado cinismo colectivo em que sobrevive uma generosa fatia do funcionalismo público nacional.
Os portugueses têm vindo pelos séculos a alimentar esta ideia de que o país é uma miséria por culpa das élites que detêm o poder político. Este modismo da psicologia social portuguesa tem muito que se lhe diga. Primeiro porque, a ser válida a tese, a sua antítese concluíria que os Ingleses creditam à brava a sua classe política pelo excelente país em que vivem. Não é, obviamente, o caso. Depois, se podemos responsabilizar quase exclusivamente D. Sebastião pelo desastre de Alcácer Quibir - e dos outros que se lhe seguiram em catadupa até à ocupação dos Filipes - não é legítimo que deixemos cair o megalítico fardo da derrocada moral, operacional e financeira do Estado Português nas almas que elegemos para tomar conta da Coisa: ao contrário dos despotismos, a democracia dá-nos a capacidade de governar, por interposição, a querida pátria.
Se os nossos políticos - já de si entidades reflexas da sociedade de que emergem - não prestam para nada, é porque andamos a escolher mal os nossos políticos. Mas da mesma forma, se as máquinas administrativas que servem a gestão política não funcionam (literalmente), não será tempo de perceber que essa responsabilidade também compete à performance profissional dos seus quadros?
Se Portugal é o caos, a culpa não será, enfim, dos portugueses?
Eu, por exemplo, sei bem que a culpa é minha. Sou preguiçoso e arrítmico. Tenho tiques disfuncionais e sofro de iliteracia em novas tecnologias. Para além do mais, pasme-se, tive a inconsciência brutal de votar no Dr. Santana Lopes para Presidente da Câmara da minha cidade, muito por culpa do Dr. Guterres, é verdade, mas ainda assim um crime de Lesa Pátria pelo qual devia ser punido pelo Dr. Bagão Felix, que - se o deixassem - viria logo muito pressuroso, cobrar-me, com juros e ameaça de penhoras, os benefícios fiscais que deduzi à colecta desde que sou um ente tributável.
Mas sim, eu sei, a culpa é minha. E quero aqui apresentar desde já as minhas mais sinceras desculpas aos alunos e seus respectivos encarregados de educação pelo abstruso facto de o ano lectivo não ter sido capaz de começar. E já agora, pela ignorância em que vivem mergulhados os filhos da nação. E só não me demito - acreditem - porque não exerço cargo público.

Fado Cacilheiro


Sou um velho cacilheiro
na doca seca a navegar.
A morte é um marinheiro
que se demora no mar.

Trago musas no porão,
antigas glórias do Tejo.
Sou uma velha embarcação
longe da maré que desejo.

Sou um velho cacilheiro
já sem carta de marear
estou perdido no novoeiro
da doca seca à praia-mar.

Trago as tágides na proa
e os dez cantos do Camões.
Sou um velho de Lisboa
com saudade das monções.

Sou um velho cacilheiro,
na doca seca a navegar.
Para quem é prisioneiro,
o tempo corre devagar.

Trago comigo essa glória
do Tejo desaguar pelo mundo.
Sou um velho sem memória
imerso em sono profundo.

Sou um velho cacilheiro,
não tenho pressa de chegar.
A morte é um marinheiro
que se demora no mar.

quinta-feira, setembro 16, 2004

Degenerescência.

Desgraçadamente, o Blogger não me permite dar resposta às opiniões que vão sendo colocadas no meu próprio blog! Mas porque não posso deixar passar em claro as observações que um senhor anónimo deixou a propósito do post sobre Mário Soares, transporto a polémica para fora do âmbito da caixa de comentários.
Para já, o que disse este senhor(a):

<<É natural que custe muito a algumas mentes "avançadas" ouvir o que diz hoje o Dr.Mário Soares e outros, como o prof. Adriano Moreira, o prof. Freitas, etc...
É natural que estas mentes "avançadas", e contudo tão decrépitas para a idade, não gostem de ver alguém a pôr em causa os tachitos, seus e dos amigos...
Mas, o que havemos de fazer? A verdade é mais forte que a mentira, não é?!>>

Bom, não sei se esta criatura me conhece pessoalmente (parece ter a pretensão de saber a minha idade), mas perdeu uma belíssima oportunidade para fazer silêncio sobre o seu infeliz delírio. Sempre trabalhei para empresas privadas (agências de publicidade) e - como é fácil adivinhar - em nenhuma situação fui recrutado pela minha visão política. Hoje trabalho por conta própria e só dependo de mim - e da paciência dos meus clientes, que, naturalmente, não se ralam nada com as minhas opiniões sobre o Dr. Mário Soares, o Papa Inocêncio V, o ministro Colbert ou as barbas de Maomé. Tenho tachos em casa, mas também não lhes dou uso, já que como gosto apenas de fazer aquilo em que sou minimamente competente, recuso-me a cozinhar. Quanto aos meus amigos, lamento imenso defraudar as expectativas deste senhor anónimo, mas não mantenho relações afectivas com ninguém que tenha subido (ou descido) na vida por ser deste ou daquele partido político.
De qualquer forma, este senhor parece ser ingénuo ao ponto macrocósmico de pensar que os amigos do Dr. Mário Soares - olha quem! - nunca arranjaram um empregozito na vida por causa disso mesmo: de serem amigos dele. É demais caramba!
Seja como for, eu percebo bem as patologias que consubstanciam o comentário esquizofrénico: não se pode dizer nada do sumo pontífice da esquerda nacional, que ficam logo muito ofendidos os camaradas, injuriando toda a gente com os mesmos dogmas pequenos que lhes preenchem a existência filosófica, içando imediatamente as bandeiras da verdade e da mentira como se fossem os donos de uma e de outra. Agora, como a malta não tem culpa nenhuma do deficit em inteligência e do desmaio da razão, peço-lhe encarecidamente que nos poupe, senhor anónimo. Seja económico no dislate e invista mais no psicólogo. Vai ver que compensa.

quarta-feira, setembro 15, 2004

Decadência.

Hoje vi e ouvi um dos grandes personagens da Europa do Século XX a dizer tantas barbaridades por minuto que até fiquei zangado por não haver censura. Faz agora muita falta ao Dr. Mário Soares o asilo do pudor. O homem lembra-me a Amália, já sem voz, perante a plateia repleta e em júbilo do Coliseu dos Recreios. Nem canta bem, nem engana o incauto, mas a malta levanta-se para aplaudir o mito. E se Mário Soares está na Sic Notícias a ser "entrevistado" por um tipo completamente subserviente, é só para continuar a ficar no boneco. E é realmente triste - triste como a Trova do Vento que Passa - vê-lo assim, tão decrépito.

quinta-feira, setembro 09, 2004

Os Sonetos da Cidade Fantasma - Canto III


Uma cidade assim calada de buzinas,
sem os escapes abertos das motoretas,
é terra sagrada para anjos e poetas,
santo silêncio para jograis e ardinas.

Até esse bairro chique de Alvalade
(sempre tão ufano, tão sofisticado),
ficou deserto, quase envergonhado,
do tempo em que suava de vaidade.

E o Largo do Município sem limusinas,
sem fato nem gravata, mudo e calado,
seria um triunfo para as varinas!

Por isso digo e repito: foi de esteta
a manhã em que acordei espantado,
para o espectro da cidade deserta.


terça-feira, setembro 07, 2004

Sobre o Horror.

I - O que se passou em Beslan, na Ossétia russa, ultrapassa, largamente, os limites do terror a que estamos habituados. Trata-se de crueldade em estado líquido, esse puro ópio da demência. Trata-se de homens que se obrigam a fuzilar crianças em fuga de um pesadelo que eles próprios engenhosamente criaram, de homens que colocam mil inocentes sem alternativa que a de ingerir a sua própria urina, de homens cuja interpretação de Deus envergonharia qualquer inquisidor da idade das trevas. Trata-se de gente que odeia muito para além da religião, da razão, da moral, da condição económica, do instinto de sobrevivência. Mais que a retórica da administração americana, estes é que são os actos que de facto abrem o contraste entre o bem e o mal.

2 - Mesmo assim, são as vozes contra Vladimir Putin - e não contra os terroristas - que mais se levantam na Europa. Quantas crianças é que vão ter que morrer nas escolas do mundo ocidental para que os seus pais estejam finalmente preparados para morrer no campo de batalha? Que mais tem que fazer Ben Laden - e outros muitos como ele - para ser perseguido como o inimigo fundamental?
O problema psico-social dos últimos 60 anos na Europa é que - ainda traumatizados pelos horrores da guerra - os seus povos não conseguem perceber que existem causas de civilização que superam o valor da vida individual. Em honra dos milhões que morreram defendendo essas causas nas costas da Normandia como nas fronteiras francesas do fim do século XVIII, nas prisões de Joanesburgo como na batalha de Gettysburg, em Álamo como em Dunquerque, na cruz de Pilatos como nos fornos de Auschwitz; em honra daqueles que sacrificámos durante séculos, é preciso entender que nos esperam novos sacrifícios. A liberdade sempre foi muito cara e o preço não baixou com a soma das eras. Dir-me-ão que esta é a lógica do terrorista. Eu direi: é precisamente pela natureza do inimigo que temos pela frente que devemos assumir o imperativo categórico. O mesmo aliás que no decorrer do Século XX, nos pareceu válido quando entricheirámos a morte para deixar vazio de poder o absolutismo habsburgo, para derrubar a loucura de Hitler ou para combater o imperialismo comunista.

3 - Por cá, a proverbial imbecilidade que domina a comunicação social portuguesa fez da morte um festim, da ignorância um banquete e do horror a especialidade da casa. Os monstros que perpetraram um dos mais tenebrosos factos da história moderna da humanidade, foram sujeitos à filologia do absurdo pelos jornalistas de serviço, que lhes chamaram “guerrilheiros”. Nem raptores, nem bandidos e muito menos terroristas, mas apenas um termo tão neutro que dá vómitos. Se eu fosse de esquerda, sentir-me-ia insultado pelo facto de nomearem estes homens com a mesma sintaxe que se tratava Che Guevara. Como não sou de esquerda, fico todo arrepiado, como quem vê o fim.
Em directo no Canal 1, José Rodrigues dos Santos mostrou uma evidente incredulidade, até mesmo indignação (muito mal disfarçada), quando o correspondente em Moscovo lhe disse que os russos perceberam e, na sua maioria difícil, aprovaram o comportamento governamental. Habituados a co-existir com estados imperiais, os russos sabem de história. Rodrigues dos Santos, vitima de seu país e de si mesmo, habituado somente a ler teleponto das oito às nove da noite, não sabe de coisa nenhuma.

Nota de rodapé: agora o homem está doente, mas quando recuperar gostaria que Bill Clinton explicasse melhor ao mundo porque raio andou sempre a moer o juízo de Putin a propósito da Tchechénia. Enquanto isso, ficarei com a suspeita de que não são só os republicanos a alimentar amizades inconvenientes no Médio Oriente.E, pelo sim, pelo não, vou enviar um email ao Michael Moore para saber se ele quer fazer um filme sobre isso.

quinta-feira, setembro 02, 2004

Manifesto.

Como ainda não falei da missão e dos valores deste blog, aqui fica o registo:

a) Este é um blog sem pretensão a blog. Já tive um desses que não me trouxe felicidades. Que me consumiu o tempo que não tenho para ser consumido.
b) Estou-me completamente nas tintas para o facto de ter apenasmente como leitores a minha santa mãe querida e mais dois ou três sujeitos da minha amizade. Não escrevo para que me leiam, escrevo porque o mundo me castiga com insultos.
c) Filosoficamente, este blog respeita a visão sobre a condição humana que toda a gente pode ler em melhor nas máximas de Schopenhauer, Nietzsche e Bachelard; nas páginas escritas por John Steinbeck, Stendhal, Àlvaro de Campos, Erico Veríssimo, Franz Kafka, Jorge Luís Borges, Marguerite Yourcenar, James Joyce, Seutónio, Edward Gibbon e Aldous Huxley; nas telas de Velasquez, Bosch, Francis Bacon, Edward Hopper, nas pautas torturadas por Wolfgang Amadeus Mozart, Ludwig Von Beethoven, Johann Sebastian Bach (que só compunha música para os ouvidos de Deus), Vivaldi (em vez de Verdi), Rossini e Strokes (por ausência de Tubes); nos olhos telescópicos de Lars Von Trier, Stanley Kubrick, David Fincher, Cecille B. de Mille, Hitchcock; no terror dos Czars e no desdém dos Habsburgos e no pragmatismo elegante dos Medicis e no saber intuitivo de Albert Einstein, Isaac Newton, Von Braun, Godel, Heisenberg, Kepler, Galileu, Stephen Hawking, Bartolomeu de Gusmão e - claro está - Homero, Platão, Cristo, Da Vinci, Kant, Winston Churchill e Júlio César.
d) Este blog é, assim, um manifesto contra o humanismo. Essa coisa horrível de gostar de pessoas porque são pessoas, como horrível será amar a vida só porque se está vivo.
e) Por isso, este blog só linka blogs de pessoas de quem gosto, raríssimas excepções que faço à regra, mais o blog do Pacheco Pereira (que é uma fraqueza minha).
f) Este blog não tem afinal valores, nem tão pouco uma missão. Tem só o esperma dos dias. A espuma do tempo. O desinteressado e desinteressante pasmo perante o abismo.

Tudo o resto é devaneio - a suprema arte do século XXI.

terça-feira, agosto 31, 2004


Andei por terras da Costa Vicentina e por praias de Sagres - que não sendo geograficamente o ponto mais ocidental da Europa, é simbolicamente o ponto mais ocidental da Europa - e, em Agosto, não há ninguém. Chega-se à praia que não vos digo qual é e não está lá ninguém. E é uma da tarde. E é no Algarve. E é um orgasmo. Andei por terras habitadas pelo vento, vividas pelo tempo, povoadas pela espuma das ondas e desertas de gente. Sem fazer 30 horas de avião. Sem ter que falar línguas, beber café estrangeiro, comer comida sem sal ou vampirizar a miséria dos povos dos trópicos. É aqui mesmo a 250 quilómetros da minha rua e eu só espero é que não me liguem nenhuma e continuem a ir para a Indonésia, para o Brasil, para a ilha alcatraz de Cuba, o Cancun das luas de mel, as Caraíbas, as Seichelles, as Canárias, Ibiza, Madeira, Açores, Cabo Verde, Moçambique, Torre Molinos, Málaga, Saint Tropez, Capri, ou para o diabo que vos carregue! Portugal precisa de paz. Por isso no próximo Verão, façam-me o favor enorme que me fizeram agora e vão por esse mundo. E deixem Portugal só para mim, está bem? Combinado? Mil obrigados.


Má onda.

E se um barco - tipo “prossecutors on waves” -chegasse às águas territoriais portuguesas, com pavilhão inglês ou norte americano e ganas de promover a legalização da pena de morte? Teríamos mesmo assim 50 jornalistas portugueses a bordo? Prime time sobre as ondas? Humilhação da lei portuguesa e dos bons costumes em directo, de hora a hora, na SIC Notícias? Não é preciso ser contra ou a favor da despenalização do aborto para ficar enjoado com o presente balanço mediático do mar português.E, já agora, quem em nome do deus que não há, inventou esta coisa conceptualmente nazi do barco do aborto?

segunda-feira, agosto 30, 2004

Os Sonetos da Cidade Fantasma - Canto II


Do vazio da Baixa ao Bairro Alto
fui subindo a sós pelo Chiado:
não fui visto nem incomodado
pela gentinha em sobressalto.

Na Brasileira, estava o Pessoa
na esplanada do fim sentado,
com olhos de pedra e danado
por ter de morrer em Lisboa.

Mas, senhores, que sensação:
passear no Rossio abandonado,
sem a entropia da multidão!

E ver a Avenida da Liberdade
- outrora em fluxo saturado -
toda despida de humanidade!


segunda-feira, agosto 16, 2004

Os Jogos Olímpicos da Cabra Cega.


O eloquente Claque Quente já disse quase tudo o que havia para dizer sobre o fenómeno - e não é meu hábito escrever sobre assuntos já dissecados por blogues amigos - mas deu-me uma vontade grande de escrever isto: se os senhores do Comité Olímpico, na sua inteligência de hipópotamos endinheirados, acham que actividades alienígenas como a natação sincronizada(?) ou o softball(???) são dignas do torneio, então, que diabo, porque raio de critério abstruso não estão presentes modalidades veneradas por milhões como o Rugby, o Hóquei em Patins, o Futebol Americano ou o Cricket? E, por lógica inversa, porquê manter afastados da distinta competição desportos tão universais como o Jogo do Berlinde, o Jogo da Glória, o Jogo do Galo, o Master Mind, a Batalha Naval, o Toca e Foge, o Quarto Escuro, a Verdade e Consequência, o Bate Pé,os Quatro em Linha, a Luta de Bar, o Jogging, o Step e as Corridas em Carrinho de Esferas?
De quatro em quatro anos, estes sábios da razão desconcertante acrescentam mais um disparate à já longa e inóqua lista de modalidades olímpicas, misturando amadores com profissionais, o vale tudo da alta competição com o cavalheirismo de sobrecasaca, valores clássicos com ambições modernas, corrupção com puritanismo e universalismo com idiotia; até que, naturalmente, os jogos acabem por perder todo o seu significado.

domingo, agosto 15, 2004

Os Sonetos da Cidade Fantasma - Canto I


Acordei um dia na cidade deserta,
com Lisboa só para mim, calma,
tranquila, sem sinais de viv’alma,
nua de gente, ausente e aberta.

Das avenidas novas até à solidão,
só com semáforos por companhia.
Eis a silhueta da cidade vazia:
natureza morta em tela de betão.

Deitei-me no asfalto - à revelia;
fui voz única no eco dos viadutos.
fui enfim deus de mim por um dia.

Soltei gargalhadas nas praças,
fui mijando pelos aquedutos
e, juro-vos, fui feliz p'ra caraças!
 


quarta-feira, agosto 11, 2004

A importância de ser Artur.

Hoje tive o privilégio de jantar com um dos meus ídolos de infância. Chama-se Artur e foi outrora amado por milhares de verdadeiros adeptos do futebol verdadeiro que lhe chamavam "o russo". Artur, lateral esquerdo da Académica de Coimbra, do Benfica, do Sporting e da Selecção Nacional, fez nos anos 70 coisas que hoje nos são estranhas como por exemplo: limpar o seu corredor todo, durante 90 minutos, sem se dar por falta de um extremo; correr tanto que até doía (mas só a quem o estivesse a ver jogar); distribuir generosamente valentes dentadas, veementes puxões de orelhas, porradas de todo o género e pontapés na boca de quem canelasse no Eusébio ou, por desgraça, "fosse uma minhoca".
No decorrer do jantar reparei que o Artur é, como ser humano, aquilo que era como jogador da bola: 30 anos depois, somando tromboses, AVCês, cirroses e diabetes, já todo torto, o homem continua veemente, aguerrido, leal de peito alto, erguido para a vida.
O Artur falou-me de uma meia final da Taça de Portugal (Vitória de Guimarães - Académica de Coimbra) em que a camioneta do clube afogou três vezes e por três vezes os atletas da Académica empurraram o veículo para chegarem a Guimarães já em cima da hora, saindo a correr - e já equipados - directamente da carroça para o relvado. Falou-me de ser campeão sem derrotas (e eu lembro-me!) numa equipa de glórias conduzida por Jimmy Hagan, um genuíno sargento do império britânico, que deixava os assuntos marginais como a constituição do onze inicial para o capitão de equipa - na altura, Simões - preocupando-se sobretudo que os jogadores vomitassem de cansaço, evitassem as mulheres, não fizessem acompanhar o café do proverbial bagaço e se vissem privados dos vintes contos de prémio de jogo, quando venciam sem esforço. Falou-me de ganhar 5 a 1 ao Montijo no último jogo dessa época triunfal (72/73?) e partir logo - sem festas nem champanhe - para Saragoça, jogar um torneio que dava 16 mil dólares, porque o clube precisava do dinheiro. Este célebre Benfica, ainda com Eusébio, não se limitou a ganhar o torneio: contando com o jogo contra o Montijo, marcou em três partidas dezanove golos, sofrendo o Zé Henriques,apenasmente, três batatas.
O Artur falou-me ainda de sorrateiramente se escapulir da económica para a primeira classe de um voo da TAP, com o propósito de roubar uns pêssegos bonitos para o Toni, que adorava pêssegos.O Artur falou-me ainda de ganhar 34 contos por mês e falou-me, enfim, de gostar do balneário de Alvalade porque havia lá um corredor comprido com alcatifa, que servia bem para o aquecimento com chuteiras e até existia espaço para dar uns pontapés na bola, porque - por muito abstruso que isto possa parecer aos mais novos - na altura os jogadores não faziam o aquecimento no relvado.
Para ilustrar este post fui ao site do Benfica, à procura duma foto porreirinha deste enormíssimo atleta, benfiquista dos setenta e dois costados e homem com tudo em maísculas. Obviamente que procurei no capítulo das "grandes glórias" do clube. Grandes glórias como o Fernando Meira (ano e meio no SLB, zero títulos) estavam presentes. Artur, o russo, um dos melhores laterais que a puta da mãe natureza ofereceu ao futebol, campeão não sei quantas vezes, esforçado e valente cruzado da ordem da águia de ouro, não se encontra. Como hoje mesmo se viu na Luz, o Benfica contemporâneo é uma coisa tão estranha como um circo sem artistas. Mas seria menos doloroso tudo isto, se por inspiração de deus ou do diabo, ainda conseguíssemos respeitar um passado feito de homens assim, que iluminaram o percurso da história do desporto nacional com os valores da dignidade e da honradez entretanto desaparecidos. Vergonhosamente desaparecidos.
Oscar Wilde, ele também um desaparecido em combate, diria de Ernesto: "a presença de um homem só é urgente quando se torna necessária a aplicação do seu génio." Eu digo apenas: gostei à brava de jantar hoje com o Artur.

segunda-feira, agosto 09, 2004

Intermezzo


H. von Karajan - Amigo Leonard, tive esta conversa interessantíssima com Deus, que me garantiu ser eu o maior maestro da história da música!
L. Bernstein - Curioso, Herbert, não me lembro nada de ter tido essa conversa consigo.

quarta-feira, agosto 04, 2004

De que é as senhoras estão a falar?

Ein Hopper für 92 Millionen | Monopol
“Whom did I meet? Nobody. I'd heard of Gertrude Stein, but I don't remember having heard of Picasso at all. I used to go to the cafés at night and sit and watch. I went to the theatre a little. Paris had no great or immediate impact on me.”
- Eward Hopper sobre a sua estadia em Paris, por volta de 1906 -

Este não é o meu quadro favorito do Hopper. É, apesar disso, o mais indisciplinado, razão suculenta para o trazer à conversa. Edward Hopper foi rei e senhor do império do subliminar e a sua obra estática enche-se de movimento na nossa inteligência. Foi o mago da geometria da alma na cidade vazia e as suas representações minimais tornam-se barrocas no nosso entendimento. Foi o realista supremo do silêncio e da inocuidade e as suas telas despidas, adornam-se de trajes ocultos no quarto de vestir da nossa sensibilidade. Este introspecto e circuspecto génio da arte moderna, vingança iluminada da gente vulgar, virtual campeão da classe média americana, ele mesmo, a antologia da banalidade, que viveu em Paris nos dias de triunfo dos modernistas sem nunca dar com eles nas ruas e nos cabarets onde os procurava; que passeou pelas urbanidades todas da arte europeia sem deixar esperma nem receber dentada; Edward Hopper, esse lado obscuro da lua numa noite de lua nova, nunca afirmou coisa nenhuma: deixou apenas vestígios. Pistas. Suposições. Adivinhas. Charadas. De que é que estas duas senhoras estão a falar? O que eu leio, no reclame do lado de fora da janela, é SEXO. Estas duas senhoras, de ar diletante e de sobremaneira entediadas pela intimidade comezinha do café de bairro, conversam sobre sexo. Não é que esteja lá escrito com todas as letras, não. Mas está-se mesmo a ver. E isso não é de um quadro de Edward Hopper, senhores, que o homem desleixou-se aqui, na sua missão estética de monstro enigmático.

terça-feira, agosto 03, 2004

O Poema da Malta das Naus

OU PORQUE É QUE EU GOSTO TANTO DO GEDEÃO

"Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das prais
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me a gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal. "

António Gedeão - Movimento Perpétuo - 1956

quinta-feira, julho 29, 2004

A febre Scalex Tric: partida para a glória.


Lembro-me de mim adolescente petulante que lia Aldous Huxley entre duas corridas do campeonato de Fórmula 1 em carrinhos da Lego. Lembro-me de mim muito aflito quando a namorada entrava pelo quarto a dentro (nesses tempos, a minha casa oferecia a privacidade de um café central) e me encontrava empurrando carrinhos de um lado para o outro, repetidamente, concentradamente, até decidir, na última volta, quem venceria: Alain Prost ou Alan Jones. Lembro-me das ameaças do género: ou brincas ou namoras. Lembro-me de, a mais das vezes, preferir o ActionMan ou as profecias do Huxley. Lembro-me de desenhar, muito à pressa, o logotipo dos MotorHead na parede (as paredes do meu quarto eram aguarelas da puberdade), mesmo a tempo de terminar a batalha de Inglaterra com os kits da Revell, muito mal montados. Lembro-me desses stukas, desses spitfires e desses Messerschmitt como se fosse hoje que mergulhassem em ataque terminal pelos céus do escritório. Lembro-me de sair mais cedo das matinés dançantes no Rock Rendez-Vous e no Acapulco para ir brincar às escondidas com os Matchbox e os Corgytoys. Lembro-me de pensar com triste lucidez que já não tinha idade para inventar patifarias dignas de Butch Cassidy, para simular o palco sonoro dos disparos de Lone Ranger ou do relinchar de Silver, o seu nobre cavalo branco. Lembro-me de olhar para a minha pista (um oito miserável, mas com contador de voltas e tudo) e como quem arruma os brinquedos para nunca mais brincar, concluir com desesperada clarividência que já não tinha infância para construir, todas as tardes, um admirável mundo novo. (cont.)

terça-feira, julho 27, 2004

Tributo

Sobem pelo caminho das cinzas ao cimo da serra, descem ao inferno fornalha pela limalha da terra. Peritos em perigos, guerreiros operários; são profissionais e amadores, sapadores e voluntários. Como um bravo exército sem maneiras, combatem com machados e armados de mangueiras. E quando é a esperança que já arde, inundam de coragem a desgraça, antes que se faça tarde. Vencedores e carrascos sobre o fogo voraz, triunfam e caem carbonizados, os soldados da paz. Não acumulam fortunas, não se consomem em famas: são só heróis afinal de um Portugal em chamas.

segunda-feira, julho 26, 2004

O Super Homem anda de bicla.

Contra tudo e contra todos Lance Armstrong tornou-se ontem o ciclista mais bem sucedido de sempre na Volta à França - um evento desportivo desenhado e organizado por sádicos - com 6 vitórias na prova. Este ano, a sua superioridade foi esmagadora, sobrando-lhe ainda energia para requintes de malvadez, que incluiram: a) 6 vitórias em etapas; b) 3 vitórias nos 3 contra-relógios da prova (dois individuais e um por equipas); c) Um sprint sobre-humano à chegada da 17º etapa (depois de 205 quilómetros e 5 contagens de montanha), em que nos últimos 300 metros recuperou uma desvantagem de 100 para o alemão Andreas Kloden que tinha, aparentemente, a vitória garantida. d) A humilhação a que submeteu Filippo Simeoni (a quem interpôs um processo judicial por difamação) na 18ª etapa, perseguindo-o, sem ajuda da US-Postal, na fuga que o italiano empreendeu e anulando assim o seu esforço. e) 9 minutos de diferença para o seu mais directo rival (e um grande ciclista): Jan Ullrich. José Azevedo, o número dois da US Postal, ficou em quinto, a segunda melhor marca de sempre de um ciclo-tuga. Se Armstrong não correr para o ano e Azevedo contar com a vontade política da equipa americana (e mais alguma ambição) arriscamo-nos todos a ver um português ganhar o Tour.

domingo, julho 25, 2004

sábado, julho 24, 2004

Arte contemporânea é Arte Nova?


Pelos vistos, também é. Senão vejamos: Fernando Aguiar expõe, numa salinha pequena do Museu Nacional do Traje, ilustrações que reflectem a tipologia estética de transição entre o século décimo nono e o vigésimo, submetidas a um genial trabalho de tipografia em que a letra deixa de ser semântica para ser exclusivamente, despreocupadamente, sintaxe. Quero eu dizer que a inquietação própria da epistemologia da arte actual encontra, neste cantinho, atitudes de lucidez artística. De insolência filológica. De impulso universalista. O autor chama-lhe Poesia Visual. Eu prefiro falar de Coragem Gráfica. Peço-vos encarecidamente, caros e necessariamente escassos visitadores deste blog: da próxima vez que passarem no Paço do Lumiar, façam uma pausa de 5 minutos, estacionem o automóvel (é logo à esquerda de quem entre pela Padre Cruz e tem um pequeno mas suficiente parque de estacionamento) e procurem pela exposição "A Poética e o Traje". Está patente até ao fim de Setembro e trata-se de uma mostra especialmente sedutora para designers gráficos, mas é importante para todos saber que a arte contemporânea também se reinventa aqui, no último país do Ocidente. Grande, enorme, impossivemente possível Fernando Aguiar!

quarta-feira, julho 21, 2004

A febre Scalex Tric: volta de aquecimento.


Lembro-me dos tempos paleolíticos em que era criança e construía longas rectas, só para atirar violentamente os carros contra a parede da varanda. Lembro-me de misturar o comboio eléctrico da Lego com a pista de automóveis, os soldadinhos da Timpo, os bonecos da Airfix, os castelos da Knex e o feltro do Subutteo. Lembro-me de não ter consciência de escala e preocupações de realismo. Lembro-me de me divertir à grande e a sós, no meu quarto de filho único, construíndo e destruíndo mais sonhos que apenas os meus (sim, destruindo também os sonhos dos outros). Todos contra todos, os meus brinquedos banhavam-se em gloriosa cosmogonia para meu deleite. Só para meu exclusivo prazer de deus ímpio, alegre e despreocupado, entornavam-se exércitos em rios de sangue, defrontavam-se grandes clubes do futebol europeu em chacinas de verde, amigavam-se mouros e peles vermelhas, cruzados e cowboys lutavam lado a lado contra o Afrik Corps, enquanto do quartel dos bombeiros da Lego Ville saía uma brigada para apagar o incêndio que teria deflagrado algures, na sala de jantar. Lembro-me de queimar - subtilmente - um dedo no motor de um carrinho de pista. Lembro-me de pensar que os motores de carrinhos de pista que aquecem ao ponto de me queimar - subtilmente - o dedo, são a coisa mais prodigiosa da criação toda. (cont.)

segunda-feira, julho 19, 2004

A vila da vergonha.

Dogville [2003] : CineShots
Lars Von Trier está para o cinema como Arthur Schopenhauer para a filosofia: cientistas do colapso da alma humana, ambos assumiram com determinação implacável a ambiciosa missão de erradicar da consciência qualquer vestígio de esperança. E se, quanto à boa prossecução deste propósito, podemos apontar uns poucos equívocos e outras escassas ineficiências à sabedoria de Arthur, o certo é que Lars parece muito mais competente. Se alguém ainda tem dúvidas sobre a condenação última da humanidade à mais miserável condição moral, Dogville é a obra lapidar. Um manual de normas para reduzir a cinzas a vaidade do Homem. E só para testemunhar o desempenho de Nicole Kidman no papel de Jesus Cristo vale a pena ver o filme dez vezes.

Rise of the machines

Watch The 10 Senses That Will Make Robots More Human ...
Este mês, a wired presta o devido tributo ao andróide, esse grande protagonista do imaginário sci-fi, esse belo monstro que a tecnologia há-de parir para extermínio funcional da raça humana. Ou para sua suprema felicidade. Da visão de Isaac Asimov, ao Gigolo Joe de Kubrik/Spielberg, a Wired trata o tema com impulso enciclopedista. Um número a não perder para amantes da ficção científica. As 3 leis de Asimov (1940): [ 1 ] A robot may not injure a human being, or, through inaction, allow a human being to come to harm. [ 2 ] A robot must obey orders given it by human beings except where such orders conflict with the First Law. [ 3 ] A robot must protect its own existence as long as such protection does not conflict with the First or Second Law.

Porque é que eu gosto tanto do Régio?

"Vem por aqui - dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe

(...)

Como, pois sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
- Sei que não vou por aí!"

José Régio - Cântico Negro

domingo, julho 18, 2004

Fidalgos do Século XXI

Mesmo com critérios de selecção ao nível do recrutamento de soldados praças, Santana Lopes viu-se e desejou-se para conseguir formar governo. Na verdade, ninguém quer governar Portugal. As elites nacionais têm pelos ministérios a aversão que a fidalguia do século XV tinha pelas artes do comércio: é coisa suja. É ofício indigno de gente sábia que prefere os prazeres almofadados dos conselhos de administração de instituições - essas sim veneráveis - como A PT, a Brisa, a TAP, a RTP, a EDP e outras que tais que oferecem bons ordenados, Audis A6 de dois em dois anos e a segurança barriguda de serem participadas pelo estado. Nestes casos, naturalmente, já não se importam estes novos aristocratas com a sujidade da coisa pública.
Sempre defendi que os políticos deviam ganhar muito melhor e é de uma demagogia verdadeiramente imbecil - com efeitos dramáticos sobre a cultura de gestão do estado - continuar a pagar tuta e meia aos dirigentes da nação (como defendeu recentemente o próprio Santana Tiro no Pé a propósito do célebre salário do Director Geral dos Impostos). Mas ainda assim, começa a enevar-me sobremaneira este nojo com que a nata da tecnocracia lusitana trata a República.

Azul de Raiva.

Blue Sun - Nasa by LigaLiteraria on DeviantArt
De olho ultra-violeta apontado para o Sol, o observatório heliosférico Soho ensina-nos que somos vizinhos de um corpo celeste de terrível temperamento, câmara de combustão enraivecida pela solidão do universo, aqui captada em plena tormenta magnética, cuspindo flares e plasma em jactos que alcançam facilmente a altura de dez perímetros terrestres. Afinal, o sol é a substância do caos, a forma da fúria, a essência da entropia. Afinal, é um astro de maus fígados, um discóbolo deus fulminante, um pesadelo térmico em convulsão megalítica que nos ilumina o sofrido caminho pela homérica curvatura da terra.

sexta-feira, julho 16, 2004

As razões da felicidade ou a Oitava Sinfonia

Quem ouve a Oitava Sinfonia de Beethoven chega facilmente à conclusão que a obra foi escrita por um homem feliz. Tchaikovsky - ele mesmo, tão egoísta em elogios - escreveu sobre esta obra prima o seguinte: "It is the last bright smile, the last response, given by the poet of human sorrow and hopeless despair to the voice of gladness". Acontece porém que, à época da sua composição, o Mestre vivia, como sempre viveu, em fúria e dor e danação. Atirado para a casa do seu irmão Johann em Linz, com o propósito de curar uma feroz intoxicação alimentar, cedo descobre que o desgraçado se perde em delícias e volúpias com a criada de quarto. Beethoven desaprova o desagravo social com unhas e dentes: faz tudo o que lhe é possível para exterminar a relação bastarda, incluindo queixas à polícia e protestos no bispado. Contrariando a austera vigência moral do seu irmão mais velho, Johann arranja maneira de casar com a criada da noite para o dia, e é por isso que rebenta a Oitava Sinfonia.