terça-feira, setembro 07, 2004

Sobre o Horror.

I - O que se passou em Beslan, na Ossétia russa, ultrapassa, largamente, os limites do terror a que estamos habituados. Trata-se de crueldade em estado líquido, esse puro ópio da demência. Trata-se de homens que se obrigam a fuzilar crianças em fuga de um pesadelo que eles próprios engenhosamente criaram, de homens que colocam mil inocentes sem alternativa que a de ingerir a sua própria urina, de homens cuja interpretação de Deus envergonharia qualquer inquisidor da idade das trevas. Trata-se de gente que odeia muito para além da religião, da razão, da moral, da condição económica, do instinto de sobrevivência. Mais que a retórica da administração americana, estes é que são os actos que de facto abrem o contraste entre o bem e o mal.

2 - Mesmo assim, são as vozes contra Vladimir Putin - e não contra os terroristas - que mais se levantam na Europa. Quantas crianças é que vão ter que morrer nas escolas do mundo ocidental para que os seus pais estejam finalmente preparados para morrer no campo de batalha? Que mais tem que fazer Ben Laden - e outros muitos como ele - para ser perseguido como o inimigo fundamental?
O problema psico-social dos últimos 60 anos na Europa é que - ainda traumatizados pelos horrores da guerra - os seus povos não conseguem perceber que existem causas de civilização que superam o valor da vida individual. Em honra dos milhões que morreram defendendo essas causas nas costas da Normandia como nas fronteiras francesas do fim do século XVIII, nas prisões de Joanesburgo como na batalha de Gettysburg, em Álamo como em Dunquerque, na cruz de Pilatos como nos fornos de Auschwitz; em honra daqueles que sacrificámos durante séculos, é preciso entender que nos esperam novos sacrifícios. A liberdade sempre foi muito cara e o preço não baixou com a soma das eras. Dir-me-ão que esta é a lógica do terrorista. Eu direi: é precisamente pela natureza do inimigo que temos pela frente que devemos assumir o imperativo categórico. O mesmo aliás que no decorrer do Século XX, nos pareceu válido quando entricheirámos a morte para deixar vazio de poder o absolutismo habsburgo, para derrubar a loucura de Hitler ou para combater o imperialismo comunista.

3 - Por cá, a proverbial imbecilidade que domina a comunicação social portuguesa fez da morte um festim, da ignorância um banquete e do horror a especialidade da casa. Os monstros que perpetraram um dos mais tenebrosos factos da história moderna da humanidade, foram sujeitos à filologia do absurdo pelos jornalistas de serviço, que lhes chamaram “guerrilheiros”. Nem raptores, nem bandidos e muito menos terroristas, mas apenas um termo tão neutro que dá vómitos. Se eu fosse de esquerda, sentir-me-ia insultado pelo facto de nomearem estes homens com a mesma sintaxe que se tratava Che Guevara. Como não sou de esquerda, fico todo arrepiado, como quem vê o fim.
Em directo no Canal 1, José Rodrigues dos Santos mostrou uma evidente incredulidade, até mesmo indignação (muito mal disfarçada), quando o correspondente em Moscovo lhe disse que os russos perceberam e, na sua maioria difícil, aprovaram o comportamento governamental. Habituados a co-existir com estados imperiais, os russos sabem de história. Rodrigues dos Santos, vitima de seu país e de si mesmo, habituado somente a ler teleponto das oito às nove da noite, não sabe de coisa nenhuma.

Nota de rodapé: agora o homem está doente, mas quando recuperar gostaria que Bill Clinton explicasse melhor ao mundo porque raio andou sempre a moer o juízo de Putin a propósito da Tchechénia. Enquanto isso, ficarei com a suspeita de que não são só os republicanos a alimentar amizades inconvenientes no Médio Oriente.E, pelo sim, pelo não, vou enviar um email ao Michael Moore para saber se ele quer fazer um filme sobre isso.