terça-feira, agosto 31, 2004


Andei por terras da Costa Vicentina e por praias de Sagres - que não sendo geograficamente o ponto mais ocidental da Europa, é simbolicamente o ponto mais ocidental da Europa - e, em Agosto, não há ninguém. Chega-se à praia que não vos digo qual é e não está lá ninguém. E é uma da tarde. E é no Algarve. E é um orgasmo. Andei por terras habitadas pelo vento, vividas pelo tempo, povoadas pela espuma das ondas e desertas de gente. Sem fazer 30 horas de avião. Sem ter que falar línguas, beber café estrangeiro, comer comida sem sal ou vampirizar a miséria dos povos dos trópicos. É aqui mesmo a 250 quilómetros da minha rua e eu só espero é que não me liguem nenhuma e continuem a ir para a Indonésia, para o Brasil, para a ilha alcatraz de Cuba, o Cancun das luas de mel, as Caraíbas, as Seichelles, as Canárias, Ibiza, Madeira, Açores, Cabo Verde, Moçambique, Torre Molinos, Málaga, Saint Tropez, Capri, ou para o diabo que vos carregue! Portugal precisa de paz. Por isso no próximo Verão, façam-me o favor enorme que me fizeram agora e vão por esse mundo. E deixem Portugal só para mim, está bem? Combinado? Mil obrigados.


Má onda.

E se um barco - tipo “prossecutors on waves” -chegasse às águas territoriais portuguesas, com pavilhão inglês ou norte americano e ganas de promover a legalização da pena de morte? Teríamos mesmo assim 50 jornalistas portugueses a bordo? Prime time sobre as ondas? Humilhação da lei portuguesa e dos bons costumes em directo, de hora a hora, na SIC Notícias? Não é preciso ser contra ou a favor da despenalização do aborto para ficar enjoado com o presente balanço mediático do mar português.E, já agora, quem em nome do deus que não há, inventou esta coisa conceptualmente nazi do barco do aborto?

segunda-feira, agosto 30, 2004

Os Sonetos da Cidade Fantasma - Canto II


Do vazio da Baixa ao Bairro Alto
fui subindo a sós pelo Chiado:
não fui visto nem incomodado
pela gentinha em sobressalto.

Na Brasileira, estava o Pessoa
na esplanada do fim sentado,
com olhos de pedra e danado
por ter de morrer em Lisboa.

Mas, senhores, que sensação:
passear no Rossio abandonado,
sem a entropia da multidão!

E ver a Avenida da Liberdade
- outrora em fluxo saturado -
toda despida de humanidade!


segunda-feira, agosto 16, 2004

Os Jogos Olímpicos da Cabra Cega.


O eloquente Claque Quente já disse quase tudo o que havia para dizer sobre o fenómeno - e não é meu hábito escrever sobre assuntos já dissecados por blogues amigos - mas deu-me uma vontade grande de escrever isto: se os senhores do Comité Olímpico, na sua inteligência de hipópotamos endinheirados, acham que actividades alienígenas como a natação sincronizada(?) ou o softball(???) são dignas do torneio, então, que diabo, porque raio de critério abstruso não estão presentes modalidades veneradas por milhões como o Rugby, o Hóquei em Patins, o Futebol Americano ou o Cricket? E, por lógica inversa, porquê manter afastados da distinta competição desportos tão universais como o Jogo do Berlinde, o Jogo da Glória, o Jogo do Galo, o Master Mind, a Batalha Naval, o Toca e Foge, o Quarto Escuro, a Verdade e Consequência, o Bate Pé,os Quatro em Linha, a Luta de Bar, o Jogging, o Step e as Corridas em Carrinho de Esferas?
De quatro em quatro anos, estes sábios da razão desconcertante acrescentam mais um disparate à já longa e inóqua lista de modalidades olímpicas, misturando amadores com profissionais, o vale tudo da alta competição com o cavalheirismo de sobrecasaca, valores clássicos com ambições modernas, corrupção com puritanismo e universalismo com idiotia; até que, naturalmente, os jogos acabem por perder todo o seu significado.

domingo, agosto 15, 2004

Os Sonetos da Cidade Fantasma - Canto I


Acordei um dia na cidade deserta,
com Lisboa só para mim, calma,
tranquila, sem sinais de viv’alma,
nua de gente, ausente e aberta.

Das avenidas novas até à solidão,
só com semáforos por companhia.
Eis a silhueta da cidade vazia:
natureza morta em tela de betão.

Deitei-me no asfalto - à revelia;
fui voz única no eco dos viadutos.
fui enfim deus de mim por um dia.

Soltei gargalhadas nas praças,
fui mijando pelos aquedutos
e, juro-vos, fui feliz p'ra caraças!
 


quarta-feira, agosto 11, 2004

A importância de ser Artur.

Hoje tive o privilégio de jantar com um dos meus ídolos de infância. Chama-se Artur e foi outrora amado por milhares de verdadeiros adeptos do futebol verdadeiro que lhe chamavam "o russo". Artur, lateral esquerdo da Académica de Coimbra, do Benfica, do Sporting e da Selecção Nacional, fez nos anos 70 coisas que hoje nos são estranhas como por exemplo: limpar o seu corredor todo, durante 90 minutos, sem se dar por falta de um extremo; correr tanto que até doía (mas só a quem o estivesse a ver jogar); distribuir generosamente valentes dentadas, veementes puxões de orelhas, porradas de todo o género e pontapés na boca de quem canelasse no Eusébio ou, por desgraça, "fosse uma minhoca".
No decorrer do jantar reparei que o Artur é, como ser humano, aquilo que era como jogador da bola: 30 anos depois, somando tromboses, AVCês, cirroses e diabetes, já todo torto, o homem continua veemente, aguerrido, leal de peito alto, erguido para a vida.
O Artur falou-me de uma meia final da Taça de Portugal (Vitória de Guimarães - Académica de Coimbra) em que a camioneta do clube afogou três vezes e por três vezes os atletas da Académica empurraram o veículo para chegarem a Guimarães já em cima da hora, saindo a correr - e já equipados - directamente da carroça para o relvado. Falou-me de ser campeão sem derrotas (e eu lembro-me!) numa equipa de glórias conduzida por Jimmy Hagan, um genuíno sargento do império britânico, que deixava os assuntos marginais como a constituição do onze inicial para o capitão de equipa - na altura, Simões - preocupando-se sobretudo que os jogadores vomitassem de cansaço, evitassem as mulheres, não fizessem acompanhar o café do proverbial bagaço e se vissem privados dos vintes contos de prémio de jogo, quando venciam sem esforço. Falou-me de ganhar 5 a 1 ao Montijo no último jogo dessa época triunfal (72/73?) e partir logo - sem festas nem champanhe - para Saragoça, jogar um torneio que dava 16 mil dólares, porque o clube precisava do dinheiro. Este célebre Benfica, ainda com Eusébio, não se limitou a ganhar o torneio: contando com o jogo contra o Montijo, marcou em três partidas dezanove golos, sofrendo o Zé Henriques,apenasmente, três batatas.
O Artur falou-me ainda de sorrateiramente se escapulir da económica para a primeira classe de um voo da TAP, com o propósito de roubar uns pêssegos bonitos para o Toni, que adorava pêssegos.O Artur falou-me ainda de ganhar 34 contos por mês e falou-me, enfim, de gostar do balneário de Alvalade porque havia lá um corredor comprido com alcatifa, que servia bem para o aquecimento com chuteiras e até existia espaço para dar uns pontapés na bola, porque - por muito abstruso que isto possa parecer aos mais novos - na altura os jogadores não faziam o aquecimento no relvado.
Para ilustrar este post fui ao site do Benfica, à procura duma foto porreirinha deste enormíssimo atleta, benfiquista dos setenta e dois costados e homem com tudo em maísculas. Obviamente que procurei no capítulo das "grandes glórias" do clube. Grandes glórias como o Fernando Meira (ano e meio no SLB, zero títulos) estavam presentes. Artur, o russo, um dos melhores laterais que a puta da mãe natureza ofereceu ao futebol, campeão não sei quantas vezes, esforçado e valente cruzado da ordem da águia de ouro, não se encontra. Como hoje mesmo se viu na Luz, o Benfica contemporâneo é uma coisa tão estranha como um circo sem artistas. Mas seria menos doloroso tudo isto, se por inspiração de deus ou do diabo, ainda conseguíssemos respeitar um passado feito de homens assim, que iluminaram o percurso da história do desporto nacional com os valores da dignidade e da honradez entretanto desaparecidos. Vergonhosamente desaparecidos.
Oscar Wilde, ele também um desaparecido em combate, diria de Ernesto: "a presença de um homem só é urgente quando se torna necessária a aplicação do seu génio." Eu digo apenas: gostei à brava de jantar hoje com o Artur.

segunda-feira, agosto 09, 2004

Intermezzo


H. von Karajan - Amigo Leonard, tive esta conversa interessantíssima com Deus, que me garantiu ser eu o maior maestro da história da música!
L. Bernstein - Curioso, Herbert, não me lembro nada de ter tido essa conversa consigo.

quarta-feira, agosto 04, 2004

De que é as senhoras estão a falar?

Ein Hopper für 92 Millionen | Monopol
“Whom did I meet? Nobody. I'd heard of Gertrude Stein, but I don't remember having heard of Picasso at all. I used to go to the cafés at night and sit and watch. I went to the theatre a little. Paris had no great or immediate impact on me.”
- Eward Hopper sobre a sua estadia em Paris, por volta de 1906 -

Este não é o meu quadro favorito do Hopper. É, apesar disso, o mais indisciplinado, razão suculenta para o trazer à conversa. Edward Hopper foi rei e senhor do império do subliminar e a sua obra estática enche-se de movimento na nossa inteligência. Foi o mago da geometria da alma na cidade vazia e as suas representações minimais tornam-se barrocas no nosso entendimento. Foi o realista supremo do silêncio e da inocuidade e as suas telas despidas, adornam-se de trajes ocultos no quarto de vestir da nossa sensibilidade. Este introspecto e circuspecto génio da arte moderna, vingança iluminada da gente vulgar, virtual campeão da classe média americana, ele mesmo, a antologia da banalidade, que viveu em Paris nos dias de triunfo dos modernistas sem nunca dar com eles nas ruas e nos cabarets onde os procurava; que passeou pelas urbanidades todas da arte europeia sem deixar esperma nem receber dentada; Edward Hopper, esse lado obscuro da lua numa noite de lua nova, nunca afirmou coisa nenhuma: deixou apenas vestígios. Pistas. Suposições. Adivinhas. Charadas. De que é que estas duas senhoras estão a falar? O que eu leio, no reclame do lado de fora da janela, é SEXO. Estas duas senhoras, de ar diletante e de sobremaneira entediadas pela intimidade comezinha do café de bairro, conversam sobre sexo. Não é que esteja lá escrito com todas as letras, não. Mas está-se mesmo a ver. E isso não é de um quadro de Edward Hopper, senhores, que o homem desleixou-se aqui, na sua missão estética de monstro enigmático.

terça-feira, agosto 03, 2004

O Poema da Malta das Naus

OU PORQUE É QUE EU GOSTO TANTO DO GEDEÃO

"Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das prais
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros e zagaias.

Chamusquei o pêlo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me a gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal. "

António Gedeão - Movimento Perpétuo - 1956