terça-feira, outubro 31, 2006

A posse de ontem

"Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las e que essas perdas são agora o que é meu. Sei que perdi o amarelo e o preto e penso nessas impossíveis cores. Como não pensam os que vêem. O meu pai morreu e está sempre a meu lado. Quando quero escandir versos de Swinburne, faço-o, dizem-me, com a voz dele. Só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos. Ilíon passou, mas Ilíon perdura no hexágono que a chora. Israel aconteceu quando era uma nostalgia. Todo o poema, com o tempo, é uma elegia. Nossas são as mulheres que nos deixaram, já não sujeitas à véspera, que é a angústia e aos alarmes e terrores da esperança. Não há outros paraísos que não sejam paraísos perdidos."

JORGE LUIS BORGES

quinta-feira, outubro 26, 2006

Filinto, o apóstata.

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Nasci – logo a meus pais custou dinheiro
o baptismo, que Deus nos dá de graça.
Tive uso de razão – perdi a graça –
dei-me ao rol – chegou a Páscoa – dei dinheiro.

Quis casar com uma moça – mais dinheiro.
Brinquei com ela – não brinquei de graça:
que aos nove meses me custou a graça
para o Mergulhador capa e dinheiro.

Morreu minha mulher – não lhe achei graça
e menos graça ao arbitral dinheiro
da oferta; que o prior não vai de graça.

Se o ser cristão requer sempre dinheiro,
como cumprem com dar graças de graça
os que as graças nos vendem por dinheiro?

Filinto Elísio (1734 - 1819)


Filinto Elísio, pseudónimo do Padre Francisco Manuel do Nascimento, foi um dos mais importantes poetas do Neoclassicismo português. Apesar de ser clérigo, era admirador de Horácio, defensor dos ideais iluministas e enciclopedistas, das revoluções francesa e americana e fã dos autores racionalistas franceses, proibidos pela Inquisição. Por causa destas suas temerárias preferências, acabou por fugir para França, exilando-se em Paris em 1778 e estabelendo relações de amizade com o poeta Lamartine. As suas poesias foram publicadas em Paris em onze volumes entre 1817 e 1819, seguindo-se uma segunda edição em Lisboa de vinte e dois volumes entre 1836 e 1840. Além de poeta era tradutor, vertendo para português os Mártires de Chateaubriand, as Fábulas de Lafontaine e Púnica de Sílio Itálico.
O seu estilo segue os preceitos da estética classicista arcádica, sendo um defensor enérgico do purismo da língua. Não obstante os formalismos, muitos dos seus poemas reflectem uma grande intensidade emocional, no que têm de revolta e de sofrimento pessoais, sendo, neste contexto, um precursor do romantismo.
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Quando o porteiro me inspeccionou com sentido de comiseração e se permitiu, amavelmente, a liberdade de fazer notar que me achava com cara de cavalo cansado, expressão que não recusei - este senhor porteiro possui em terras remotas do Alto Minho uma mão cheia de éguas e um esplendoroso par de garanhões, pelo que sabe muito de cavalos cansados - assenti, deixei baixar as olheiras sobre o rosto pálido e admiti o óbvio.
- Foi de facto uma manhã de cão, meu amigo, um dia para assinalar no calendário com uma grande e pesada cruz.
Tinha amanhecido com chuva por entre um cinzentão frio e esfarrapado que a metereologia da TV garantia manter-se sem esperança de tréguas. Nada tinha corrido bem nesse dia. Despertei ainda chocado com o deplorável espectáculo com que o glorioso nos tinha flagelado na véspera, zangado comigo e com o colchão e com a exiguidade da casa-de-banho e com a cor dos azulejos. Golpeei-me com a porcaria da gillete mais fiável do mundo e confrontei-me com a exigência de empacotar, de uma dura assentada, os comprimidos para a tensão arterial, a circulação e o reumático - imposição de ritual satânico, pouco menos que alucinogénica, com que enfrento a precaridade de um novo dia, uma vez mais agravado pela recusa de um trânsito intestinal decente.
Verificada, por entre uma expressividade de palavrões, a insólita inexistência do descafeinado com que habitualmente empurro a diabólica composição, seguiu-se a dramática constatação da falta de cigarros com que sempre combino e combato, cinicamente, a feroz rotina dos quinze comprimidos diários.
Restava-me agora a dura prova de enfrentar, já derreado ao peso de uma derrota anunciada, o carão granítico da médica de família, uma coisa de bata branca, de peito esquecido em casa, lisa como uma tábua de engomar, inquisitorial, sem lábios e de percetível cheiro a formol. Esperava-me para uma consulta que não solicitara, que me era imposta pela força tirânica da agenda de sequência clínica, incontornável, com a qual mantenho guerra aberta há 12 anos, pelo menos. O chaço não pegou e, a praguejar maldições, lá arranquei para o Centro de Saúde da área de residência, empunhando um chapéu de chuva que o meu primo esquecera lá por casa, por ocasião de uma recente jantarada.
Encharcado, cabisbaixo, entalado no desconforto de uma oscilante cadeira da gasta sala de espera, aguardei o chamamento que viria com a costumada hora de atraso. Ocorreu-me na altura que havia esquecido a placa dentária. Óptimo. Iria oferecer-lhe o meu pior sorriso de sempre, bem aberto para sublinhar o bom dia sombrio na abertura de hostilidades com que normalmente a esquálida doutora inicia o estafado “então, como vai isso?” de circunstância, sem ponta de cordialidade, cheia de rugas da azeda disposição do costume, certa de que, no final, acabaria por perscrever a química habitual dos últimos 2 anos para a sustentação do estado geral do utente, definição para velhotes sem grande margem de sobrevivência, agora parece que um pouco mais agravada pelos cortes do orçamento da Saúde, segundo o último caderno de encargos a observar severamente em nome da contenção das despesas e, sobretudo, o inesperado aumento da longevidade dos beneficiários de provecta idade.

Chegada enfim a hora da verdade, entrego-lhe a longa lista dos resultados das últimas análises que me impôs por entre um sorriso de esperança que não classifico, obrigada pelas regras que compaginam o catálogo das inevitáveis chatices e em conformidade com a benevolente decisão superior dos senhores recentemente chegados ao governo destas coisas terrivelmente sérias da saúde pública.
Insinua o nasal marcadamente aquilino no velho processo do meu historial clínico, num estudo cuidado de um denso código de gatafunhos a descodificar por algum especialista maior, quando interessar à eventualidade da autópsia, e arranca com um suspiro sofrido o interrogatório habitual:
- E como vai essa micção?
- Mijo bem. Ainda não conspurco o tampo da sanita..
- O problema da próstata, segundo a análise, regista um aumento pouco significativo. Sem preocupações para já. Não sugere a aplicação da argália, por enquanto. Na sua idade, é um bom sinal. E o trânsito intestinal?
- Irregular, relutante, em esforço, sempre acompanhado duma intensa e incontrolada libertação de gases.
- É natural, na sua idade. Fadiga intestinal. Desgraçadamente não podemos lutar contra o tempo. É claro que há por aí uma enormidade de laxantes a que não devemos, no seu caso, dar a menor importância, de forma a evitar efeitos colaterais como por exemplo a criação de bolsas intestinais tipo estufa e flatulências muito desagradáveis. A tensão arterial está como sempre. Um horror! Por outro lado o seu problema de colonoscopia evidencia a partir do exame rectal um desenvolvimento incipiente de pólipos que a seu tempo observaremos com rigor no sentido de uma muito provável intervenção cirúrgica. No caso das artroses, embora dolorosas, têm tido o tratamento adequado e está nas mãos de um grande senhor. O Dr. Pimentão pode parecer-lhe um cómico mas é um professor de primeira linha. Fizeram-se já as punções que se aconselham para esse tipo de insuficiência mas, na verdade, não há recuperação possível. No que respeita às ancas, que lhe provocam crescentes problemas de mobilidade, de penosa incomodidade, dizem-nos as últimas radiografias que obrigam a uma dupla cirurgia de resultados sempre imprevisíveis, na sua idade. Bem vê, trata-se de uma justaposta disfunção das articulações laterais,acentuada por uma forte distorção espinal. Essa sua coluna é de chanfrar. Já experimentou o apoio de canadianas? Quanto à crise de soluços que por vezes o afligem em sequências de 2 a 3 dias, vamos tentar controlá-la com o “Protom”, uma bomba que tem apresentado excelentes resultados neste tipo de singularidades. Outro aspecto de relevo tem que ver com o facto de, com a sua idade, nunca ter tido uma dor de cabeça. É, na história clínica, uma impossibilidade. Vamos ter de submetê-lo a um TAC exaustivo para perceber esse estranho aspecto do seu enigmático metabolismo. Homem, na verdade o senhor apresenta-se como um notável compêndio de sobrevivência!
Temos agora o problema da circulação, que ganha de facto, e no contexto da sua respeitável idade, uma importância maior, associada que está ao nível do colesterol um tanto acima do normal. Vamos insistir na prescrição dos comprimidos habituais, estabilizantes cuja tomada, creio, observa rigorosamente. Neste caso, devemos estar atentos ao agravamento da esclerose múltipla, sempre de recear no desenvolvimento deste tipo de patologias.
No que se refere à evolução das operações a que se sujeitou oportunamente, carótidas e inguinais duplas, não se manifesta qualquer desvio periférico anormal, o que é excelente para a sua idade. As ocasionais e ligeiras dores na zona hepática de que se queixou são isso mesmo. Pequenas incomodidades ocasionais. Sem importância que suscite preocupações.
Para já, a leitura do seu último electrocardiograma revela apenas uma ligeira arritmia. Recomenda-se muita pantufa, esforços comedidos, alimentação cuidada, frugal, nada de fritos, enchidos, alcoól, tabaco e sobretudo - um aviso fundamental - a interdição de qualquer envolvência de carácter sexual sustentada por esses estimulantes que por aí são irresponsavelmente publicitados. Penso que, quanto a este assunto e dada a sua idade, o senhor não carecerá de outras explicações.
No que diz respeito à questão oftalmológica - essas cataratas que lhe foram diagnosticadas - como no que se refere aos dentes que lhe faltam, o Centro de Saúde não pode responder por absoluta carência de meios técnicos e competências adequadas. Note-se porém que uma mastigação deficiente, por ausência dos trituradores, pode induzir às dificuldades intestinais que já mencionámos. É uma questão que terá a ver com uma observação de polipectomia, no ângulo esplénico do cólon, também fora da nossa capacidade de intervenção.
Afora os aspectos de que tratámos, deve, apesar de tudo, sentir-se um homem inteiro. Um felizardo. São como um pero, muito embora aquela piada velha e relha, venerável citação de sempre: isto de viver acaba mal. Por isso, anime-se, vitamine-se e pense positivo. Vê como, por exemplo, demos cabo daquela última amigdalite que, na sua idade, é maleita de frequência pouco simpática?

Saído da reconfortante consulta, observo ainda a sala de espera repleta do costumado amontoado de velhas carcaças, arquejantes, babosas, espirrantes, descoloridas, numa sombria envolvência de resignação, na espera do favor de lhes traçarem apressadamente o receituário habitual que ameniza o caminho da estreita e dura vereda para o fim, após o clínico lhes fechar o processo, com a singileza do rótulo “procedimento habitual, sem alternativa ou recuperação provável”. Antes de sair de cena, registo o cartaz espalmado ao largo de quasi toda a parede do velório, num fundo de azulão forte:
ANTES DE ENGRAVIDAR FALE COM O SEU MÉDICO.
USE A CAMISINHA - SEXO SEGURO.
Havia ali um generoso convite ao revigorante milagre de viver.
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sábado, outubro 21, 2006

Rap solitário - III

Não há nada pior no mundo do que ter amigos. As mulheres podem devastar o coração. Os amigos reduzem a cinzas a sensibilidade.

sexta-feira, outubro 20, 2006

Fotopsicografia de Robert Tyre Jones III


Não parece, mas o golf é um desporto de masoquistas. De endinheirados masoquistas, regra geral, mas nem por isso menos adeptos do mal estar de corpo e alma. Jogo de planeamento em tempo real e precisão sobre-humana, castiga severamente os atletas por pequenos lapsos, atira-os para o inferno dos bancos de areia e a malária dos lagos, para a ratoeira dos bosques e a maldição dos ventos; todos e mais algum instrumentos de tortura criados por sádicos arquitectos e outros grandes diabos da paisagística.


Provavelmente, ninguém como Robert Tyre Jones the Third (Atlanta, 1902-1971) sofreu alegremente as piores agruras do jogo. Os erros consumiam-lhe o espírito, as derrotas escavacavam-lhe o metabolismo, a pressão matava-o. Mas também é verdade que as diversas úlceras e o terrível problema neurológico que acabou por o consumir - efeitos directos do stress da competição - contam pouco em função da aura de glória que coroa esta notável espécie de pessoa.


Bobby Jones é ainda hoje considerado um intérprete tecnicamente perfeito da modalidade, e será sempre uma das grandes referências da história do Golf. Mas é talvez pelas suas lendárias características humanas que permanecerá imortal por dentro dos séculos. Verdadeiro cavalheiro, homem honrado, de grande honestidade e apurado sentido ético, o seu fair-play é proverbial: num célebre playoff do Open dos Estados Unidos, Jones tinha uma pancada difícil a executar, no rough junto à margem do green. Quando se preparava para dar a pancada, o ferro tocou ligeiramente na bola, provocando-lhe um ligeiro movimento. Jones alertou os marshals e o seu adversário para o facto, dado que ninguém, nem no público, se deu conta da falta. Sendo a única testemunha do seu próprio erro, Jones confirmou-o e solicitou a falta (que equivale ao registo de mais uma pancada). Este enormíssimo campeão, que viria a perder o Open exactamente por essa única pancada, ao ser congratulado por um marshal pelo magnífico exercício de integridade, replicou: "O sr. não cumprimentará por certo um ladrão por não roubar. Esta é forma como o Golf deve ser sempre jogado."


Somando títulos profissionais tão sonantes como o Grand Slam (foi o único na história do jogo a conseguir ganhar os 4 maiores torneios do Golf numa época só), Bobby Jones nunca abdicou do seu estatuto de amador, dedicando-se apenas em part-time ao treino e recusando as fortunas e maus hábitos da prática profissional do desporto. Desconfio que este facto se deverá em parte à ausência de preocupações financeiras, dada a linhagem paterna de industriais, e ao transbordante talento académico: bacharel de Ciência em Engenharia Mecânica, bacharel de Artes em Literatura Inglesa (Harvard), Robert Tyre Jones demorou apenas um aninho para se formar em Direito, ofício de que fez profissão, como advogado.


Abandonando o Golf, a conselho médico, com apenas 28 anos, Bobby Jones é adorado no seu país e foi, até John Glenn, o único americano a ser premiado por duas vezes com a célebre parada de Nova Iorque. É hoje considerado um dos grandes cinco mitos do desporto americano dos anos 20 e o melhor desportista amador de todos os tempos. Sofrendo horrores e castigado pelos nervos, acusando muito o insustentável peso do par mas dando invariavelmente a provar aos seus adversários o doce da sua leal cordialidade e o fel do seu jogo devastador, este é um herói inteiro do Século XX. Mais put menos put.


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quinta-feira, outubro 12, 2006

If We Must Die

If we must die, let it not be like hogs
Hunted and penned in an inglorious spot,
While round us bark the mad and hungry dogs,
Making their mock at our accursed lot.

If we must die, O let us nobly die,
So that our precious blood may not be shed
In vain; then even the monsters we defy
Shall be constrained to honor us though dead!

O kinsmen we must meet the common foe!
Though far outnumbered let us show us brave,
And for their thousand blows deal one deathblow!

What though before us lies the open grave?
Like men we'll face the murderous, cowardly pack,
Pressed to the wall, dying, but fighting back!

Claude McKay - 1919

quarta-feira, outubro 11, 2006

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Coisas contemporâneas da idade da pedra.

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O teste nuclear falhado dos norte coreanos acabou por ser uma coisa simpática. Primeiro porque falhou, pelo que ganhámos aqui uns meses de alívio, depois porque serviu de pretexto para um repreensão por parte de um alto diplomata da República Popular da China, o único país que consegue manter o cinismo necessário para alimentar relações frutuosas com Kim Il Sung (Chavez e Castro também são amiguinhos mas o sentido das proporções torna-os despiciendos). Seja como for, é por estas e por outras que nunca como hoje foi tão ameaçador o espectro da agressão nuclear. Qual guerra fria qual quê. É um crime de honra permitir que, em pleno Século XXI, trezentos e tal anos depois da Revolução Francesa, quatrocentos e tal anos depois da Revolução Inglesa, exista um estado como o que governa a Coreia do Norte. É um dequeles anacronismos terríveis com que se debate o actual planetário. Se fizermos a observação comparada do cronograma da evolução civilizacional, os desgraçados súbditos de Kim il Sung lá vão sobrevivendo - sabe-se lá como e ignora-se porquê - a um regime cuja inspiração deve remontar às mais ferozes tiranias da antiguidade clássica; os árabes estão atrasados 800 anos; os Persas retrocederam 16 séculos, o Paquistão vive um pesadelo de tiranias desde que é nação; na Índia, "a maior democracia do mundo" (democracia não significa liberdade), o regime de castas separa à nascença os que vão ser inacreditavelemnte miseráveis e os que vão ser inevitavelmente poderosos, deprimente determinismo mais velho que a própria História. Na China, pode-se enriquecer, mas não se pode votar, procedimento adminstrativo mais ou menos dentro do espírito da Dinastia Ming (Séc. XV). A nação que vai liderar o mundo e dominar o século vive ainda esmagada por um regime fascista, aparatchik, draconiano e multi-milionário. Na América do Sul os políticos podem traficar droga e mergulhar em corrupções, se forem eleitos pela esquerda. Podem perpetrar golpes de estado, podem invocar o diabo na Assembleia Geral das Nações Unidas, podem ter pides e milícias, podem portar-se como bandoleiros e capitães de roça do século XVIII, porque foram eleitos pela esquerda (eleições não querem dizer democracia). Na Rússia, ainda há jornalistas que morrem por causa daquilo que escrevem, como acontecia com Estaline, ou o Czar Nicolau. Nos Estados Unidos da América, ainda se ensinam os estudos primários como se Darwin nunca tivesse feito a tal viagem aos Galápagos: na Segunda-feira era o verbo, na quarta o mundo estava feito, no Sábado de manhã cria-se Adão, ao fim da tarde dá-se-lhe uma Eva para criada de quarto, em anexo vem o pecado e está pronto o universo porque chegou o dia santo de domingo, que é para descanso do pessoal. Em África, os tempos recuam à idade da selvajaria; os governos tratam com espantosa ineficiência as nações que governam, mas mostram-se de germânica operacionalidade na arte do genocídio étnico. É impressionante a quantidade de pessoas que se podem matar com uma catana e uma garrafa de aguardente. Na Europa, morre-se devagarinho, como foi devagarinho que a Roma imperial se perdeu. De preguiça ideológica, de obesidade filosófica e de anemia moral. Em cidades como Paris, Londres, Madrid ou Hamburgo, as vozes mais poderosas e mobilizadoras que se levantam são as dos líderes religiosos muçulmanos, que convidam alarvemente à aniquilação do infiel a troco de uma tantas gajas no bordel do paraíso. Como é bom de ver, não são só os americanos que têm esta fraqueza de trocar favores de cama com o inimigo. E pronto, foi o telejornal de 10 de Outubro de 2006. Voltamos a encontrar-nos aqui, no seu canal hospitalar de sempre, amanhã, à mesma hora. E não perca já a seguir, Prós e Contras com os palhaços do costume: hoje vão a debate as lamentáveis declarações daquele ordinário alemão que é Papa e que só contribuiram para aumentar o já muitíssimo justificado ódio dos seguidores do Grande Profeta, abençoado seja o seu nome. Boa noite.
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segunda-feira, outubro 02, 2006

7 pérolas da Colecção do Dr. Rau.

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4 - CANALETTO - Praça de S. Marcos
1740-1750, óleo sobre tela, 58.5x103 cm.

Giovanni Antonio Canale (1697 – 1768), conhecido para a posteridade por Canaletto, ganhou fama pelas suas magistrais representações dos canais da Veneza e é um personagem de conteúdo biográfico assim para o desinteressante, não fosse o seu descarado talento. Enquanto os paisagistas da sua época esgalhavam uns roughs dos cenários para depois se fecharem no estúdio e desenvolverem a obra, Canaletto iniciava e concluía todo o trabalho no mesmo sítio, o que muitas vantagens lhe trazia, principalmente no que respeita ao detalhe, à minúcia e ao preciosismo: as suas imagens são intensas de vida humana e quase de valor antropológico. Este amor picuinhas por Veneza, este rigorososo compromisso para com a realidade etnográfica da sua cidade natal rendeu-lhe um endinheirado clube de fãs em Inglaterra mas, em ultima análise, acabou por lhe amputar a criatividade. Por causa da Guerra da Sucessão Austríaca, os patronos ingleses deixaram de poder visitar Veneza e, quando Canalleto se vê obrigado a ir acampar para Londres (a velha história da montanha e do profeta), não se dá nada bem com a mudança de cenário. Há diferenças grandes entre o palácio dos Doges e a mansão Isabelina. Há diferenças enormes entre a cidade mediterrânica, luminosa e festiva, e a metrópole bretã, invernosa e protestante. Há diferenças de cores e de cheiros, de sons e de costumes e o mestre não consegue adaptar nem a sua vida nem a sua pintura. Para Canaletto, imigrar foi como que um caminhar para a cova da história da arte e, nesse sentido, este é um senhor que morreu duas vezes.
Funerais à parte, permanecem dois factos importantes. O primeiro: nesta pobre reprodução em blog da magnífica Praça de S. Marcos segundo Canalleto, não nos é permitida a resolução suficiente para se perceber que o homem é um verdadeiro e peregrino precursor do impressionismo. Apesar da incrível pormenorização cenográfica, a composição é de dot em dot, pincelada aqui, pincelada ali. A aparente contradição entre impressionismo e preciosismo cai ao zero absoluto.
O segundo: por aparente paradoxo, as mais notáveis representações paisagísticas de Veneza chegam-nos dois e três séculos depois da sua proverbial grandiosidade. Esta Veneza que vemos aqui, não é já a cidade capital comercial do mundo ocidental, a delicada e educada e burguesa Babilónia dos séculos XIV e XV. Mas, ainda assim, surge-nos sempre pungente de vida e riquezas, de tradições e exibicionismos. Mesmo assim parece uma cidade cosmopolita, opulenta, colonialista, dir-se-ia imperial. Ao meu lado, no M.N.A.A, uma senhora dizia ao seu marido: está aqui um cão muito mal desenhado que parece um macaco. O prestável marido lá lhe explicou então que se tratava precisamente de um macaco. Que era natural encontrar um macaco na Praça de S. Marcos, grande portal da aldeia global de outras eras. O facto porém é mais pertinente para a ciência histórica do que pode imaginar esta inquisitiva senhora que, com olhar crítico, chumbava o Mestre no díficil domínio da regra anatómica. A verdade é que as representações de Canalleto muito contribuíram para consubstanciar as teses de monstros sagrados como Braudel, que tentaram, com algum sucesso, demonstrar que a consolidação das rotas atlânticas registada no século XVI não faliu a vocação comercial do Mediterrâneo nos séculos posteriores. A ideia da decadência de cidades como Génova e Veneza nos séculos XVI e XVII está a perder fôlego académico, porque se encontraram entretanto registos de actividade comercial, financeira, portuária e naval muito contraditórios à tese universalmente aceite até ao segundo terço do século XX. Mas também porque podemos ter esta certeza: se o macaco está na tela de Canaletto, é porque estava na Praça de S. Marcos. E se estava lá naquele dia, a lógica probabilística recomenda ao senso que outros símios por ali deveriam passear, com naturalidade, pelo correr dos dias. E se outros símios passeavam com essa regularidade toda na Praça de S. Marcos é porque este ainda era o centro de um negócio tentacular sobre o Mediterrâneo e não de uma cidade falida pela aventura portuguesa ou pela cobiça castelhana.
Canalleto tinha afinal razão: é sempre importante prestarmos atenção ao detalhe. Até porque é a única maneira de entendermos o panorama.