segunda-feira, outubro 02, 2006
7 pérolas da Colecção do Dr. Rau.
4 - CANALETTO - Praça de S. Marcos
1740-1750, óleo sobre tela, 58.5x103 cm.
Giovanni Antonio Canale (1697 – 1768), conhecido para a posteridade por Canaletto, ganhou fama pelas suas magistrais representações dos canais da Veneza e é um personagem de conteúdo biográfico assim para o desinteressante, não fosse o seu descarado talento. Enquanto os paisagistas da sua época esgalhavam uns roughs dos cenários para depois se fecharem no estúdio e desenvolverem a obra, Canaletto iniciava e concluía todo o trabalho no mesmo sítio, o que muitas vantagens lhe trazia, principalmente no que respeita ao detalhe, à minúcia e ao preciosismo: as suas imagens são intensas de vida humana e quase de valor antropológico. Este amor picuinhas por Veneza, este rigorososo compromisso para com a realidade etnográfica da sua cidade natal rendeu-lhe um endinheirado clube de fãs em Inglaterra mas, em ultima análise, acabou por lhe amputar a criatividade. Por causa da Guerra da Sucessão Austríaca, os patronos ingleses deixaram de poder visitar Veneza e, quando Canalleto se vê obrigado a ir acampar para Londres (a velha história da montanha e do profeta), não se dá nada bem com a mudança de cenário. Há diferenças grandes entre o palácio dos Doges e a mansão Isabelina. Há diferenças enormes entre a cidade mediterrânica, luminosa e festiva, e a metrópole bretã, invernosa e protestante. Há diferenças de cores e de cheiros, de sons e de costumes e o mestre não consegue adaptar nem a sua vida nem a sua pintura. Para Canaletto, imigrar foi como que um caminhar para a cova da história da arte e, nesse sentido, este é um senhor que morreu duas vezes.
Funerais à parte, permanecem dois factos importantes. O primeiro: nesta pobre reprodução em blog da magnífica Praça de S. Marcos segundo Canalleto, não nos é permitida a resolução suficiente para se perceber que o homem é um verdadeiro e peregrino precursor do impressionismo. Apesar da incrível pormenorização cenográfica, a composição é de dot em dot, pincelada aqui, pincelada ali. A aparente contradição entre impressionismo e preciosismo cai ao zero absoluto.
O segundo: por aparente paradoxo, as mais notáveis representações paisagísticas de Veneza chegam-nos dois e três séculos depois da sua proverbial grandiosidade. Esta Veneza que vemos aqui, não é já a cidade capital comercial do mundo ocidental, a delicada e educada e burguesa Babilónia dos séculos XIV e XV. Mas, ainda assim, surge-nos sempre pungente de vida e riquezas, de tradições e exibicionismos. Mesmo assim parece uma cidade cosmopolita, opulenta, colonialista, dir-se-ia imperial. Ao meu lado, no M.N.A.A, uma senhora dizia ao seu marido: está aqui um cão muito mal desenhado que parece um macaco. O prestável marido lá lhe explicou então que se tratava precisamente de um macaco. Que era natural encontrar um macaco na Praça de S. Marcos, grande portal da aldeia global de outras eras. O facto porém é mais pertinente para a ciência histórica do que pode imaginar esta inquisitiva senhora que, com olhar crítico, chumbava o Mestre no díficil domínio da regra anatómica. A verdade é que as representações de Canalleto muito contribuíram para consubstanciar as teses de monstros sagrados como Braudel, que tentaram, com algum sucesso, demonstrar que a consolidação das rotas atlânticas registada no século XVI não faliu a vocação comercial do Mediterrâneo nos séculos posteriores. A ideia da decadência de cidades como Génova e Veneza nos séculos XVI e XVII está a perder fôlego académico, porque se encontraram entretanto registos de actividade comercial, financeira, portuária e naval muito contraditórios à tese universalmente aceite até ao segundo terço do século XX. Mas também porque podemos ter esta certeza: se o macaco está na tela de Canaletto, é porque estava na Praça de S. Marcos. E se estava lá naquele dia, a lógica probabilística recomenda ao senso que outros símios por ali deveriam passear, com naturalidade, pelo correr dos dias. E se outros símios passeavam com essa regularidade toda na Praça de S. Marcos é porque este ainda era o centro de um negócio tentacular sobre o Mediterrâneo e não de uma cidade falida pela aventura portuguesa ou pela cobiça castelhana.
Canalleto tinha afinal razão: é sempre importante prestarmos atenção ao detalhe. Até porque é a única maneira de entendermos o panorama.