segunda-feira, agosto 10, 2009

Saudação a Walt Whitman (até certo ponto).


Quarta-feira, Dezembro 27, 2006

Eia, Walt Whitman, grande jardineiro dos prados vermelhos da Guerra Civil Americana, indefectível secretário dos serviços de recrutamento, entusiasta dos cinquenta mil mortos em Gettysburgh, descomplexado publicitário da indústria das armas, tardio cheerleader das chacinas da Independência! Saúdo-te infame ajudante de campo que só chegaste a enfermeiro e saúdo os teus versos exultantes por tanta gente a morrer em nome dos teus ideais, dos teus ideais romanescos de adolescente que acredita no futuro! Dos teus ideais de cálamo que vencem sobre mil tiros de canhoaria afinada!
Ah, companheiro que entendes bem o insignificante valor da vida, que te encantas com os teus sonhos de uma democracia em papel de pauta, que envias - em alegres elegias - esses jovens todos da tua América sonhadora para a morte mais real do que tu alguma vez sonhaste. Do que tu alguma vez imaginaste nessa tua imaginação de Quixote, embrulhado em quimeras que valeram por todo uns bons milhões de mortos! Sim tu, bravíssimo poeta do jugo dos exércitos, incorrígivel trovador da morte na batalha, benévolo terrorista dos destinos dos outros, enquanto preparavas a tua imortalidade! Eia, grande cabrão entre os belzebus da literatura, arcanjo de todos o mais grego, de todos o grande elefante da poesia da guerra, Aníbal de chapéu de palha, Maquievel barbudo a cuspir o tabaco do Sul no escarradouro de Bull Run, Francis Drake de fato macaco a construir o caminho de ferro por onde vão entrar as indústrias do Norte; eia, miserável produto da estirpe divina, como a morte te inspira! Saúdo-te!

E saúdo-te também, Homero, imperador único na história universal do ódio, eia por Aquiles e a sua glória de sangue, eia por Ulisses e a sua astúcia de facínora! Urra pela beleza da guerra e pelos semi-deuses a quem não se permite um funeral! Urra pela arte militar e pela convenção estética do ataque e pela honra que conduz à vingança que leva à tragédia! Eia pelo herói predador, que há-de ser deus por ousadia! Sim, saúdo-te grande ferreiro da palavra espada, genial contador de histórias horríveis, com deuses crúeis e homens escravos dos piores destinos, há-de a tua glutonaria necrófaga ser perdurável sobre as eras! Há-de Heitor ser o general de todas as pelejas!

Saúdo-te Plutarco, velho amigo que criaste em Alexandre uma alma, que soubeste versar qualquer coisa para lá da armadura! Ah, notável agente cosmético da história dos horrores humanos, beneficiasse S. Jorge da tua prosápia e teria chegado a messias!

Saúdo-te outrossim, Camões do espadachim e das conquistas mais gloriosas que a vergonha dos escravos, que a crueldade dos capitães, que a ambição dos mercadores! Grande falo militaróide da história trágico marítima, inventor miliciano da língua portuguesa, saúdo-te, toxicodependente de sarilhos, gajo de porradas nas tascas e de duelos no Paço (rebelde com nódoas negras, que também levaste na cara), animal divino nessa meia cegueira dos teus versos vagas; contente de tantos dias de calabouço, de tantos anos de misérias és vaidoso ò grande diabo lusíada!

Saúdo-te ainda Lord Tenysson, por teres levantado da campa do esquecimento aqueles oitocentos desgraçados da Brigada Ligeira que foram ser barro para a tua olaria de rimas!

Saúdo-te também, Claude Mckay, que te insurgiste pronto-a-morrer no campo de batalha do teu delírio! Africano de Sunny Ville, jamaicano de Alabama, louco furioso dos sonetos if you must die, die hard! Ferve-te esse sangue de soldado em vinganças e hemorragias e fazes belos versos à cabidela! Saúdo-te!!

E sim, saúdo russos e chineses, prodigiosos estetas da guerra! Árabes e japoneses, senhores da mais bela e belicosa lírica que um momento zen de ódio imenso pode reclamar. Darth Vaders de todos os hinos,
Saúdo-vos!

E sim, saúdo-vos todos, velhos trovadores da contenda que é a natureza humana! Eu, que não sou de Esparta nem de caserna, nem grego nem troiano, saúdo-vos camaradas! Eu, que sou deste lado do tempo sem peleponesos, nem termópilas, sem batalhas dignas de um verso porque chegaram entretanto em directo para o jornal da noite, sem mitos e sem heróis porque a televisão estraga tudo com a merda da realidade por satélite; eu aqui, em Lisboa, 2007 Portugal Codex, que não sei nada de guerra, que não saberia segurar um espadim, que me borraria certamente inteirinho ao trovão da carga, como ao bramido da ofensiva, que sou um verdadeiro pacifista, no sentido mais profundamente quizilento da palavra - o europeu; saúdo-vos, bravos bandidos da literatura!!!

segunda-feira, agosto 03, 2009

Velazquez e o sacrifício.


Esta é a minha representação favorita de Cristo na cruz. Talvez inspirado pela viagem que, dois anos antes, terá feito a Itália - para admirar in loco os mestres do renascimento - Velazquez opta por um registo sóbrio embora de grande intensidade dramática, num trabalho despido de artifícios biblícos mas magnificamente ornamentado de espinhos e pregos e feridas e sangue e sofrimento. Cristo está aqui a sós com o seu destino, face a face com a morte, na noite profunda do sacrifício.
Nenhuma representação (e muito menos esta) faz justiça a este quadro. Está no Prado e só a textura e a diversidade mais que súbtil dos negros de fundo merece uma hora de pura contemplação. Depois de ter visto esta obra é impossível classificar Velazquez no âmbito do Barroco. O homem transcende escolas e maneirismos porque, não estando atrás nem à frente, está para além do tempo.
Acresce que o sacrifício de Cristo me parece um tema particularmente contemporâneo. Agora que uma certa civilização ocidental vive aparentemente esquecida (ou ignorante) de que não há glórias sem sacrifícios. De que é preciso morrer para salvar. De que é preciso retribuir em lágrimas as alegrias: lamentavelmente, não há almoços grátis na cadeia de fast food que é a história dos homens. E Cristo está aqui exposto e nú, está aqui profundamente humano, está aqui frágil e moribundo para o provar.