sexta-feira, abril 18, 2008

"A actividade social chamada comércio, por mal vista que esteja hoje pelos teoristas das sociedades impossíveis, é contudo um dos dois distintivos das sociedades chamadas civilizadas. O outro característico distintivo é o que se denomina cultura. Entre o comércio e a cultura houve sempre uma relação íntima, ainda não bem explicada, mas observada por muitos. É, com efeito, notável que as sociedades que mais proeminentemente se destacaram na criação de valores culturais são as que mais proeminentemente se destacaram no exercício assíduo do comércio. Comercial, eminentemente comercial, foi Florença. Comercial, eminentemente comercial, foi Florença.
A relação entre os dois fenómenos é ao mesmo tempo de paralelismo e de causa-e-efeito. Toda a vida é essencialmente relação, e a vida social, portanto, é essencialmente relação entre indivíduos, quando simples vida social; e entre povos, quando vida civilizacional. Ora, como os fenómenos da vida superior são de duas ordens - materiais e mentais -, devem ser materiais e mentais os fenómenos da vida superior civilizacional; e, como a vida é essencialmente relação, esses fenómenos devem ser de relação. Como o comércio é, por sua natureza, uma entrepenetração económica das sociedades, é no comércio que as relações materiais entre as sociedades atingem o seu máximo; e como a cultura é uma entrepenetração artística filosófica das sociedades, é na cultura que as relações mentais entre os povos conseguem o seu auge. Segue que uma sociedade com um alto grau de desenvolvimento material e mental e, portanto com um alto desenvolvimento da vida de relação, forçosamente será altamente comercial e altamente cultural, paralelamente.
(...) Mas entre os dois fenómenos - comércio e cultura - há, també,, uma relação de causa-e-efeito. A cultura ao aperfeiçoar-se, tende para a universalidade, isto é, para não excluir da curiosidade elemento algum estranho. Quanto mais fácil for o contacto com elementos estranhos, tanto mais essa curiosidade se animará, e a cultura permanecerá viva. Ora como o fenómeno material precede sempre o fenómeno mental, o meio mais seguro de se formarem contactos mentais é terem-se formado contactos materiais; e, como a cultura exige necessariamente um contacto demorado e pacífico, o contacto material, que a estimule, terá que ser demorado e pacífico - e é isto mesmo que, em contraposição à guerra, distingue a actividade social chamada comércio."


"A Essência do Comércio e Outros Textos de Teoria Económica", de Fernando Pessoa | Editorial Nova Ática

sábado, abril 12, 2008

Esses deprimentes e aborrecidos lamentos têm mesmo que acabar.


Esta é a hora do grande bardo. Direitinho das ruelas de Stratford-upon-Avon para a avenida da eternidade, o falecido senhor Shakespeare rebentou com a escala da glória e estes versos, retirados de "Much Ado about Nothing", são dos meus preferidos, não só porque me agrada o tom paternalista e reaccionário, mas também porque é um texto que tem muita música pop lá dentro. Senão reparem:

Sigh no more, ladies, sigh nor more;
Men were deceivers ever;
One foot in sea and one on shore,
To one thing constant never;
Then sigh not so,
But let them go,
And be you blithe and bonny;
Converting all your sounds of woe
Into. Hey nonny, nonny.
Sing no more ditties, sing no mo,
Or dumps so dull and heavy;
The fraud of men was ever so,
Since summer first was leavy.
Then sigh not so,
But let them go,
And be you blithe and bonny,
Converting all your sounds of woe
Into. Hey, nonny, nonny.


Quando comecei a brincar com o Garage Band, veio-me à ideia criar um tema que acompanhasse estas sábias palavras, mas numa versão em Português. Trata-se, repito, de uma versão e não de uma tradução, tarefa que transcende largamente as minhas capacidades.

Não, senhoras, não suspirem mais;
Os homens sempre foram diletantes;
Um pé no mar, outro no cais,
Nunca por coisa alguma constantes.
Chega enfim de suspirar,
É deixá-los andar
E manter a graça no entretém;
Convertendo os vossos sons de pasmar
Num sim querido, tudo bem.
Nem mais cantem esse lamento;
Tão deprimente e aborrecido;
O homem sempre foi fraudulento
Desde que o Verão primou florido.
Chega enfim de suspirar,
É deixá-los andar
E aproveitar o vai e vem;
Convertendo esses sons de arrepiar
Num sim querido, tudo bem.


Por fim, o tema musical para a versão em português surgiu quando consegui meter mão nuns loops porreirinhos de cravo, que, aqui entre nós, era o que a coisa estava mesmo a pedir. Lamento, mas teve que entrar a cana rachada outra vez.
Espero que me compreendam a paixão pelo velho William e já agora, que não sejam sensíveis à ousadia.

quinta-feira, abril 10, 2008

Quadratura do Círculo (fim da terceira época).

Quem não viu hoje, perdeu um dos mais bonitos momentos de televisão - e de verdade - da história contemporânea de Portugal.

Do tempo perdido.

Tenho andado para aqui metido comigo e com os afazeres da escravidão que é a vida e infectado de infernos profissionais variadíssimos (o Diabo é prolixo de passatempos) e aflito em azáfamas múltiplas e, de todo em todo, inerte.
Tenho andado para aqui metido em enredos e labores e lavores e merdinhas que não interessam para nada, senão para castigar a paciência e tudo porque decidi que não podia continuar a trabalhar sózinho quando o que devo sempre fazer, para sanidade minha e do mundo do trabalho, é precisamente continuar aqui enfiado em casa a esgalhar comunicação a solo para clientes felizes. Não consigo ter clientes infelizes, por muito que isso doa à minha conta bancária. E não consigo aturar já pecadilhos que eu próprio cometi. Gostava que a geração abaixo fosse um bocadinho mais original nos desaires e um pouco menos efusiva nos sucessos. Até porque hoje em dia, em Portugal, ninguém é realmente bem sucedido. Tenho andado para aqui metido em porradas com gente que não sabe dar porrada nem levar porrada (o que é grave) porque é gente mais nova, que, basicamente, se está a cagar no assunto, seja ele qual for, e com toda a razão.
Tenho andado para aqui metido comigo e com o Proust, que é um frívolo filho da puta (180 páginas para o primeiro salão nos Guermantes é obra) e que cada vez me dá mais prazer. Prazer sexual, prazer religioso, prazer estético, prazer, prazer, prazer. Quanto mais chego ao fim do Tempo Perdido, mais recordo o antigo fracasso moderno de Sartre. Querendo virar Proust de pernas para o ar sem ter a necessária elegância e desprovido de despreocupação moral, o tristemente célebre estrábico mais não fez que enjoar o público para toda a eternidade (que é dele, sim senhor). A Náusea devia fazer o pino para ser outra vez literatura.
Tenho andado para aqui razoavelmente insatisfeito comigo por causa dos outros o que não é conveniente para mim nem para os outros e estou lentamente a tranformar-me num apetitoso exemplo clínico do meu filósofo favorito. Ao contrário do que nos lembra Max Stirner, esqueço-me frequentemente que só sou dono de mim e que ninguém mais é de mim dono e às vezes dá-me um vontade assassina de desistir de ser preocupado.
Tenho andado para aqui resignado até para com certos comentários que ainda me vão deixando neste blog crepuscular, comentários sobranceiros que me ensinam que a wikipedia não é um enciclopédia, que me ensinam a ética do link (maravilhoso princípio que falhou à razão pura de Kant) como se eu desconhecesse o científico maneirismo iluminista, como se eu andasse para aí a baixar direitos de autor, como se eu não tivesse a quarta classe que tive - não a do meu pai, que era para doutores - mas a minha e como se eu não tivesse ido à escola mais do que isso nem soubesse nada de nada. Estes meus parceiros de blogosfera dão-se ao trabalho de visitar e comentar um blog que é escrito pelo mais ignorante dos ingénuos do universo dos simples de espírito. Bravo, bravo e os meus agradecimentos pelo fornecimento da electricidade espiritual de que tanto pareço carecer.
Tenho andado para aqui metido em irritações e nevralgias por causa de pivots de telejornal, chefes de redacção, opinion makers, think tank boys, fiscalistas, constitucionalistas, grevistas, criativistas, filipe vieiristas e outros filhos do grande esgoto da infâmia como os senhores da OPEP, os párocos de Barak Obama, os xiitas do quarto mundo ou os homens que engravidam porque já foram mulheres um dia. Os homens que engravidam porque já foram mulheres um dia são obscenos como a ausência de Homero.
Tenho andado para aqui metido em silêncio no buraco dos dias e tenho-me embebedado de vez em quando, o que é bom quando Mozart toca, o que é bera quando oiço Bach.

É claro que escrevi isto só para me aliviar do stress de ter um blog vazio de conteúdo. Quando, caramba, tudo o que precisava de fazer era passar um youtube qualquer com um puto de 16 anos a ir ao cú da stora na sala de convívio do liceu de sempre em Portugal. É o que a televisão faz à hora de jantar, e quem sou eu?