"A actividade social chamada comércio, por mal vista que esteja hoje pelos teoristas das sociedades impossíveis, é contudo um dos dois distintivos das sociedades chamadas civilizadas. O outro característico distintivo é o que se denomina cultura. Entre o comércio e a cultura houve sempre uma relação íntima, ainda não bem explicada, mas observada por muitos. É, com efeito, notável que as sociedades que mais proeminentemente se destacaram na criação de valores culturais são as que mais proeminentemente se destacaram no exercício assíduo do comércio. Comercial, eminentemente comercial, foi Florença. Comercial, eminentemente comercial, foi Florença.
A relação entre os dois fenómenos é ao mesmo tempo de paralelismo e de causa-e-efeito. Toda a vida é essencialmente relação, e a vida social, portanto, é essencialmente relação entre indivíduos, quando simples vida social; e entre povos, quando vida civilizacional. Ora, como os fenómenos da vida superior são de duas ordens - materiais e mentais -, devem ser materiais e mentais os fenómenos da vida superior civilizacional; e, como a vida é essencialmente relação, esses fenómenos devem ser de relação. Como o comércio é, por sua natureza, uma entrepenetração económica das sociedades, é no comércio que as relações materiais entre as sociedades atingem o seu máximo; e como a cultura é uma entrepenetração artística filosófica das sociedades, é na cultura que as relações mentais entre os povos conseguem o seu auge. Segue que uma sociedade com um alto grau de desenvolvimento material e mental e, portanto com um alto desenvolvimento da vida de relação, forçosamente será altamente comercial e altamente cultural, paralelamente.
(...) Mas entre os dois fenómenos - comércio e cultura - há, també,, uma relação de causa-e-efeito. A cultura ao aperfeiçoar-se, tende para a universalidade, isto é, para não excluir da curiosidade elemento algum estranho. Quanto mais fácil for o contacto com elementos estranhos, tanto mais essa curiosidade se animará, e a cultura permanecerá viva. Ora como o fenómeno material precede sempre o fenómeno mental, o meio mais seguro de se formarem contactos mentais é terem-se formado contactos materiais; e, como a cultura exige necessariamente um contacto demorado e pacífico, o contacto material, que a estimule, terá que ser demorado e pacífico - e é isto mesmo que, em contraposição à guerra, distingue a actividade social chamada comércio."
"A Essência do Comércio e Outros Textos de Teoria Económica", de Fernando Pessoa | Editorial Nova Ática