quinta-feira, outubro 26, 2006
Filinto, o apóstata.
Nasci – logo a meus pais custou dinheiro
o baptismo, que Deus nos dá de graça.
Tive uso de razão – perdi a graça –
dei-me ao rol – chegou a Páscoa – dei dinheiro.
Quis casar com uma moça – mais dinheiro.
Brinquei com ela – não brinquei de graça:
que aos nove meses me custou a graça
para o Mergulhador capa e dinheiro.
Morreu minha mulher – não lhe achei graça
e menos graça ao arbitral dinheiro
da oferta; que o prior não vai de graça.
Se o ser cristão requer sempre dinheiro,
como cumprem com dar graças de graça
os que as graças nos vendem por dinheiro?
Filinto Elísio (1734 - 1819)
Filinto Elísio, pseudónimo do Padre Francisco Manuel do Nascimento, foi um dos mais importantes poetas do Neoclassicismo português. Apesar de ser clérigo, era admirador de Horácio, defensor dos ideais iluministas e enciclopedistas, das revoluções francesa e americana e fã dos autores racionalistas franceses, proibidos pela Inquisição. Por causa destas suas temerárias preferências, acabou por fugir para França, exilando-se em Paris em 1778 e estabelendo relações de amizade com o poeta Lamartine. As suas poesias foram publicadas em Paris em onze volumes entre 1817 e 1819, seguindo-se uma segunda edição em Lisboa de vinte e dois volumes entre 1836 e 1840. Além de poeta era tradutor, vertendo para português os Mártires de Chateaubriand, as Fábulas de Lafontaine e Púnica de Sílio Itálico.
O seu estilo segue os preceitos da estética classicista arcádica, sendo um defensor enérgico do purismo da língua. Não obstante os formalismos, muitos dos seus poemas reflectem uma grande intensidade emocional, no que têm de revolta e de sofrimento pessoais, sendo, neste contexto, um precursor do romantismo.