segunda-feira, setembro 19, 2005
Voando Sobre um Ninho de Corvos
(Original de 1993 em cinco posts)
POST QUARTO
Faço tudo o que é humanamente possível para que não me mandem embora. Seria absolutamente degradante falhar como doente mental e uma asneira das grandes voltar para o mundo lá fora. Aqui dentro, as regras são mais simples. Não é tão difícil viver. Não há grandes preocupações filosóficas nem dilemas existenciais. Digam-me, para que precisa um louco de Schopenhauer? Aqui, uma pessoa é alimentada, é drogada e deixa-se dormir. Tudo o resto é fazer por não perceber as palestras dos estagiários e os mandamentos dos consagrados.
Se o Fragoso andasse para aí a masturbar-se pela via pública era preso. Fechavam-no numa espelunca qualquer onde, com toda a certeza, não haveria televisão, nem pássaros, nem enfermeiras. Não está certo. Eu e o Fragoso não arredamos pé; aqui é que é bom. Temos gralhas na TV e já nos prometeram um rádio cheio de cucos. As corujas habitam o frigorífico de Verão e a lavandaria no Inverno. Tudo está no seu devido lugar.
Quando a milícia psiquiátrica desconfia que eu estou a recuperar (e eu apercebo-me da tolice sempre que olham para mim com o ar expectante do vendedor de gelados em Outubro), desato imediatamente num chinfrim acrobático de dislates de primeira categoria, babo-me, cago-me, parto a loiça, uivo bastante, esbracejo como um aflito, esperneio como um dançarino russo, coço as orelhas com os pés, canto a Internacional, exorciso os arcanjos todos que há no Inferno e dou dentadas que me farto. Depois disto, os doutores, desapontados com a terapia, envergonhados da incompetência, fecham-me a sete chaves e alimentam-me regularmente. Só de pensar que anda por aí tanta gente à procura de uns minutos de felicidade durante a vida inteira e só conseguem filhos, empregos de merda, cansaços muitos e uma morte estúpida, suja e desejada, vêem-me corvos aos olhos e acabo por adormecer na paz do nosso senhor Jesus Cristo, junkie de todas as ordens, dealer de todos os créditos, padroeiro de todos os loucos.
Sou um corvo fechado num celeiro. Enquanto houver milho para encher a barriga, não vale a pena sair.