segunda-feira, agosto 22, 2005
"Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo! "
- Álvaro de Campos -
Tenho uma amiga que se considera "humanista". Que acha simplesmente impossível ser-se de outro modo. Ora eu, que acho até mais que possível; eu, que acho até muitíssimo aconselhável evitar um afecto apriorístico, generalista e piegas pelas pessoas todas; eu que acho até higiénico desconfiar da mole humana; tenho o prazer de discordar. Elevado este assunto a post do Elsinore, não tenho outro dever que a exposição de um breve argumentário.
Para já, para já: não sou um humanista porque tenho a consciência de que a humanidade é um virús. Se retirarmos o homem do universo, obtemos uma constante cósmica - um pleno de perfeição. O Chimpanzé, amigos, faz sentido. A Formiga Vermelha, a Mosca da Fruta, O Colibri e o Rinoceronte fazem sentido. Estas sim, são criaturas Sapiens, na medida em que têm a sabedoria campeã para qualquer locatário do Planeta Terra. Sobrevivem com competência e sentido estético, não fazem perguntas, não precisam de deus, não têm moral e não desfeiam a paisagem. Já o homem, caramba, o homem não faz sentido ontológico absolutamente nenhum porque precisa de transcendência e é uma bactéria religiosa, científica, civilizacional, complexa e, claro está, destrambelhada! Se a mãe natureza é um logaritmo imperfeito é apenas porque se deixou penetrar pelo Lambda irritante da alma humana! O homem é este animal que persegue ambições delirantes como o saber fenomenológico da origem das coisas, o mastigar constante da ideia do divino, o devaneio arrogante de pensar que existem conceitos penta-essenciais como a Verdade, o Conhecimento, a Imortalidade. Conceitos diletantes como o bem e o mal, o pecado e a redenção. É que o homem exige a redenção e o caminho para a redenção do homem é o humanismo. Digam-me: Algum golfinho seria insensato o que baste para ser um golfista? Só mesmo um homem para ser um humanista. Para acreditar em si próprio como alguém que merece a complacência de deus e o reconhecimento do espírito santo (entidades que - mesmo a propósito - ele próprio criou).
Henry George escreveu: "Homens e gaviões alimentam-se de frangos. Se aumenta a população de gaviões, diminui a de frangos. Mas se aumenta a população de homens, a população de frangos cresce também." A humanidade é um artificialismo, uma doença, uma disfunção endémica e imperialista, um problema na equação das coisas.
Depois: não sou um humanista porque as pessoas incomodam-me. Incomodam-me na praia e na estrada. Incomodam-me no cinema e na rua, incomodam-me no Verão e no Inverno, de manhã e à noite, incomodam-me mesmo e especialmente quando eu não quero ser incomodado. Incomodam-me os vizinhos, os carteiros, os técnicos de telemarketing, os arrumadores, os que passeiam, os que estão à espera, os que compram, os que vendem, os que trabalham, os que roubam, os que matam, os que esfolam; incomodam-me os que cravam, os que choram, os que perdem, os que ganham, os gordos e os magros, os mártires, os heróis, os que vão à pesca, os que vão para a festa e os que vêm da festa e os que jantam no mesmo restaurante que eu escolhi para não ser incomodado! Incomodam-me as filas de gente e os supermercados e as manifestações e os encontros de motards e as eleições autárquicas e a feira popular e as excursões e os espectáculos de circo com as criancinhas aos berros e os festivais de rock e os festivais de jazz e os festivais de loucura e os festivais de morte e os festivais de estupidez e o barulho estrondo que fazem dentro da minha cabeça!
Não há lugar de sonho no mundo que não passe rapidamente a pesadelo depois de ter sido infectado por pessoas. Não há sossego, se há pessoas. Não há paz, claro que não pode haver paz, quando há gente no cenário.
Schopenhauer escreveu: "Não se pode atribuir outra finalidade à nossa existência, senão a de nos ensinar que, para nós, seria melhor não existir".
A seguir: não sou um humanista porque o humanismo sempre levou certos incompetentes a pensarem que estavam à altura de tomar conta dos outros incompetentes todos. Um erro cujas consequências foram muitas vezes devastadoras para a... humanidade. Mais a mais, é por causa das derivações do humanismo em ismos diversos que as pessoas acreditam que podem ser donas do seu destino, como se isso quisesse dizer alguma coisa ou tivesse alguma importância gloriosa na estrutura fundamental do universo. Gaetano Mosca escreveu: "A igualdade absoluta nunca existiu nas sociedades humanas. O poder político nunca foi e nunca será fundado sobre o consentimento explícito das maiorias. Foi e será sempre exercido por minorias organizadas que tiveram e terão os meios, variáveis consoante o tempo, para impor a sua supremacia sobre as multidões".
Não é acreditando na santidade olímpica de um predador cruel e facínora, que se governa o animal. Assim, é-se apenas vítima dos seus piores instintos.
Mais: o humanismo é um tique egotista para nos sentirmos bem com a mediocridade e a ferocidade e a ignorância alheias. É uma maneira de, desculpando os outros, aliviarmos a nossa própria culpa. Só que o homem é o único e o derradeiro culpado. Camus escreveu: "Não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos".
Acresce que: o humanismo é uma assumpção de filósofo caloiro. Herbert Spencer escreveu: "Ninguém pode ser perfeitamente livre até que todos sejam livres; ninguém pode ser perfeitamente moral até que todos sejam morais, ninguém pode ser perfeitamente feliz até que todos sejam felizes". Ora, se todos fossemos perfeitamente livres e perfeitamente morais e perfeitamente felizes, seríamos ainda assim capazes de discernir o que é isso da perfeição? Seríamos ainda assim vítimas de um pensamento humanista? Se o infeliz axioma existe é precisamente porque decorre da condição imperfeita, maliciosa, corruptora, degradante, vexatória e pestilenta do bicho homem. É porque sabemos que não prestamos para nada, que somos uns brutos e que estamos indefesos, que nos obrigamos à auto-comiseração.
Para terminar: não sou um humanista porque gosto apenas das pessoas de quem gosto. Não tenho amor por estranhos nem ternura por desconhecidos. Muito por causa disso não faço minhas as causas da multidão. Nem pretendo que sejam colectivas as minhas convicções individuais. Max Stirner escreveu: "Há tanta coisa a querer a ser a minha causa! A começar pela boa causa, depois a causa de Deus, a causa da humanidade, da verdade, da liberdade, do humanitarismo, da justiça; para além disso, a causa do meu povo, do meu príncipe, da minha pátria, e finalmente até a causa do espírito e milhares de outras. A única coisa que não está prevista é que a minha causa seja a causa de mim mesmo!"