Faz hoje setenta anos que morreste
e - como já era tua previsão -
é quando faz anos a tua morte que se lembram de ti.
Faz hoje setenta anos que morreste
e não deve ter sido lá muito agradável
ir a enterrar com tantos gajos na mesma urna
(O Álvaro, tu dizes que não, mas devia ser gordo,
o Ricardo por certo que não tomava banho,
o Bernardo tinha mau dormir e o Alberto,
Que passou a vida doente dos olhos,
não estava ainda preparado psicologicamente
para aquilo). A propósito,
Em que hospital internaste o Alexander Search?
Faz hoje setenta anos que morreste
e eu acho até que te enterraram vivo.
Porque - mesmo com a televisão a dizer
que faz hoje setenta anos que morreste,
não me cheira.
Tu enganaste-os bem, Fernandinho meu querido,
que ainda andas por aí aos pulos por dentro,
à procura do mistério. Que ainda
Brincas com a metafísica e inventas horóscopos
para deus. Que ainda trocas correspondência
com aquele inglês tresloucado e vigarista
(Nunca foste grande coisa a escolher os amigos),
que ainda andas por aí a fingir que és tu
e mascarado de ti, para que ninguém te reconheça.
Tu levaste-os foi com a conversa pagã do Caeeiro
e os ateísmos naturalistas do Reis, (tiveste olho!)
pois juro-te que foi contigo que em Portugal
Se desacreditou a imortalidade.
Só para que agora possas andar em Lisboa
à tua vontade, para cá e para lá.
Porque se faz hoje setenta anos que morreste,
eu sei que só de virgindade contas tu
mais de um século, meu grande maricas.
(Que diabo, Fernando, faz hoje
117 anos que nasceste,
e ainda não foste um animal, pá.)
Sim, Romeu de papel de carta,
que trocaste a eterna Ofélia pelo trans-sexual
do Álvaro de Campos! Um engenheiro!
Mais a mais com essa tua veia,
e as confissões queriduchas que lhe escrevias,
encantadoras para ti, mas que pensaria realmente
ela, Ofélia, Atena de olhos garços,
que provavelmente ia buscar a Ulisses
o que não tirava do teu corpo imaterial?
Faz hoje 70 anos que foste a enterrar, isso sim.
No velório a malta de que falavas estava lá,
inconsolável e contando anedotas.
O funeral foi lacónico e havia crianças
a chorar por birra. Não pelo tio Fernando,
mas pela ausência do cavalinho de pau.
E quando todos se retiraram, já predispostos
a celebrar-te duas vezes por ano:
à data do teu nascimento e à data da tua morte,
Continuaste estranhamente espertíssimo
e bem acompanhado; sacudiste a poeira do cadáver
que afinal sempre tinhas sido e foste à tua vida,
Malandro. Afinal, não podias entregar a alma
assim de borla. Não sem que primeiro fizesses
o devido comércio com o diabo, coisa proveitosa
Para toda a gente de bom senso e especialmente
proveitosa seria para ti se a vendesses
em troca de mais uma mascarilha
ou de qualquer outro adereço de prestidigitador.
Faz hoje setenta anos que morreste?
Nem pensar, por esta altura deves estar
Enfiado num quarto qualquer do chiado
encharcado em absinto e a pregar aos rebanhos,
e a escrever odes industriais e a fumar
Cigarros americanos. Sim a esta hora, deves
estar a fabricar mais não sei quantas maneiras
de ser imortal, que é isso que tu fazes melhor
E que é isso que tu não explicas a ninguém;
também não és parvo nem romancista russo.
Faz hoje setenta anos que morreste, uma ova!
Está-se mesmo a ver: logo tu, que em vida
te comprazias a enganar toda a gente,
ias agora ser um morto de verdade...
Mas nem por isso julgues, mestre querido,
que te quero mal. Só pela graça de te parir
valeu a pena fazer Portugal.