quinta-feira, agosto 18, 2005

Voando Sobre um Ninho de Corvos


(Original de 1993 em cinco posts)
POST PRIMEIRO

De súbito abrem a porta. Não é o pequeno-almoço, é mais um psiquiatra. Novato. Não há melhores e mais prestáveis cobaias no mundo clínico que os loucos e, entre os loucos, os furiosos. Os que rasgam cortinas e partem as cadeiras e berram como lobos ao luar e trepam pelas paredes; os que mordem a sério e cospem a valer e agridem os gorilas da segurança; os que espumam da boca e pontapeiam as enfermeiras na boca e são enfiados em camisas de forças antes que um corvo alcance a maturidade. Os loucos furiosos que são enfiados em camisas de forças antes que um corvo alcance a maturidade são o Santo Graal dos laboratórios de investigação psiquiátrica.
O tipo diz-me qualquer coisa que não percebo, repete-se com insistência e eu insistentemente continuo desentendido: nunca cheguei a ser fluente no idioma destes gajos. Fazem perguntas cretinas e querem saber tudo para escarrapachar nos seus mestrados e nas suas pós-graduações para impressionar catedráticos tão ignorantes como eles, mas mais velhos. Generalizando, acho que são extremamente bisbilhoteiros. Bisbilhoteiros e ininteligíveis, autênticos marcianos formados em medicina, criaturas de um pesadelo em BD. Quero o meu pequeno almoço. É inadmissível doutor, até os loucos - sobretudo os loucos - têm o direito inalienável à primeira refeição do dia. A insanidade não se alimenta assim, a pão e água e jejuns forçados. Se querem as sintomatologias, façam favor de contribuirem com as vitaminas!
O rapazote tenta comunicar algo, é um facto. Vá lá saber-se o quê. Primeiro a paparoca, depois a charada. É o meu lema, é o meu tema, é a fome - a mais negra de todas as carências, a mais apertada de todas as necessidades. Mesmo um doido sabe isso. Doutor, seja sensato, traga-me ovos mexidos, torta de ananás, sumo de laranja, pão de noz, Mozart, mulatas de seios vermelhos; traga-me batatas fritas e o conduto da metafísica, traga-me crocodilos em conserva, enfermeiras em calda, salsichas às rodelas, torradas com compota de foca e antes do banquete, traga-me o aperitivo de ser livre e por fim traga-me um belo Bairrada tinto para regar esta infelicidade de ter um vazio enorme no estômago e um psiquiatra de Marte na cela do hospício mais infecto de todos os infectos hospícios do universo. (cont.)