quarta-feira, outubro 30, 2013

Escritos na areia #2


COMPOSIÇÃO E DECOMPOSIÇÃO DA ENSEADA

Estar de férias, que coisa complicada! São muitas horas a ser de companhia. São muitas horas a morrer ao sol. São dias e dias a negar o corropio da vida e que sentido faz negá-lo? A complicação das férias é não haver maneira de escapar ao destino, mesmo quando se está de férias. Não podemos simplesmente marcar 15 dias de excepção às leis do cosmos. O caos sempre há-de prevalecer, em Lisboa como nas Caraíbas.
Ah, estar de férias! Estar com os livros mais de perto mas ainda assim tão longe da estante!! Construir muralhas no risco da maré e fazer fé que o pé de Neptuno não derrube o atrevimento. Ah, ouvir ao longe a conversa das ondas e especular sobre o assunto, quando toda a gente sabe que as ondas só sabem falar de regressos. Ah, o Verão tardio que me abençoa com noites perfeitas enquanto eu só penso no Gran Turismo Ponto Seis! Ah, a minha mulher marítima, a minha mulher tufão, que se farta das férias ainda antes de mim, ainda antes que eu perceba a ironia, ainda antes que eu realize que há, nas férias, uma ambição insensata.



MILES AWAY

Apita para aí, meu! Dou-te a liberdade de dois acordes. E tu rapaz, apita para aí que nem um doido maluco. Estás no teu direito de génio, estás no teu domínio dos deuses, apita para aí! Apita como se a tua intestina produção de esperma dependesse da insanidade do apito com que apitas, valente! Apita para aí, gladiador atónico, feiticeiro de um refrão único-múltiplo, com a melodia à flor da pele impossível. Apita, meu, continua a apitar, porque enquanto eu ouço esse apito, repito a tua liberdade de dois acordes e permito que tu inventes tudo o resto, meu amigo.



ARGUMENTO ONTOLÓGICO A DESFAVOR DA POESIA

E o que é o poeta senão um tipo incapaz de escrever romances? Este velho e poderoso veneno do poema que vai exterminando em mim, pouco a pouco, o impulso criativo e que não é mais em mim, que uma vontade suicida; este antigo remorso de estar vivo, paralisia da paz de espírito, inquietude absurda sobre a eterna ordem estática das palavras; este escrevinhar triste de estrofes coitadas, objectos inconfundíveis do meu desastre; este rumor sem rumo, serve-me de quê? Mais a mais, toda a poesia do mundo não é capaz de competir em glórias com o apetite das gaivotas. Pode um poema, mais que um fim de tarde, provar a existência de Deus?