Crónica publicada a 26/02/15
“Conta-se que um poeta maldito do segundo império, Theodore Pelloquet, vagabundo e bêbedo que ficou afásico, ao tentar no seu leito de morte exprimir aos seus próximos a sua última vontade só conseguiu pronunciar a primeira sílaba: abs…, sem que se conseguisse saber se queria um copo de absinto ou a absolvição dos seus pecados por um padre.”
Robert Bréchon . Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa
“Conta-se que um poeta maldito do segundo império, Theodore Pelloquet, vagabundo e bêbedo que ficou afásico, ao tentar no seu leito de morte exprimir aos seus próximos a sua última vontade só conseguiu pronunciar a primeira sílaba: abs…, sem que se conseguisse saber se queria um copo de absinto ou a absolvição dos seus pecados por um padre.”
Robert Bréchon . Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa
I – Tantas páginas em branco e tão pouco tempo.
Fernando Pessoa. Nascido a 13 de Junho de 1888, morrido a 30 de Novembro de 1935. Tendo vivido, assim, 47 anos, 5 meses e 17 dias, criou, nesse lapso, qualquer coisa como cerca de 130 autores fictícios (1). Dezenas desses autores fictícios deixaram obra que chegue para ocupar as academias de todo o mundo com séculos de pós-graduações, mestrados e doutoramentos. A sua vasta, complexa e inspirada obra heteronímica não tem paralelo na história da literatura universal, mas apenas como hortónimo já é o poeta mais importante do século XX português, rivalizando com Camões para o título nacional absoluto. A obra que Pessoa construiu no breve percurso da sua existência não está ainda, 80 anos depois da sua morte, inteiramente publicada. Inteiramente estudada. Inteiramente lida. A célebre arca não parece ter um fundo e o bom do Virgem Negra, para além do poeta-milagre que foi, também foi editor, dramaturgo, novelista, crítico literário, ensaísta, filósofo, politólogo e economista, tendo deixado à posteridade incontável obra sobre uma imensa pluralidade de temas, em português, inglês e francês.
Para além desta carga de trabalhos, o poeta da “Mensagem” escrevia cartas como se não houvesse amanhã. Correspondia-se com Mário de Sá Carneiro, com Jorge Luís Borges, com Adolfo Casais Monteiro, com Gaspar Simões (que viria a ser o seu primeiro editor e biógrafo), com António Botto, com Jaime Cortesão, com José Régio, com Camilo Pessanha, com Almada Negreiros, com Santa Rita Pintor, com os directores dos jornais que o irritavam e com os directores dos jornais que não o irritavam, com os seus professores de Durban, com astrólogos de Londres, com psiquiatras de Paris, com editores em toda a parte, com a Ofélia (correspondia-se imenso com a Ofélia!) e com mais uma quantidade inquietante de gente, só para falar das cartas que enviou, porque entretanto escreveu muitas que se esqueceu de levar aos serviços postais. O Fernando era aquele tipo de sujeito educado que mandava uma carta só para avisar que ia chegar meia hora atrasado (2).
A somar a esta quantidade devastadora de cartas assinadas com nome próprio, também criou bastante correspondência em nome de autores fictícios e heteronímicos. Umas vezes escreviam uns para os outros, outras vezes escreviam para gente de carne e osso e, outras ainda, escreviam para personagens imaginários, criados para efeitos meramente cenográficos fora do âmbito da criação literária (talvez a mais prodigiosa carta de amor jamais escrita na língua portuguesa é aquela que a Corcunda escreve ao Serralheiro).
Como eminência parda do modernismo português e co-fundador da Orpheu, Fernando Pessoa produzia com regularidade, em seu nome e em nome da multidão que o habitava, uma variedade enorme de conteúdos para os media da altura (manifestos, textos de intervenção política e social, poemas, ensaios, etc., etc.) e, claro, sempre sobre os assuntos mais díspares que podemos imaginar. Alguns destes textos são de grande fôlego literário e dizem-nos muito sobre o Modernismo português em geral e o pensamento do autor em particular. Só Álvaro de Campos escreveu dois dos manifestos mais espectaculares já registados pela história da literatura portuguesa: Aviso por Causa da Moral e Ultimatum.
Como a sua caligrafia, também a sua pena era perfeitamente transversal. Até um roteiro de Lisboa em Inglês, o senhor se lembrou de escrever (para ser editado apenas em 1992) (3).
Pessoa com costa Brochado, a beber... café.
II – Actividades curriculares e extra-curriculares
Pessoa era, também e por isso mesmo, um estudioso obsessivo. Erudito em autores tão diversos como Shakespeare, Edgar Allan Poe, John Milton, Lord Byron, John Keats, Percy Shelley, Alfred Tennyson, Baudelaire, Camões, Cesário Verde, Padre António Vieira e… Bandarra; refundador do mito do Quinto Império, zeloso leitor de filósofos clássicos e modernos, astrólogo amador, filatelista até um certo ponto, ocultista perito e conhecedor profundo das ciências e das artes do seu tempo, o santo homem teve que ler por ele e, no mínimo, por mais uma mão cheia de tipos que viajavam dentro dele (a sua biblioteca está cheia de edições assinadas por autores fictícios e heteronímicos). Mais a mais, é imperativo acrescentar a esta equação o deprimente facto de que Pessoa sempre precisou de trabalhar para ganhar a vida. Com esse fim, foi correspondente comercial a tempo inteiro, na maior parte da sua existência adulta, e tradutor, jornalista e publicitário em part-time.
Por cima disto tudo, e para concluir esta muito extensa lista de afazeres, sabe-se que era um tio dedicado e um daqueles solteirões que têm um jeito meio irritante com as crianças, não regateando o tempo que consumia com elas em brincadeiras, charadas e jogos mímicos (4).
Fernando Pessoa descendo o Chiado sem trocar o passo.
III – Velocidade furiosa.
Se o prezado leitor ficou enfartado com os dois primeiros tragos deste ensaio, tem boas razões para isso. A vida e a obra de Fernando Pessoa resultam necessariamente num ataque cardíaco, dada a azáfama danada e exaustiva. Como é que o santo homem teve tempo para tudo isto?
É verdade que Pessoa é conhecido pelos seus episódios de criatividade frenética e velocista,dos quais o mais conhecido – e lendário – é o da Noite Triunfal de 8 de Março de 1914, em que redige de uma assentada os 49 poemas que cumprem “O Guardador de Rebanhos”, do mestre Caeiro (5). Mas ainda assim, só um sujeito altamente disciplinado, fortemente determinado e tendencialmente sóbrio é que consegue produzir toda esta quantidade delirante de obras primas, entre outras papeladas.
Ora, é precisamente neste ponto que a versão oficial dos biógrafos do insigne poeta não faz sentido nenhum. É que, de uma maneira geral, de Robert Bréchon a Cavalcanti Filho, todos constroem a imagem de uma figura diletante, melancólica e anémica, quase preguiçosa, que se arrasta entre o Martinho e o Chiado, numa ociosidade ébria. Gaspar Simões, que o conheceu muito bem em vida, é, curiosamente, o mais prudente nas alegações sobre os hábitos de consumo de bebidas alcoólicas do seu amigo (6), mas o alcoolismo é uma referência constante nos estudos biográficos que lhe são dedicados. Cavalcanti Filho chega a enumerar, na sua recente biografia-tipo-lista-de-compras, todos os vinhos e espirituosos que Pessoa emborcava, segundo o autor brasileiro, em quantidades industriais (7).
Pois bem, entre o copo de vinho aqui, a aguardente ali, a justa ressaca, o namorar da Ofélia, o deambular parasita pelas ruas da Baixa e o necessário cumprimento das obrigações profissionais, é pertinente perguntar sobre o elefante verde que está sentado no sofá magenta desta sala de espera: então e quando é que o Fernando Pessoa está a escrever, afinal?
No Martinho da Arcada, entre amigos e cervejas.
IV – Da tasca ao opiário.
Como o Sócrates de Platão, o autor da Tabacaria nunca se dá por bêbado. Segundo os seus biógrafos, aguenta bem o álcool. Bebe, bebe, bebe, mas vai direitinho pela Rua do Carmo a baixo. Ninguém o vê trocar o passo. Não se lhe conhece uma infâmia por mau vinho, nem uma gritaria de taberna. Esta estoicidade do poeta perante a influência da bebida é bastante conveniente para a sua reputação de seca adegas, embora na verdade se saiba que os alcoólatras são os primeiros a cederem ao poder etílico, na medida em que têm permanentemente um nível de álcool muito elevado no sangue.
O Absinto é outro dos assuntos preferidos dos biógrafos e pseudo-biógrafos do génio da Ode Triunfal. É impossível saber se o paciente leitor tem ideia do que falamos quando falamos de uma bebedeira de Absinto, mas é algo de muito pouco recomendável. A bebida, destilada da planta medicinal que lhe dá o nome, é altamente aditiva e tem poderes alucinogénios. É talvez a beberagem alcoólica mais parecida com uma droga dura que podemos imaginar.
Para se perceber o poder destrutivo do absinto, basta revisitar as aflições que do seu consumo resultaram em personagens como Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Arthur Rimbaud, Van Gogh, Oscar Wilde, Henri de Toulouse-Lautrec e Edgar Allan Poe. Uma boa geração de impressionistas da Belle Époque foram criativamente anulados pelo vício do Absinto. Consumida em excesso, esta não é uma bebida que permita a funcionalidade social ou intelectual e não se percebe, mais uma vez, como é que Fernando Pessoa podia abusar regularmente do Absinto e manter a proficiência lírica e ensaística no seu regular nível olímpico.
Para piorar ainda mais as coisas, nas últimas décadas tem pegado muito a conversa de que Pessoa se dedicava ao consumo do ópio. Esta tese é ainda mais radical, já que o ópio é uma droga que exige e implica largos períodos de letargia, agravando ainda mais a escassez de tempo dedicado à escrita na agenda do poeta. Sim é verdade: Pessoa escreveu que “tomava” ópio. Sim, é verdade: escreveu que o vinho é o melhor da vida. Mas estamos a falar do mais fingidor dos poetas alguma vez paridos. Álvaro de Campos, por exemplo, projectava navios enquanto se embriagava, se drogava loucamente e fazia sexo com máquinas. Lá no mundo imaginário de Álvaro de Campos, claro. Ricardo Reis deliciou-se com as prostitutas de Lisboa e Bernardo Soares era um amante impetuoso, lascivo e competente, que deixava a balzaquiana Olga exaurida de prazeres (8). Apesar disto, há muita gente mais ou menos respeitável que acredita que Fernando Pessoa morreu virgem (4,7).
Sim, é verdade: o homem visitava tabernas, casas de pasto, botequins. Sim, bebia uns copos sózinho ou na companhia boémia dos modernistas com que se dava. Sim, embriagava-se normalmente, como convinha aos personagens da sua ficção íntima e do ecossistema social que habitava. Mas há uma diferença grande, que toda a gente compreende bem, entre a episódica copofonia e a constante alcoolemia. Uma diferença tão grande como entre a ficção e a realidade.
Em flagrante delitro no Abel Pereira da Fonseca.
V – Entre o namoro e a morte, um epílogo.
Um dos fenómenos mais tristes do mito de Fernando Pessoa é o que foi montado à volta da sua morte, tantas e tantas vezes erradamente atribuída a uma “cólica hepática” associada à cirrose. É necessário afirmar que este diagnóstico é falso. Fernando Pessoa foi vítima de uma pancreatite aguda e não evidenciou à altura da sua morte quaisquer sinais distintivos de cirrose hepática (9).
Esta persistente falácia ilustra com rigor a qualidade do modelo argumentativo da tese do alcoolismo, que é realmente fraquinha em factos, mas nem seria preciso mencioná-la. Ou o Virgem Negra era imune aos efeitos destrutivos da embriaguez crónica – o mais funcional dos alcoólatras desde que Baco organizou a primeira orgia – ou simplesmente não bebia tanto como toda a gente que é perita nele afirma que ele bebia. A vastidão assombrosa e múltipla da obra que desenvolveu não deixa muita margem de manobra para uma vida de vício. E, no belo, pungente e extenso relato que Ofélia Queiroz partilhou com a sua sobrinha-neta Maria da Graça Queiroz (10), a única menção que o grande amor de Fernando Pessoa faz a este assunto refere-se ao famoso retrato do poeta a beber vinho no Abel Pereira da Fonseca (com a legenda: “Fernando Pessoa em flagrante delitro”), que lhe foi parar às mãos através do seu sobrinho Carlos Queiroz e que deu lugar a um reatar do namoro, 9 anos depois da sua primeira conclusão. De resto, nada, rigorosamente nenhuma referência ao que Pessoa bebia, muito ou pouco. Se Ofélia Queiroz algum dia o viu embriagado, não quis deixar essa memória para a posteridade. Isto embora a ilustre senhora não mostre a mesma parcimónia sobre outras excentricidades, manias e fraquezas do namorado.
E para concluir, uma perguntinha só: se Pessoa era um amante assim desvairado do vinho, porque diabo é que o bom do Almada Negreiros o imortalizou a beber café?
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1 – Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari – Fernando Pessoa – Eu sou uma Antologia – 136 Autores Fictícios, Tinta da
China, Lisboa 2013
2 – Fernando Pessoa, Correspondência (1905-1922), Relógio d’Água; Fernando Pessoa, Correspondência (1923-
1935), Assírio & Alvim
3 – arquivopessoa.net
4 – Robert Bréchon, Estranho Estrangeiro, Quetzal, Lisboa, 1996
5 – casafernandopessoa.cm-lisboa.pt
6 – João Gaspar Simões, Vida e Obra de Fernando Pessoa – História duma Geração, Bertrand, Lisboa, 1950
7 – José Paulo Cavalcanti Filho, Fernando Pessoa, Uma Quase Autobiografia, Porto, 2012
8- Salomó Dori, A Vida Sexual de Fernando Pessoa, Palimpsesto, 2009
9 – Francisco Fonseca Ferreira, A Penumbra do Génio, Livros Horizonte, Lisboa, 2002
10 – O Fernando e eu, Relato da Ex.mª Senhora Dona Ophélia Queiroz, destinatária destas Cartas de Fernando