Crónica publicada a 23/07/15 |
Licenciado em Matemática com pós-graduação em Lógica Medieval, António José Gonçalves de Freitas fez tese de doutoramento sobre a origem do pensamento filosófico grego, bem como estudos avançados em línguas e culturas do Próximo Oriente. É especialista em escrita cuneiforme, em sumério, em acádio e em outras línguas semitas, desenvolvendo investigação na área das línguas indo-europeias, sobretudo o hitita, o sânscrito e o grego.
Este primeiro e monocórdico parágrafo é necessário porque “Os Deuses e a Origem do Mundo” (Quetzal, 2015) é uma antologia de textos cosmogónicos, na maior parte traduzidos pelo autor e que resulta da sua vasta erudição, tanto no assunto versado como nas línguas de origem.
Ao longo destas saborosas páginas salta à vista o protagonismo da palavra e da água como agentes da criação. A importância dos nomes é inequívoca. Há aliás deuses que só existem quando são nomeados e o cosmos precisa do substantivo próprio como o dia da luz solar. A água é omnipresente e transversal, inundando os mitos criacionistas um pouco por toda a parte da história e da geografia. Mas o importante a reter para apreciar a obra de António Freitas, como ela deve ser apreciada, é que as cosmogonias são afinal literatura. E literatura primordial. Os textos são amiúde de beleza esmagadora, as frases pesam loucamente sobre os sentidos e o uso da repetição estrófica em anáforas e diáforas constantes deixa a sua marca. É praticamente impossível escapar ao potencial encantatório desta protoliteratura, porque reflecte a sensibilidade artística dos povos que a criaram, mas também porque nos traz o sabor das suas preocupações imediatas. A importância do sexo e da agricultura no enredo mítico, por exemplo, dá-nos um sentido pragmático da abordagem transcendental.
Um detalhe que incomodará certamente a sensibilidade do leitor mais atento, é que em muitos destes aparelhos mitológicos os deuses não são os criadores do cosmos e as forças enigmáticas que estão por trás da criação acabam por não ser claramente reveladas. Aqui e ali, os deuses sabem tanto das origens do cosmos como nós, os humildes mortais. Chega a ser frustrante.
Mas uma das conclusões mais eloquentes, e em simultâneo mais divertidas, desta antologia, é a evidência de que os mitos criadores relacionam-se intensa e despudoradamente uns com os outros, numa iniciática entropia de plágios. As cosmogonias gregas vão buscar Prometeu aos mitos primordiais da Suméria e Hesíodo fala de forças não divinas, mas sobrenaturais, que devem ter sido roubadas aos vedas da Índia. Pelo meio, copia muita coisa da Mitologia Hitita que também é generosa com alguns dos seus elementos fundamentais, presentes na iniciação grega e suméria: o céu, a terra e a fertilidade que resulta dessa separação. Aliás, a maior parte dos mitos cosmogónicos parecem simpatizar imenso com esta última ideia. Por outro lado, a Teogonia de Dunno relaciona-se com a queda impenitente para o incesto que é rotineira na mitologia grega; os mitos judaico-cristãos relacionam-se com os gregos por causa do carácter sagrado, purificador e fertilizante da água, bem como da força criadora do verbo. A água, como já referimos, está por todo o lado. E a serpente, a danada da serpente, une os mitos hitita, grego e bíblico. É a promiscuidade total de conteúdos, talvez resultante da imanente presença da tradição oral – e do seu carácter endémico sobre as civilizações.
Especulações comparativas à parte, António de Freitas reúne nesta antologia os textos fundamentais de sete cosmogonias, a saber:
A Cosmogonia Suméria, que data do terceiro milénio antes de Cristo, foi escrita em caracteres cuneiformes, gravados em tabuinhas. Enlil é a entidade paterna dos deuses, que separa o céu da terra e que, através desse processo de ruptura, gera a dupla de divindades An e Ki. Estes fertilizam a terra e geram uma quantidade desesperante de outros deuses, numa orgia de gritos. A sedentarização e a agricultura fazem já parte do mito. O texto, carregado de estrofes que se repetem numa poderosa oração tântrica, é profundamente lírico:
«Enlil,
Quem separou o céu da terra,
quem separou a terra do céu.
Enlil, Senhor Nunamnir,
O Senhor, que não reverte a uma ordem,
que separou o céu da Terra,
que se separou a terra do céu,
Quem separou o céu da terra.»
Quem separou o céu da terra,
quem separou a terra do céu.
Enlil, Senhor Nunamnir,
O Senhor, que não reverte a uma ordem,
que separou o céu da Terra,
que se separou a terra do céu,
Quem separou o céu da terra.»
Da Cosmogonia da Babilónia traduz o autor as nove primeiras linhas da primeira tabuinha do Canto da Criação. Aqui, é a mistura das águas salgadas com as doces que dá origem a tudo o que existe. Neste mito, há um tempo antes dos deuses, ou melhor: há um tempo em que os deuses ainda não tinham sido nomeados.
«Quando do alto do céu ainda nada havia sido chamado pelo seu nome,
e aqui em baixo na terra nada havia sido nomeado
Apsu, o primeiro, o progenitor de tudo o que existe, e mummu T’iamat misturaram as suas águas.»
e aqui em baixo na terra nada havia sido nomeado
Apsu, o primeiro, o progenitor de tudo o que existe, e mummu T’iamat misturaram as suas águas.»
A Teogonia de Dunnu ou Mito de Harab é uma teologia centrada na cidade de Dunnu, de cultura babilónica. Harab (arado) e Ki (Terra) estabelecem uma relação entre a vida agrícola e pastoril que serve de contexto ecológico para uma arrepiante sequência de parrícidios e incestos.
«Então o deus do gado tomou a Terra-mãe como esposa.
E matou o pai, o Arado, e colocou-o a descansar no seu amado Dunno.
O deus do gado assumiu o domínio do pai.
Mas então casou-se com o mar, a irmã mais velha e o seu filho foi o deus dos rebanhos.
O deus dos rebanhos, filho do deus do gado, veio e matou o pai em Dunnu.»
E matou o pai, o Arado, e colocou-o a descansar no seu amado Dunno.
O deus do gado assumiu o domínio do pai.
Mas então casou-se com o mar, a irmã mais velha e o seu filho foi o deus dos rebanhos.
O deus dos rebanhos, filho do deus do gado, veio e matou o pai em Dunnu.»
No que diz respeito ao Mito Criacionista de Israel, são traduzidas passagens do Antigo Testamento (Genesis) e do Novo (evangelhos segundo S. João e S. Mateus). É curioso verificar que no Genesis o gado precede o homem, mas é o homem que completa a criação, nomeando os restantes seres que Deus criou. E enquanto no evangelho Segundo S. Mateus, o baptismo de Cristo é uma renovação do acto criador através da água, no Evangelho Segundo S. João ficamos a saber que no princípio estava o Verbo e não Deus. Mesmo considerando que logo se explica que Deus e o Verbo são entidades indistintas, não deixa de ser espantosa a importância atribuída à palavra como força criadora. Este evengelho é interessante também pela evidente convergência estilística com o texto cosmogónico Sumério já mencionado:
«No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio com Deus.»
Ele estava no princípio com Deus.»
Os Vedas da Índia são bastante contidos em termos mitológicos mas, apesar dessa parcimónia ou precisamente por causa dela, geraram posterior e paradoxalmente aparelhos metafísicos com dezenas de milhares de deuses. Os hinos védicos datam do século X a.C., sendo anteriores a todas as tradições literárias com excepção dos textos hititas. O autor traduz o Hino da Criação védica, texto que produz mais perguntas que respostas, lembrando técnicas socráticas muito posteriores, e onde os próprios deuses não têm conhecimento pleno da mecânica criacionista nem a certeza se serão realmente responsáveis pela criação.
«No princípio a escuridão estava escondida na própria escuridão.
Indistinta, tudo era água.
(…)
Fundou isto ele ou não?
Ele, que no mais alto dos céus é omnividente,
Somente ele o sabe, ou não o sabe.»
Indistinta, tudo era água.
(…)
Fundou isto ele ou não?
Ele, que no mais alto dos céus é omnividente,
Somente ele o sabe, ou não o sabe.»
Os Mitos Hititas são fruto inspirado de uma civilização indo-europeia da Anatólia. Os hititas partilhavam com o próximo oriente a escrita cuneiforme, embora tivessem uma língua parente do grego, do latim e do sânscrito. Fundadores de conceitos cosmogónicos que vamos encontrar em grande parte das literaturas posteriores, os mitos hititas “inventam” a separação entre o céu e a terra, que dá lugar ao mundo. O problema é que o deus rei Telepinu desaparece e o cosmos fica doente e estéril. Neste sentido da narrativa, podemos dizer que a tradição hitita é anticosmogónica. Mas depois de muitas catástrofes, as entidades divinas lançam uma apelo à deusa mãe, criatura sábia e prágmática que envia uma abelha na senda do Desaparecido. O bichinho detective encontra o deus dos deuses soterrado e letárgico, mas desperta-o (com uma ferradela?) e assim, com o regresso da vigília enérgica e empreendedora de Telepinu, é restabelecida a ordem do universo. É interessante verificar que, para os hititas, quando a vida na terra fica difícil, até os deuses passam mal:
«(…)
os humanos e os deuses, mais ainda de fome morrem
o grande-deus-sol festival preparou
e os mil deuses convidou
comeram eles mas não se saciaram
beberam eles mas não satisfizeram a sua sede.»
os humanos e os deuses, mais ainda de fome morrem
o grande-deus-sol festival preparou
e os mil deuses convidou
comeram eles mas não se saciaram
beberam eles mas não satisfizeram a sua sede.»
Os Mitos Gregos são cosmogonias lógicas ou semi-lógicas e, em alguns casos extremos, ateias. A água é o elemento unificador das várias literaturas e surge como influência óbvia de mitos anteriores, provenientes do Próximo Oriente.
Na Teogonia de Hesíodo (século VIII a.C.) o Chaos é o elemento primário e principal, mas não divino. E enigmático, claro, porque não foi criado pelos deuses. Pelo contrário, precede os deuses. Mito de fundamentos lógicos, contribui porém com ontologia divina em quantidade industrial: Gaia, deusa da Terra e Urano, deus do céu e toda uma subsequente panóplia de super-heróis que vão oferecer à História Universal da Metafísica as aventuras e desventuras do Olimpo. Porém, Hesíodo oscila entre a criatividade e o cepticismo, colocando despudoradamente o problema da verdade na construção mítica, retirando poderes criadores aos deuses, meros e desastrados executivos do destino, e atribuindo ao sexo a importância demográfica que tem para os mortais: os deuses só se começam a multiplicar quando Eros inventa o desejo sexual que vai unir Urano a Gaia.
Já na versão de Ferécides de Siro (mestre de Pitágoras – século VI a.C), Chthonie é a deusa mãe e a Terra antes de ser fertilizada. Depois de fertilizada, será Gaia, mãe de Zeus, e Zeus será o deus do céu e da tormenta. Pela primeira vez na tradição grega, surge Chronos e o factor tempo. Enquanto isso, o Poeta espartano Álcman introduz na sua cosmogonia um buraco primordial – Poros – onde se encontra toda a matéria antes de haver espaço e tempo. Álcman propõe um demiurgo – Tétis. E o deus da Morte – Tekmor.
Talvez influenciado pela dialéctica do espartano, Platão sugere também o seu demiurgo, o “sumo-bem” que não é capaz senão daquilo que é bom e belo, ou seja, uma espécie de designer da eternidade. Em Timeu, a sua obra cosmogónica, Platão indica ainda os elementos fundamentais do universo que mais tempo duraram como taxonomia de referência: fogo, terra, água e ar.
Outras cosmogonias gregas há – as órficas – em que os conteúdos primordiais manifestam menos amor pela filosofia e uma sensibilidade mais fantasista: a noite primordial de que provém o casal divino que cria a humanidade, o ovo primeiro que vai incubar protogonos, o primeiro ser, que até pode afinal consubstanciar-se em Zeus, mas um Zeus que não é criado, que nunca nasceu, que nunca morreu, que simplesmente é.
Voltando a Platão, o leitor não pode deixar de notar, com um sorriso talvez cínico no pensamento, que a obsessão pela virtude leva o grande mestre da Academia de Atenas a certos exageros: o cosmos, afinal, pode até dever a sua existência exuberante ao facto de o demiurgo recusar a vilania do ciúme.
«Deixe-me dizer-lhe então, por que o Demiurgo gerou o cosmos. Ele era bom, e o bem não pode ter ciúmes de coisa alguma. Por ser livre de ciúmes, ele desejava que todas as coisas deviessem o mais semelhante a ele próprio. Este princípio só pode ser aceite como o mais verdadeiro de todos, tal como os homens sábios o aceitam, de que tudo foi gerado pelo artífice e que o cosmos é bom.»
É a isto que se chama idealismo. E é por isso que as cosmogonias são belas. Mostram ao futuro como os homens antigos tinham capacidade poética e coragem bastante para valorizar e consagrar o poder das boas ideias.
E esta recolha de António de Freitas decorre, de facto, de uma ideia que é boa e que é bela. Como Platão gostava.