À partida da 19ª etapa da edição de 2018 da volta à Itália, um inglês de 25 anos comandava, algo surpreendentemente, a competição e estava prestes a vencê-la, liderando a classificação geral com mais de dois minutos de vantagem sobre o segundo classificado, Tom Dumoulin, e mais de três minutos sobre Chris Froome. Esse bife era Simon Yates, que no início da prova até tinha afirmado que se os seus adversários não estavam borrados de medo, deviam estar, na medida em que considerava encontrar-se na melhor forma da sua vida e praticamente imbatível.
Acontece que no decorrer dessa montanhosa etapa, mal chegado à terrível subida do Finestre, Yates rebentou completamente, para perder 35 minutos à chegada, enquanto Froome pedalava a mais épica jornada da sua vida, escapando-se precisamente nos segmentos de terra do Finestre, a 80 quilómetros da meta, para ganhar essa edição do Giro.
Voltando ao tempo presente, a 20º etapa da edição de 2025 do Giro contemplava também a mesmíssima subida ao Finestre. Depois de uma exibição menos boa na etapa anterior, Simon Yates encontrava-se em terceiro lugar na classificação geral, a um minuto e vinte de um líder deveras surpreendente, Isaac Del Toro, e a trinta segundos de Richard Carapaz, que era segundo. Na ideia do público, na opinião dos jornalistas e na razão das casas de apostas, Yates estava arredado da luta pela vitória.
Acontece que não.
Numa espécie de redenção sobre o que lhe tinha acontecido em 2018, Yates chegou ao Finestre e despachou del Toro e Carapaz - que se entretinham num duelo de arranques e pausas e protestos e amuos - prosseguindo por ali a acima sempre com a mesma e regular pedalada olímpica, de tal forma que acabou por bater o recorde absoluto da subida, que fez pela primeira vez na história do ciclismo profissional em menos de uma hora.
No cume da montanha mágica, o ciclista de Manchester somava quase um minuto e quarenta sobre os seus directos adversários e já comandava virtualmente a classificação geral. Mais a mais, na descida, apanhou o seu companheiro de equipa Wout van Aert, talvez o melhor atleta que seria possível encontrar em todo o pelotão para a ajudinha extra que precisava. Por causa do van Aert e por causa da birra maluca em que del Toro e Carapaz se deixaram embrenhar, como vários momentos em que só faltava porem o pé no chão e desatarem à estalada, Yates chegou à meta com o Giro no bolso e mais de cinco minutos de vantagem sobre os dois infelizes rivais.
A vingança sobre o destino estava cumprida e esta é uma daquelas histórias que se fossem contadas apenas, em vez de transmitidas ao vivo pela Europsort, ninguém nela acreditaria.
Contra-karma à parte, toda esta volta à Itália foi uma coisa sobrenatural. Enquanto o veterano Matts Pedersen aproveitava o percurso que lhe era muito favorável da primeira parte da prova para somar 4 vitórias, estava já a nascer uma estrela: Isaac del Toro, um rapazinho de 21 anos, tomou conta da corrida quase do princípio ao fim, para pasmo de toda a gente e desgosto do seu companheiro de equipa e chefe de fila, Juan Ayuoso, que mais uma vez mostrou que pode ter muito talento mas não tem carácter nem generosidade nem solidez emocional para ser uma campeão e que acabou por desistir da prova, quando percebeu que já não a ia ganhar e incapaz de se sacrificar em função dos interesses da equipa. Desconfio que a UAE, que de qualquer forma está carregada de craques, o vai por a andar no fim da época.
Mas voltando a del Toro, há que dizer que o jovem ciclista mexicano tem um potencial incrível. E não querendo compará-lo a Pogacar (para isso terá que fazer muitos quilómetros e vencer muitas provas), há que dizer que os dois têm muito em comum: del Toro em cima da bicicleta parece irmão-gémeo do esloveno, sobe ao estrelato com 21 anos apenas, tal e qual Pogacar, e encara a competição com uma mentalidade atacante e uma disponibilidade física que também lembra muito o indisputado líder da sua própria equipa.
Os próximos dois ou três anos vão confirmar ou desmentir esta suspeita, mas creio que neste Giro ficámos a conhecer um grandessíssimo campeão. Não ganhou desta feita, por imaturidade dele e por incompetência táctica da sua equipa, que percebeu tarde demais que era ali que tinha o seu principal trunfo e que falhou completamente no programa que tinha para a 20º e crucial etapa da prova. Mas dá-me a nítida sensação que triunfará abundantemente, no futuro e se o souberem conduzir ao potencial que reside no corpo e na psique do corredor mexicano.
Depois de registar a incapacidade manifesta de Ayuso e da desistência de Roglic - este último, o ciclista mais azarado da história universal da má sorte - del Toro assumiu-se invariavelmente como o homem no pelotão com mais fome de sucesso, a par de Carapaz, embora o equatoriano, bem mais experiente e também ele um atleta de eleição, tenha sido muito mais comedido na sua maneira de correr e nos duelos que decidiu travar.
O mexicano acabou por sucumbir nos derradeiros quilómetros da prova, mas sai de Roma de peito erguido e com uma caminho sorridente para o futuro.
O giro deste ano decidiu-se literalmente nos 30 quilómetros da última etapa que realmente contava para o totobola (a jornada de domingo, como em todas as voltas de 3 semanas, foi protocolar e apenas disputada pelos sprinters, a vinte quilómetros do fim), apesar até de, no início, parecer muito mal desenhada, com toda a alta montanha concentrada na última semana. É difícil conseguir produzir uma prova assim emocionante e de desfecho incerto até ao fim como aconteceu na edição deste ano.
E é como tenho dito nos últimos tempos. Os adeptos de ciclismo têm que andar bem dispostos com os espectáculos que consistentemente lhes são oferecidos. Vivemos numa era de apogeu histórico da modalidade.