sexta-feira, maio 15, 2020

Crónica de um mundo ao contrário.

Num mundo ao contrário, cidadãos são presos por abrirem os seus pequenos negócios, enquanto criminosos são soltos das prisões para não sofrerem de gripe.
Num mundo ao contrário, pessoas inteligentes e bem formadas aceitam com naturalidade que lhes sejam retirados os direitos mais fundamentais, como o do exercício da actividade económica e da liberdade de movimentos e da liberdade de expressão.
Num mundo ao contrário pessoas inteligentes e bem formadas incentivam entusiasticamente a anulação do direito constitucional e o colapso da civilização, enquanto aplaudem os profissionais da saúde por fazerem nem mais nem menos que o seu trabalho.
Num mundo ao contrário cancelam-se os cuidados de saúde àqueles que são vítimas de doenças graves, para dedicar todos os recursos àqueles que foram contaminados por um vírus banal.
Num mundo ao contrário os representantes eleitos no contexto de um Estado de Direito aproveitam esse vírus para exercerem antigos sonhos de poder.
Num mundo ao contrário pessoas inteligentes e bem formadas resignam-se a receberem cheques de estados falidos, quem imprimem moeda desenfreadamente, até que a moeda valha menos do que o papel em que é impressa.
Num mundo ao contrário essas pessoas e todas as outras são aconselhadas a não se tocarem. A não se cumprimentarem. A não se beijarem. A fecharem-se silenciosamente nos seus casulos cibernéticos, vazios de tudo menos de medo.
Num mundo ao contrário não há História, nem Filosofia, nem Ciência, nem rigor, nem vergonha: Há telejornal. O inimigo é o amigo, a verdade é um tweet e a amizade um engodo.
Num mundo ao contrário, altera-se o registo do passado em função das necessidades actuais da propaganda, e somos todos racistas de nós todos. E somos todos fóbicos de nós todos e sexistas de nós todos e todos nós nazis.
Num mundo ao contrário o fascismo passa por democracia, o comunismo por redenção, a infâmia por fama.
Num mundo ao contrário exageram-se os óbitos presentes para mitigar os mortos do futuro. E esquecem-se os que perderam a vida, gerações sobre gerações deles, em nome de valores e virtudes que agora deixamos cair na lama como frutos apodrecidos de uma árvore envenenada.
Num mundo ao contrário a cultura, a tradição, o costume, a família valem menos que zero, porque o imediato e o inócuo e o volátil e o fútil e o espúrio são os tesouros mais prezados.
Num mundo ao contrário as elites borram-se todas ao primeiro sinal de um perigo imaginado, enquanto desvalorizam a coragem daqueles que venceram terríveis ameaças. Num mundo ao contrário ser fraco é ser forte, enquanto a sabedoria se transformou numa aplicação para o telemóvel.
Num mundo ao contrário recebes um telefonema da Scotland Yard, que te admoesta a propósito de um criminoso post de rede social, em que dizes que só conheces duas maneiras de nascer: com pilinha ou com pipi.
Num mundo ao contrário proíbem-te a ida à igreja romana, enquanto as mesquitas recebem livremente os seus fiéis e os sindicatos organizam coreografias com multidões.
Num mundo ao contrário convencem-te que a economia é uma ilusão e que tudo vai correr bem a seguir, porque na verdade o trabalho é acessório e tu não precisas de todo de contribuir minimamente para o produto bruto, até porque o produto bruto cresce nas árvores do socialismo.
Num mundo ao contrário és sempre reduzido à tua insignificância.
Num mundo ao contrário há vizinhos em vez de amigos, turbas em vez de tribos, estados em vez de nações. Num mundo ao contrário Deus foi assassinado e substituído pelo Benfica e pela Sonae. Num mundo ao contrário somos todos cuidadosamente separados pela internet, identificados pelo Facebook, censurados pelo Google, amordaçados e conduzidos ao mais irrelevante destino pelos profetas do vazio de todas as coisas.
Num mundo ao contrário escrevo estas linhas vãs, incapazes de fazer a guerra sobre a vilania imperial. Pequenas-nenhumas linhas, impotentes.
Agradeço a Deus a bênção de não ter tido filhos.