Livros Horizonte - 1979
Na ressaca da turbulência revolucionária, Joel Serrão selecciona um vasto conjunto de textos de intervenção política escritos entre 1820 e 1920 por homens como Alexandre Herculano, Ramalho Ortigão, Antero de Quintal, Teófilo braga, Eça de Queiroz ou Raúl Brandão.
A obra é bastante interessante principalmente porque a prosa é quase sempre magnífica e muitíssimo mais virulenta do que nos parece decente hoje em dia. O problema é que Joel Serrão não colige uma antologia do pensamento político português, como o subtítulo da obra sugere. A selecção é ideologicamente formatada, de tal forma que os textos apresentados são todos de carácter revolucionário, ou - no mínimo - progresssista. Mesmo em relação aos autores mais conservadores integrados nesta antologia, como Alexandre Herculano ou D. Pedro V, os textos escolhidos reflectem momentos do seu pensamento mais à esquerda e não o modelo ideológico e filosófico em que na verdade se enquadram.
Se este livro tivesse como subtítulo "Antologia do pensamento da esquerda em Portugal", seria uma obra mais honesta. Assim sendo, é uma manobra. Uma manobra com piada, mas uma manobra.
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Enciclopédia da Estória Universal - Mar - Afonso Cruz
Alfaguara - 2014
Encosto o ouvido ao mar para ouvir o barulho dos búzios.
De Afonso Cruz e desta Estória Universal, já disse muito do que tinha a dizer aqui. Mas esta obra fascicular é de tal forma bela e prolixa que me obriga a complementar o discurso com mais adjectivos e apologias. Mar é, por si só, um triunfo. Para além das entradas labirínticas e espirituosas do costume, Afonso Cruz integra neste fascículo um conto absolutamente poderoso - que vale por muitos romances - assente num monólogo de uma rapariga mórmon, espartilhado em 67 curtos e intensos capítulos.
Este autor impressiona-me deveras.
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O Eclipse da Razão - Max Horkheimer
Antígona - 2015
Crónica publicada a 04/05/15 |
Sustentando a sua lógica desconstrutiva na sociologia anti-positivista, na psicanálise e no existencialismo, os teóricos de Frankfurt propunham uma abordagem que partia do método marxista para uma aventura interdisciplinar que procurava contrariar a razão instrumental através do uso da razão crítica.
Publicado em 1947 – a partir de um conjunto de palestras dadas em 1944 na Universidade de Columbia -, “O Eclipse da Razão” (Antígona, 2015) é fruto, também, de um natural pessimismo decorrente dos horrores da II Guerra Mundial, da prevalência de estados totalitários na Europa continental e do capitalismo anglo-saxónico, de que o autor era feroz antagonista. Este infeliz conjunto de circunstâncias dever-se-ia, para os filósofos de Frankfurt, à crise da razão, que teria sido sujeita, desde o seu estado virtuoso na antiguidade clássica, a sucessivos graus de subjectivação e formalização.
Logo no arranque do primeiro capítulo, Max Horkheimer define e separa a razão objectiva, que diz respeito ao interesse social e que advém de Platão, à razão subjectiva, que se refere ao interesse individual e que, tendo raízes na escolástica aristotélica, ganhou um novo impulso com os valores e as conquistas do iluminismo e do progresso técnico.
Neste aspecto a obra torna-se extremamente interessante, já que o pensamento do autor é deveras original e bastante lúcido. Para dar um breve exemplo das conclusões verdadeiramente alternativas de Horkheimer, a vertente laica do iluminismo é abordada nestes termos: «Os filósofos do iluminismo atacaram a religião em nome da razão mas no fim de contas o que mataram não foi a igreja mas a metafísica e o próprio conceito objectivo de razão.»
De facto, acreditando no filósofo alemão, a economia intelectual decorrente do iluminismo e do empirismo, que leva à categorização e abstração do indivíduo (fenómenos a que ainda hoje assistimos pela rotulagem imediatista a que os oráculos do programas noticiosos submetem os sujeitos das reportagens – fulano tal é “vítima”; beltrano é “agressor”; cicrano é “desempregado”, etc.), essa economia intelectual é um facilitismo intolerável, que desvaloriza a razão em função das pseudo-virtudes da experiência e do senso comum, ao qual o autor declara guerra. Contrariando teóricos como Heidegger, Gadamer e Chesterton no que respeita à valorização do senso comum e o empirismo britânico de John Locke, Francis Bacon e David Hume, Horkheimer desconstrói e dessacraliza, nas densas e veementes páginas deste livro, muitos dos princípios mais caros à civilização ocidental.
As democracias da sua época, por exemplo, por se encontrarem dependentes dos chamados interesses do povo, dos populismos incontornáveis dos seus líderes políticos e do mandato opressor dos interesses económicos, não oferecem na verdade qualquer garantia contra a tirania. A maioria democrática não é racional, muito simplesmente porque há uma diferença imensa entre o que as pessoas querem e o que é melhor para elas.
Sintomático manifesto da decadência da razão é o facto de a arte se ter transformado, para Max Horkheimer, numa mercadoria cultural. Até a Eroica de Beethoven é consumida pelas massas como «sinfonia de museu» ou, diríamos nós nos dias de hoje, produto de stream, desprovida já do seu fundamental contexto político e social.
A capacidade da Ciência para gerar verdades filosóficas – que, para o Director do famoso Institut für Sozialforschung, são as únicas possíveis – também é posta em causa. A verdade científica, laboratorial e empírica está para além ou muito aquém dos absolutos do pensamento racional e, ao contrário do que nos querem fazer querer os tecnocratas, a ciência não é apenas destrutiva quando é desvirtuada. A deontologia positivista não consegue suster a destruição da razão objectiva: «um corpo oficial de cientistas de acordo com a teoria positivista, é mais independente da razão que o colégio de cardeais, uma vez que o último tem, pelo menos, de se referir ao evangelho».
Claro que o Tomismo – a corrente filosófica que, desde S. Tomás de Aquino, procura conciliar o cristianismo com a tradição aristotélica – também não escapa à lâmina devastadora de Horkheimer. Mas o que surpreende é o ímpeto da crítica que o autor dedica aos intelectuais. Estes devem a sua existência e o seu ócio ao sistema de dominação de que tentam emancipar-se e, talvez por sentimentos de culpa que daí decorrem, acabam por glorificar a classe trabalhadora. O argumentário freudiano, que está muito presente no DNA da Escola de Frankfurt, é transversal sobre toda a obra. Esta tendência para a psicanálise social leva a conclusões que já não serão tão originais para o leitor contemporâneo: a educação burguesa, a indústria e a igreja escravizam, oprimem e traumatizam o indivíduo. E assim, o histerismo colectivo nacionalista e mimético surge como escape dessas tensões acumuladas. Por outro lado, o conflito latente entre o homem e a natureza não se resolve com o iluminismo e o progresso técnico, pelo contrário, nem com o regresso ao primitivismo de Rousseau, que é ingénuo. A solução para estes conflitos – entre o homem e a civilização e entre a civilização e o ambiente – só se podem resolver através do pensamento independente e da razão objectiva.
E cumprindo os 360 graus da sua crítica, Max Horkheimer não se mostra nada tolerante com a praxis marxista do regime soviético. O comunismo, tanto como o capitalismo, conspira para a morte do eu porque o trabalhador passa de objecto do capital a objecto do trabalho. A sua liberdade e a capacidade que tem para exercer a individualidade, o pensamento independente, é, nos dois casos, muito reduzida. Mas porque «o individuo completamente desenvolvido é o consumar de uma sociedade completamente desenvolvida» é imperativo regressar ao paradigma platónico da razão que serve eticamente o bem comum, a única capaz de devolver ao homem a sua verdade essencial. Até porque, apesar de tudo, «as pessoas são geralmente melhores do que pensam, ou dizem ou falam.»
Este aparente optimismo não pode porém iludir o leitor. No momento da história em que o utilitarismo resultou numa substituição do filósofo pelo engenheiro e em que o poder industrial está a liquidar o indivíduo, há que assumir que a filosofia não é útil nem tem que o ser. Há que afirmar a filosofia como um «esforço consciente para combinar todo o nosso conhecimento e compreensão numa estrutura linguística na qual as coisas são chamadas pelos seus nomes justos.» A adequação da coisa ao nome como verdade filosófica, que indicia uma aproximação à primeira fase do pensamento de Ludwig Wittgenstein, habilita o pensamento a superar os efeitos desmoralizadores e amputadores da razão formalizada. E, em certo sentido, dá a Max Horkheimer um aliado poderoso e improvável, do outro lado do hemisfério: quando certa vez um discípulo perguntou a Confúcio qual seria a sua primeira medida se lhe fosse dado o poder absoluto de todos os reinos da China, o mestre respondeu-lhe: “Fácil. Começava por mudar os nomes.”
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Fernando Pessoa - Eu Sou Uma Antologia - 136 Autores Fictícios - Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari
Tinta da China - 2013
Eu sou uma anthologia.
Screvo tam diversamente
Que, pouca ou muita a valia
Dos poemas, ninguém diria
Que o poeta é um sòmente.
Quem pretende conhecer profundamente a obra e a vida de Fernando Pessoa, deve ter este livro como referência. É mais útil para cumprir esse objectivo que a biografia do Cavalcanti, por exemplo.
A partir de um trabalho de natureza enciclopédica levado a cabo por Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari, dois eruditos na polifigura pessoana (hoje em dia há mais especialistas em Pessoa que espécies de cogumelos venenosos), este documento vale bem o seu preço FNAC. Cuidadosamente facsimilizado e muito bem trabalhado no que respeita aos conteúdos bibliográficos, gráficos e semânticos, o trabalho lança uma perspectiva abrangente e detalhada da antologia que Fernando Pessoa foi.
Entre os 136 autores, temos poetas, romancistas, ensaístas, historiadores, economistas, críticos, tradutores, editores, publicistas, gestores, profetas, videntes, astrólogos, ocultistas, decifradores de charadas e construtores de charadas. Temos homens e mulheres e crianças. Temos textos em português, inglês, francês e italiano. Temos escritos que são já conhecidos de toda a gente, escritos que poucos conhecem e escritos inéditos. Enfim, temos Fernando Pessoa, na sua incrível complitude.
Das centenas de jóias mais ou menos inéditas que constam da obra, destaco apenas esta pérola, de um autor pessoano pouco conhecido, Frederick Wyatt:
SONG
Sun to-day and storm to-morrow.
Never can we know
When is joy or when is sorrow,
hapiness or Woe...
The clock strikes. To-day is gone.
Man, proud man, oh think Thereon!
From delight we pass to sadness
From smile to tears,
And the boldness of our gladness
Dies among our fears.
The clock strikes. An hour is past.
Think, oh think, how all doth waste!"
Um livro cuja leitura me deu um enorme prazer. Aliás, o simples facto de o ter na estante dá-me um enorme prazer.
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Hás-de morrer a tentar provar
a toda a gente
que és imortal.
“Manual de Instruções Para Desaparecer” (Abysmo, 2015) é o primeiro livro de poemas de José Anjos, mas, pelo que é possível saber numa modesta pesquisa através da web, não faz justo retrato à sua poesia. Autor já premiado na 3ª edição do Poetry Slam Sul, a filosofia lírica de José dos Anjos parece ter dado uma cambalhota, a julgar pelo que escrevia em 2012 e por aquilo que escreve agora para esta edição.
A obra recolhe 34 poemas que são fiéis a uma evidente invocação de Mário Cesariny e de três ismos fundamentais: o modernismo, o futurismo e o surrealismo. Toda a obra é uma espécie de cadáver esquisito escrito a uma mão e o leitor vai, inevitavelmente, enrodilhar-se em muito maus lençóis se espera encontrar nestas páginas um vestígio de inteligibilidade.
Em caso de perda
basta ligar as baratas
para acender paredes.
Neste sentido, a pergunta que é preciso fazer a José Anjos é esta: o que é que a poesia, esta poesia, quer dizer? Ou antes, precisa a poesia de significado?
Há muita gente, ilustre gente, que dirá: não. A poesia, como a arte, precisa de um ideal estético, de identidade estilística, de virtuosismo lexical, mas não de narrativa. Precisa de ritmo e de estrutura, mas não de um sentido. Precisa de uma causa, mas não precisa de uma consequência. Precisa da sintaxe, mas não da semântica. De Almada Negreiros a Ezra Pound, de Keroac a Cesariny de Vasconcelos, de Breton a O’neil, encontramos frequentemente na história da literatura aqueles que sempre se orgulharam do poema pelo poema. E que sempre se estiveram a borrifar para as coisas prosaicas e aborrecidas a que geralmente chamamos substância.
Quando Almada Negreiros escreveu o célebre “Os Ingleses Fumam Cachimbo”, estaria preocupado com o significado do seu poema? Claro que não. Almada estaria talvez preocupado com uma certa forma de construção e desconstrução lírica, com uma certa modernidade estilística, com uma certa atitude de ruptura conceptual, mas não com o que aquilo queria dizer, porque na verdade se trata de um poema que não quer dizer nada de especial. E ninguém vai agora afirmar que o Almada não sabia o que estava a fazer, não é?
Quando Almada Negreiros escreveu o célebre “Os Ingleses Fumam Cachimbo”, estaria preocupado com o significado do seu poema? Claro que não. Almada estaria talvez preocupado com uma certa forma de construção e desconstrução lírica, com uma certa modernidade estilística, com uma certa atitude de ruptura conceptual, mas não com o que aquilo queria dizer, porque na verdade se trata de um poema que não quer dizer nada de especial. E ninguém vai agora afirmar que o Almada não sabia o que estava a fazer, não é?
O problema porém, é de ordem diacrónica. Se é certo que os grandes mestres do modernismo europeu tinham razões de sobra para mandar à fava os velhos cânones do romantismo e do realismo, não se percebe o que é que esta poesia que soa bem, que é cuidada, que é até, a espaços, inspirada, que é tecnicamente válida e que é criativa em doses extra largas, tem para oferecer na sua relação com o leitor de hoje e com o mundo de agora. Quando o poeta escreve
Para encontrar o ponto de partida:
fazer um círculo à volta do meio em toda a amplitude semântica de um gemido palíndromo
e desenhar uma ponte entre cada lado, com os dedos pintados ao espelho;
depois, partir do canto direito da batalha com tudo nos bolsos
escreve isto porquê? Escreve isto a que propósito? E escreve isto contra quem? A poesia, para ser niilista a este ponto, tem que ter uma batalha pela frente, tem que ter uma missão que transcenda e justifique o seu carácter surrealizador. Mas qual é a missão de José dos Anjos? Vamos, por um disparatado minuto, supor que há um inocente no mundo que compra este livro para saber como é que uma pessoa faz para desaparecer. O infeliz não vai conseguir realmente perceber a mecânica do processo e isso é garantido. É claro que ninguém com um centilitro de bom senso no saco do cérebro vai ler este livro com essa intenção, mas nesse caso, qual é a intenção com que se lê este livro? Podemos talvez especular que esta poesia é um manifesto contra uma qualquer outra forma de fazer poesia. Mas esse manifesto, convenhamos, já foi feito, e bem feito, há um século atrás.
Podemos por ventura imaginar que esta poesia visa ferir movimentos artísticos contemporâneos que produzem outro tipo de poesia. Mas quais são esses movimentos? Existirão, pergunto, movimentos artísticos contemporâneos? Não será até essa coisa do movimento artístico algo do passado, que não tem correspondência na forma caleidoscópica, esquizofrénica, individualista e libertária de pensar e fazer a arte no século XXI?
É verdade que há coisas que se percebem, para além do jogo das palavras. Manual de Instruções para Desaparecer é uma obra sobre a morte, ou melhor, é uma obra que está farta da vida. Isso entende-se bem em estrofes deste género lapidar:
“Por vezes achava que se me concentrasse o suficiente
era capaz de me matar com um só pensamento.”
É verdade que os futuristas, com Marinetti à cabeça do pelotão dos grandes malucos, iam de certeza abraçar José dos Anjos com firmeza e alegria incontível, se vissem a espectacular “Máquina lírio em perspectiva explodida“, invenção gráfica que introduz a obra e que, já legendada, faz as despedidas. Mas esta máquina, com os seus carburadores imagéticos, enaltecedores de particularidade e núcleos disfóricos, apresenta os mesmos problemas de engenharia que são evidentes em grande parte da fábrica de debitar ininteligibilidades que é este Manual: não produz aquilo a que se possa chamar uma mensagem.
É verdade também que a história da literatura está repleta de conteúdos incompreensíveis. E muitas vezes geniais nessa ausência de senso. Mas um parágrafo de Joyce que seja incompreensível não é incompreensível desta maneira:
as instruções para vir à tona
essas
ias recolhendo para uso próprio e talvez lá pela esquina dos cinquenta tivesses
algo a dizer sobre o tecto de água onde chegam
bancadas de pulmões frescos como peixes
mortos à superfície
Há sem dúvida cuidados estéticos e editoriais que o leitor sensível apreciará, neste Manual de Instruções. Há sem dúvida uma beleza terrível nas deambulações obscuras e enigmáticas de José dos Anjos. Há sem dúvida talento a rodos e a capacidade mágica de dar vida a palavras que não estão nada à espera de se cruzar numa determinada estrofe. Há sem dúvida uma voz lírica que grita, mas que grita em checoslovaco, baixinho e debaixo de água. Como gritava Mário Cesariny há umas décadas, como gritava André Breton há um século.
Aproveitando, abusivamente, a epígrafe deste texto, um dos mais belos momentos de todo o livro, José dos Anjos há-de morrer a tentar provar a toda a gente que é moderno. O problema é que esta poesia é antiga.