sexta-feira, agosto 08, 2025

Tudo o que sabes está errado. Dois casos de estudo (parte 2).

Vivemos num mundo onde creditar ou seguir sem critério qualquer pessoa que tenha um perfil público mais proeminente é deveras arriscado. O triste caso de Judas B. Peterson é particularmente elucidativo sob o estreito gume entre a virtude e a infâmia em que circulam as elites, porque mesmo aqueles que se apresentam como dissidentes acabam, se tiverem sucesso, quase invariavelmente por serem devorados pelo mal que combatem. 

É por isso que já tenho escrito que quando chegam a um certo patamar de fama e poder, todas as pessoas são Fausto.

E isto já para não falar nos políticos ditos populistas. Trump será o caso mais gritante de traição ao mandato e às expectativas do seu eleitorado, mas são raros os líderes que cumprem a missão para a qual foram eleitos, que é, estritamente, a de representar os interesses dos cidadãos que os elegem. aliás e bem vistas as coisas, o populismo é isso mesmo: a ideia de que a democracia só funciona se os representantes do povo forem justos guardiões dos seus valores e aspirações.

E eu pergunto: quando Ventura alinha com os poderes instituídos que querem fazer a guerra à Rússia, está a representar as aspirações dos portugueses que votaram nele? E quando Javier Milei presta culto no muro das lamentações, está a reflectir os valores dos seus eleitores argentinos? E quando Nigel Farage mostra reticências constantes em deportar os imigrantes ilegais que vivem à custa dos contribuintes britânicos, está a defender os interesses desses contribuintes? E quando, em plena crise de imigração em Itália, a ‘populista’ Meloni gasta mil milhões de euros num Fundo Climático para carros elécricos, que agenda é que está a privilegiar, a de Bruxelas ou a dos cidadãos italianos? Os exemplos deste colapso para o centro globalista são literalmente intermináveis.

Mas voltando àqueles cuja profissão não é a actividade política no seu estrito senso, mas a da formação da opinião pública, aconteceu esta semana um terramoto mediático nos EUA, que poderá ter escapado aos portugueses e que tem a ver com um homem que até aqui tem sido deveras respeitado por aqueles que se identificam com a ideologia populista, pelo seu talento como comunicador e jornalista, tanto como pela coragem que tem mostrado na defesa das causas em que acredita: Tucker Carlson.

 

Tucker Carlson vs. Nick Fuentes: não há santos no inferno.

Recentemente, o pundit de extrema-direita (no caso, o rótulo parece-me justo) Nick Fuentes, sugeriu num dos seus podcasts que Tucker Carlson está ligado à CIA e é uma espécie de guardião dos poderes instituídos em Washington (e da influência sionista nessa oligarquia), permitindo domesticar a opinião pública através de um simulacro de dissidência, que impede a verdadeira revolução populista na América.

Considerando o perfil arrivista de Fuentes, as acusações poderiam não ter transbordado para fora do âmbito orgânico dos seus seguidores, mas Tucker cometeu um erro estratégico inacreditável, num homem com a experiência e a escala de influência que tem, e que na verdade está muito para além do que Fuentes pode até sonhar: decidiu responder a essas acusações. E, o que é mais grave ainda, mentiu flagrantemente no processo, saindo de cena como um elitista maluco.

Aproveitando a conversa que estava a ter com Candace Owens, que tinha entrevistado Fuentes dias antes, num simulacro envenenado de exercício dialéctico de que ela também não saiu airosamente, Tucker manifestou o seu desagrado por estar a ser atacado por "um miúdo maricas e esquisito de Chicago", e que ele sim - Fuentes - deveria estar a trabalhar para o estado profundo, na medida em que ataca "exclusivamente" as pessoas que não são doidas como ele, mas que procuram de facto e seriamente combater os poderes instituídos na América. Tucker sentiu-se até pessoalmente atingido pelo "miúdo de Chicago" por este ter referido que o seu pai trabalhava para a CIA e que, sendo essa afirmação verdadeira, ele próprio só terá sabido disso depois da morte de Dick Carlson.


Ora, em primeiro lugar convém clarificar as águas: eu nunca simpatizei grande coisa com Nick Fuentes. Sempre me pareceu histriónico e, de facto, meio "esquisito". A sua versão do populismo, que vira as políticas de identidade da esquerda ao contrário, para fazer da raça, da religião e do sexo cavalos de batalha, também nunca me agradou particularmente, apesar de eu ser branco, cristão e homem e de achar que essas categorias ontológicas devem ser respeitadas em vez de perseguidas. Ao contrário, e como os leitores deste blog e do Contra sabem muito bem, a voz de Tucker Carlson constituiu, principalmente a partir de 2016, quase invariavelmente uma referência ideológica para a minha intervenção cívica, mesmo que modesta e resumida ao âmbito editorial. 

Mas a reacção de Tucker aos comentários de Fuentes não só foi estrategicamente desastrosa, como falaciosa. Não é verdade que Fuentes critique exclusivamente populistas com que não concorda. O rapaz é uma espingarda de repetição que dispara convulsivamente contra toda a gente, da extrema-esquerda à extrema-direita do espectro político. Não é verdade, ou pelo menos não existem factos demonstráveis, que o pundit de Chicago seja homossexual, mesmo apesar de ter, assumidamente, uma relação complicada (ou simplesmente nula) com o sexo oposto. Mas sobretudo, não pode ser verdade que Tucker Carlson só tenha tido conhecimento de que o seu pai trabalhava para a CIA depois da morte deste. O próprio Carlson afirmou publicamente em 2024, antes do falecimento do pai - que morreu em Março deste ano - que tinha conhecimento desse facto. Mais: Dick Carlson foi o director da Voice of America entre 1986 e 1991 e toda a gente sabe que este órgão de comunicação social patrocinado pelo governo federal americano servia como instrumento de propaganda da CIA. Não há aqui qualquer teoria da conspiração. É um facto. E é impossível que Tucker Carlson não soubesse dessa estreita relação entre a emissora e a agência de Langley.

Mas porque raio se viu Tucker obrigado a mentir, de forma tão grosseira, e ainda por cima em resposta a acusações feitas por um "miúdo esquisito de Chicago"?

Todos sabemos que o homem é um acérrimo crítico das actividades criminosas da CIA. Todos sabemos que é causa constante e insistente de dores de cabeça para as criatura do esgoto de Washington. Todos sabemos, ou julgamos saber, que combate com corajosa frontalidade sionistas e neoconservadores, democratas tresloucados e apparatchiks do sistema. Que satisfações teria que dar a um polemista meio obscuro com uma conta no Rumble com 200 mil seguidores?

Aqui entra o momento mais alto da carreira activista de Nick Fuentes, que decide na segunda-feira passada publicar aquele que será seguramente um dos mais notáveis streams de mal dizer da história da Internet.

Nick tem talento como comunicador (até Tucker reconhece isso) e a energia de um rapaz de 26 anos, a que junta a experiência de já fazer o que faz desde adolescente. Mas este stream de duas horas e meia é uma monumental obra de retórica e construção de argumentário que não tem muitos paralelos no panorama dos media independentes do século XXI.


Fuentes começa por desmontar os vectores do ataque de Tucker Carlson, explicando minuciosamente porque maldisse personagens queridos ao ex-funcionário da Fox News como o vice-presidente JD Vance e o actual director do centro de Contra-Terrorismo dos EUA, Joe Kent, associando-os directamente, e com sólidos argumentos, à CIA e ao elitismo transhumanista do eixo Silicon Valley/Wall Street/complexo industrial militar e, assim, associando também Tucker a estes sombrios interesses.

Depois destaca o passado privilegiado de Tucker, que provém de facto de uma família da alta burguesia do Maine, politicamente influente e, principalmente resultante da actividade política de Dick Carlson, convictamente neoconservadora e ligada aos mais sombrios poderes imperialistas dos Estados Unidos. Os primeiros 10 anos de actividade profissional de Tucker, que passou pela CNN, pela CBS e pela Fox News, também como pundit neoconservador, são a esse título eloquentes. 

Episódios da sua juventude são mais preocupantes, como aquele em que, depois de ver rejeitada a candidatura a uma carreira na CIA, fez parte de uma excursão patrocinada pela agência à Nicarágua, que qualificou como uma 'viagem de férias'.

É claro que toda a gente tem direito a mudar de opinião e Tucker, a partir de 2016, deixou de se alinhar com a maneira de pensar a América das elites que a governam. O próprio redactor deste texto também teve um trajecto ideológico muito semelhante, facilmente ilustrado neste blog, que conserva essas linhas de pensamento político desde 2004.

As primeiras duas horas do monólogo de Fuentes são assim dedicadas a desmontar, ponto por ponto, as falácias de uma crítica de Tucker que não durou mais de dez minutos, pelo que trazem agarradas ramificações que são a todos os títulos arrepiantes, demonstrando que mesmo os aparentes protagonistas da dissidência populista nos EUA acabam por ser agentes dos poderes instituídos, conduzindo as massas por uma via que seja ainda assim gerenciável por quem realmente manda na federação (e em todo o Ocidente). Seria fastidioso colocar por escrito tudo o que é dito por Fuentes, mas, apesar da sua extensão, o Contra recomenda vivamente o consumo deste monólogo. Porque é brilhantemente proferido e articulado (não há um momento aborrecido, na verdade) e porque dá que pensar. 

E nós, no Ocidente, precisamos de pensar, mesmo sobre assuntos cuja revisão possa doer no cerebelo.

A questão mais profunda abordada por Fuentes, no meu entendimento, nem será porém o seu rebatimento meticuloso das afirmações de Tucker, mas a crítica que faz ao tom desdenhoso, condescendente e - ironicamente - elitista com que o consagrado jornalista se refere ao "miúdo de Chicago".

Convém esclarecer que este "miúdo", que provém de uma família humilde, que é produto da destituída classe operária americana, e que, sendo precisamente de Chicago, lutou na infância e na adolescência com todo o tipo de políticas de identidade de extrema-esquerda, que o prejudicaram objectivamente por ser do sexo masculino, branco e cristão; teve, como activista precoce, que suportar a censura e o cancelamento, a marginalização a escassez de recursos financeiros, a difamação e até a violência por parte de grupos de esquerda que o perseguem e ameaçam constantemente.

Fuentes sofreu na pele os males que denuncia. A história da sua vida é a história da América contemporânea e do sofrimento a que foi submetida a classe média e média-baixa nativa.

Tucker teve a experiência oposta. Filho de elites, fez o percurso das elites. Sempre foi rico, como ele mesmo admite. Ninguém tem culpa de ser rico e ser rico não tem mal nenhum, por si só, mas as causas que defende não decorrem do que experimentou, mas do que concluiu intelectualmente. Também foi difamado, mas sempre foi protegido. Tentaram cancelá-lo, mas era já excessivamente proeminente para ser censurado com efectividade, e mesmo quando foi despedido da Fox levou com ele um chorudo pacote de dólares para casa (foi-lhe integralmente pago o valor do seu contrato bilionário) e a imensa audiência que tinha entretanto congregado na estação, que o foi seguir na sua TCN. Mais a mais, conforme ele próprio confessou recentemente, os Murdoch, depois de o terem despedido, desafiaram-no para concorrer contra Trump às presidenciais de 2024, facto que é, no mínimo, indicativo de que mesmo as elites neocon o calculam como alinhado com a sua agenda.

Neste contexto, o tom da crítica de Tucker, tanto como a sugestão de que Fuentes não passa de um fed infiltrado nas bases mais à direita do movimento populista americano, soaram a falso. Tucker não pode posicionar-se como defensor das classes mais baixas da sociedade americana e depois tratar Fuentes, um produto chapado dessa realidade sociológica, com o desdém típico do elitista. E transferir as suspeitas que sobre ele recaem de ser um guardião dos poderes instalados na América para um moço que na verdade os combate fervorosamente, e que sofre as consequências desse combate como Tucker nem consegue imaginar, também não pega.

Depois de ouvir Fuentes, ficamos com aquela sensação comichosa de que Tucker tem algo a esconder. Caso contrário ignoraria as acusações. Caso contrário seria menos agressivo na resposta a acusações infundadas. Caso contrário não precisaria de mentir. Caso contrário não seria tão intransigente na defesa de Joe Kent, que serviu até como agente militar da CIA (é público) ou JD Vance, que também tem laços com Langley e que sobretudo segue cegamente a agenda de uma das mais sinistras figuras do século XXI americano: Peter Thiel.

É de sublinhar inclusivamente que a Palantir, fundada por Thiel, teve durante os primeiros anos de existência apenas a CIA como cliente.

E que conclusões tirar de tudo isto? 

Se eu acredito que Tucker Carlson é tudo o que Nick Fuentes diz dele? Não. Se eu acredito que o proeminente jornalista é completamente cínico nas posições anti-establishment que assume? Também não. Mas depois deste episódio, devo dizer: fiquei desconfiado. 

O que é recomendável, até. Nos tempos que correm é  saudável desconfiarmos de toda a gente em posição de poder. E Tucker Carlson tem muito poder. E os círculos do poder, no Ocidente, são regra geral satânicos. Não é ecossistema onde sobrevivam sãs e incorruptas, as pessoas de bem.