Obras Completas . Jorge Luís Borges . Vol. IV . Editorial Teorema
Terminei finalmente a leitura daquele que é um dos meus autores favoritos de todos os tempos, um clássico entre clássicos, monstruoso vulto de erudição e sensibilidade, mestre cego no labirinto da história universal. Os quatro volumes desta edição da Teorema ofereceram-me textos que não conhecia, claro, principalmente poemas e ensaios, mas antes de pegar neles já tinha lido muita coisa do Borges, pelo que esta leitura foi mais uma revisitação que uma descoberta.
Já aqui escrevi sobre o bibliotecário de Buenos Aires tantas vezes e tanto, que não vale a pena a repetição. Deixo só os primeiros cinco versos de "Insónia", para abrir o apetite de alguém que aqui venha parar e que esteja a pensar em ler ou reler o mago argentino:
De ferro,
de encurvadas vigas de enorme ferro tem de ser a noite,
para que não a rebentem e a desentranhem
as muitas coisas que os meus olhos repletos já viram,
as duras coisas que insuportavelmente a povoam.
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O Livro Aberto: Leituras da Bíblia . Frederico Lourenço . Cotovia
Muito devo a Frederico Lourenço: trouxe-me a voz de Homero. Trouxe-me a voz de Cristo. Como tradutor e ensaísta, é uma figura de proa da cultura portuguesa e nestas "Leituras" percebemos porquê. As questões que este breve conjunto ensaístico traz a lume, ardem intensamente. Por exemplo: Os evangelhos foram escritos numa língua - o Grego - que, muito provavelmente, Cristo não dominava. É necessária pois a devida cautela na análise do texto original, e tentar paralelos entre o grego e o aramaico, à procura de soluções de compromisso, que façam melhor luz sobre as mais enigmáticas palavras do nazareno.
Outro exemplo: A Bíblia, nos dois testamentos, reconhece que os homens não são iguais entre si, mas apenas perante Deus. E nem sequer considera a escravatura ou a servidão males em si mesmos, porque a equalização final só ocorre depois da vida e em função de um julgamento final. Porque um escravo pode ser um filho da crápula da pior espécie, que acaba eternamente no inferno e um esclavagista pode ser um santo com lugar vitalício no paraíso, apesar das probabilidades da lógica evangélica apontarem para um resultado inverso. O que importa é percebermos que os contextos históricos dominam os preceitos morais, e assim são mais importantes do que as modas do bem pensar académico para a exegese lúcida e honesta.
E ainda outro exemplo, dos muitos e interessantíssimos assuntos que este fascinante ensaio coloca em debate: de uma maneira geral, as igrejas cristãs fizeram da família a pedra de toque da sua teologia e, em muitos casos, de Maria uma figura central do seu palco sagrado. Jesus, porém e nos quatro evangelhos, parece extremamente desinteressado e distante do seu núcleo familiar, desvalorizando o papel da sua mãe, evitando os irmãos e chegando até ao ponto de recusar seguidores e discípulos que não odeiem os seus familiares directos. Esta última questão tem muito que se lhe diga e nos próximos tempos vou desenvolvê-la aqui no blog com mais profundidade.
Há no entanto que ler Frederico Lourenço com uma salvaguarda: trata-se substancialmente de um autor laico. Ainda por cima, e por razões de ordem pessoal (a homossexualidade que não se cansa de revelar), um laico que considera a Igreja Católica como uma espécie de inimigo existencial. Aqui e ali, este detalhe é de manifesta pertinência e apesar de todo o genial e volumoso trabalho que tem feito até aqui, não podemos simplesmente recusar a dúvida e o justo inquérito sobre tudo o que Frederico Lourenço crie ou traduza em relação com os texto bíblicos.
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Princípio de Karenina . Afonso Cruz . Companhia das Letras
"Todas as famílias felizes
se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira." É assim que começa o célebre Anna Karenina, de Tolstoi. Afonso Cruz pega neste discutível axioma para mais um romance que não o envergonha, mas que também não me parece constituir a sua obra de referência. É claro que o talento criativo deste senhor, tanto como a sua tendência borgiana para a literatura entretecida em vários layers de complexidade psicológica e cenográfica, estão mais que presentes, neste romance. Mas, aqui e ali, aborreci-me. E não foi o imaginário exótico da Indochina que me despertou do aborrecimento, pelo contrário.
Uma nota para as ilustrações fotográficas da capa e dos separadores, que são da autoria do escritor (que também sabe muito de artes gráficas): cinco estrelas.
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Poemas de Li Bai . Tradução de António Graça de Abreu . Instituto Cultural de Macau
Ler poesia chinesa não é ler apenas o que escreveu o autor dos poemas. É também ler o que o tradutor ocidental interpreta, como expliquei aqui no blog já há uns anos atrás:
Ninguém que não domina a língua dos mandarins pode realmente compreender a sua literatura. Qualquer tradução para português será sempre uma versão e não uma tradução, porque os chineses não têm alfabeto, mas sim uma escrita fundada em ícones (lologramas) que podem encerrar vários vocábulos e vários significados. Além disso, um poeta do período clássico chinês teria também que ser um mestre das artes gráficas, sendo que a componente visual dos poemas chineses, que também cumpre uma espécie de métrica, não tem expressão possível nos idiomas ocidentais.
Posto isto, e para além do que também já escrevi sobre este magnífico poeta, devo dizer que gosto cada vez mais de poesia oriental e admiro cada vez mais a cultura clássica chinesa (não confundir com a sua cultura contemporânea, que é multidimensionalmente espúria e retém do património clássico apenas aquilo que interessa ao comité central).
Li Bai (701-762 DC), o aventureiro romântico, o intrépido bebedor, o rebelde temperamental, mestre de todos os sarilhos, o poeta aclamado e maldito que rebola pela colina da vida abaixo, entre triunfos e perseguições, mostra-se, na tradução de Graça de Abreu, ainda assim, surpreendentemente equilibrado e sóbrio e contemplativo. Poeta do que é belo porque é através daquilo que é belo que capturamos ao mundo alguma consolação filosófica, Li Bai caminha no sentido da imortalidade com graça e espírito e veia prolixa.
Este livro, que conta umas boas e largas centenas de poemas, é uma verdadeira delícia.
Um jarro de vinho entre as flores,
bebo sozinho, sem amigos.
Levanto o copo e convido o luar,
com a minha sombra somos três.