segunda-feira, outubro 13, 2025

No cais.

Passam p'los meus olhos, sodomizam-me o cérebro,
factos e desfactos, graças e desgraças, instantâneos do inferno.
Acredito e desacredito, entre versículos e palavrões, 
e no colapso das convicções, arrisco-me a morrer 
na mesma medida ignaro que no dia em que fui parido.

Confundo e fundo realidades no lodo metafísico deste cais 
e tenho medo e coragem e cigarros para nunca mais voltar.
Vou partir para o outro lado, mas não sei do passaporte,
e carrego uma âncora na alma e os erros pesam na mala
e o navio que não chegou já zarpou e tudo o que me resta é 
o mapa de ficar aqui. 

Não sou português nem estrangeiro,
não deixo filhos nem literatura de viagem
(o cais não está virado para o Atlântico); 
o meu cristianismo é de algibeira e os bolsos estão rotos
e os dias ficam mais curtos na fita métrica do destino 
que faço e desfaço com a plasticina da vontade e a lama das marés:
ando à procura do Camões pela praia do fim de tudo
e do Pessoa por entre os turistas do Chiado
e de Deus, na biblioteca municipal do submundo.

Imagino conspirações e cruzadas, ponho-me de cócoras no futuro,
templário ao assalto de castelos de lego, monge guerreiro
na feira popular da minha infância,
na feira da ladra da velhice a que não vou chegar.

A existência implica o entendimento de equações de terceiro grau
ou a memorização do Pai Nosso e eu,
que nunca fui treinado em charadas e que sou analfabeto de orações,
vivi perdido desses segredos e assim morrerei desnorteado
na deriva cósmica de não saber de mim.

Talvez já devesse estar morto, talvez não devesse ter nascido,
talvez nunca tenha nascido - linha html de um modelo de linguagem
processada para o silêncio.

Tudo é nevoeiro e código, indecifrável.
Eu próprio, bruma e morse, incognoscível.
Pontos e traços, na pauta de melodia nenhuma
e uma cruz, no fim, e enfim 

a liberdade.