sexta-feira, novembro 15, 2019

Antes do destino, a precipitação.

Pensei que o meu querido amigo Márcio Candoso, insigne jornalista, máximo poeta, estrela do Facebook e esporádico colaborador deste blog, tinha desistido de editar o seu magnífico segundo livro de Poemas, que ele me pediu para prefaciar, e como já tinham passado uns bons dois anos sobre a redacção desse texto introdutório, publiquei-o no outro dia aqui no blog. Precipitei-me, nitidamente, porque "Antes do Destino" foi lançado ontem, na Ler Devagar.

Os versos do Márcio são de um tamanho enorme, apesar de se tratar de um pequeno livro. Se o virem numa livraria, e se gostam de poesia, comprem, que vale muitíssimo a pena.

Como retirei o post precipitado, volto a publicar o prefácio desta feliz edição da Orfeu.

____________

A obra como destino. Um prefácio inútil.


Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.


Fernando Pessoa


O Márcio não simpatiza com Pessoa por aí além e não vai gostar que o prefácio a este seu segundo livro de poemas comece como começa. Mas o Márcio, como qualquer outro grande poeta, não percebe realmente nada sobre a própria e sobre a alheia grandiosidade. É aliás precisamente por isso que os poetas devem agradecer à humanidade pela esquizofrénica existência de críticos literários e outros inócuos escribas que conseguem escrever coisas tão inócuas como prefácios.

Há no entanto uma verdade que permanece na lírica do célebre antagonista: o destino tem mais poder que deuses e homens. E, aqui, o Márcio estará certamente de acordo comigo e com o bom e velho Fernando: o seu primeiro livro de poemas queria ser - e verdadeiramente era - uma pedrada de tal forma permanente no charco efémero das letras escritas em Português que lhe decidiu chamar "Antes do Destino". Estas coisas não acontecem por acaso, e se há coisas que não acontecem por acaso são os versos do Márcio Alves Candoso. Pelo contrário, há uma probabilidade estatística de surgirem como surgem, dada a aversão que a natureza tem pela página em branco e apesar da arbitrariedade das variáveis inclusas na equação do poema.

Na Física e no amor

Não há espaço para vazios

(Sejam de volume ou de área)

E p'ra esvaziar a dor

A ordem de qualquer factor

É por demais arbitrária!


Leis naturais à parte, o leitor mais esclarecido, mesmo que ainda no seu primeiro café da manhã, reparará inevitavelmente que este é um compêndio de versos imensamente carregado de um sentido existencial - não necessariamente existencialista - que é, no século XXI, de uma raridade arrepiante. Este fervor da vida concreta é, claro, para-ideológico: o poeta é de esquerda e de direita, nacionalista e internacionalista, conservador e liberal, reaccionário e revolucionário consoante a raiva que viaja no verso.

Eu vou
Vou de camisa preta, sangue vermelho
e dignidade imaculada
Vou de preto - a cor do meu luto por este
País que me estragaram
Vou de vermelho - porque é a minha força e guerra
(...)

Não vou à esquerda, nem à direita
nem muito menos ao centro... Vou acima
Levo comigo Viriato, comer a carne e o osso
Levo Afonso, que não quer
ser protectorado de ninguém...
Levo o Gama que me ensina o vento
Levo a pena e a espada
Levo os meus porque sou deles.
Levo os que não admitem
menos do que ficar na História


Este recurso recorrente à contradição em favor da coerência lírica é menos diletante do que militante. O Márcio Alves Candoso faz parte daquela espécie de cosmopolitas ao contrário que Voltaire gostava de convidar para jantar fora e esse cosmopolitismo de pernas para o ar torna-se de tal forma niilista, de tal forma inquiridor, que arrasa com os semáforos do bom senso e deixa o leitor com os pontos cardeais embrulhados num novelo electro-magnético de difícil resolução técnica.

Se eu fugir atordoado
para as montanhas do Nepal
e me passar para o Dalai la-rai-la-rai-lai-lai-Lama
serei mais feliz do que fumando
Lucky Strike numa reunião em Roma?


Mas atenção: diversos, intrincados e intrinsecamente paradoxais como são, os poemas aqui constantes não são passatempos, charadas, sudokus. Não são exercícios estilísticos ou panfletários; deseducados desafios à sensibilidade ou irritantes provocações à inteligência. Não são textos ensaísticos e armados em espertos nem trazem a promessa de uma qualquer terapia. Estes poemas não são de auto-ajuda nem recomendam dietas. Não são atenciosos com a forma como, por exemplo, são escravos do ritmo (o Márcio chama-lhe jazz). Não são preocupados com axiomas como são, assumida e distraidamente, enormes esponjas da história universal das boas ideias literárias venham-lá-elas-de-onde-vierem. Não respeitam especialmente as escolas, os maneirismos, os comodismos e as outras todas e resignadas abstrações da identidade. São cimento concreto, armado, com ferro lá dentro. São substanciais como um bife mal passado, prestes a ser devorado por Schopenhauer. São densos como as alegorias de Platão, mas sem a pretensão da fábula. São intensos como a cerveja de Rimbaud, mas não clamam pelo inferno. São sábios como os ensinamentos dos profetas, mas sem o LSD que foi preciso para umas semanas de deserto. São como os auto-retratos condenados à imperfeição do perfeccionista que era Rembrandt. Procuram, afinal como todos nós procuramos, um justo caminho para a salvação.

Não és nada, apenas um retrato a sépia de trunfa
mal iluminada, betume de interior do espaço
tão vazio como a cabeça dos que param
contigo à mesa dos medíocres orçamentos
do bafio dos ventos condicionados,
e do esquiço da aguarela mal pintada.
E interessa, isso? É postiço, praga!
E entesa? Não entesa nada!


Poesia lapidar, uma especialidade da apurada cozinha do autor. Mesmo quando se escrevem mais palavras, sempre, do que aquelas que surgem na impressão do menu. A maior parte das palavras que o Márcio despeja por cima do leitor nem precisam sequer da cumplicidade tecnológica de Gutenberg. Não têm necessidade do pigmento para estarem lá explícitas e para serem alegremente despejadas. Ficam gloriosas no que o verso deixa por dizer. E é por isso que tantas das estrofes deste livro são na verdade fantasmáticas. O poeta é uma manipulador único do fenómeno poltergeist a que usualmente chamamos magia negra. E o máximo feitiço desta poesia é que transcende até a necessidade da entrelinha. Ao invés da interpretação académica, temos a íntima, e assim profusa, liberdade de intuição. A leitura destas páginas traz a carne de cada um para fora da pele:

Quando pintaste a sacada, lembras-te?
Era eu que recitava a cor do Douro
E o Rio de la Plata, e o tango,
e a minha gravata e os teus chinelos


E esta é a pedagogia que toda a literatura deve trazer agarrada. Porque todos nos lembramos dos chinelos de cada situação, mesmo a mais romântica. Até a mais ridícula. Somos todos o Márcio, com a diferença absoluta de que só o Márcio é que soube escrever um poema com os chinelos e a gravata da comédia que todos nós guardamos em nós. O leitor será, prometo, invariavelmente apanhado em cuecas.

Neste sofisticado showroom da roupa interior da alma, não deixa, claro, de se exibir o grande romântico. Mas, convenhamos, a atitude romanesca que nos é sugerida em “Quando Tudo Era Tanto” deixaria Petrarca em estado de choque. A eterna Laura, musa medieva dos sonetos de métrica perfeita, é agora, setecentos anos depois, atingida com versos carregados electricamente com a alta voltagem do pragmatismo cínico - e todavia sincero - do homem pós-moderno.

Desculpa-me se te perco,
desculpa se não te chamo
eu descuido-me, incerto
na certeza que te tenho.


Deve porém o prefaciador alertar o paciente leitor: articular sobre o amor segundo o poeta Candoso é uma tarefa por demais ambiciosa e, porventura, vã. O diagnóstico do papel da mulher na sua poesia é, no mínimo, reservado. Gentil e paciente, materialista e exigente, a musa oscila com frequência assustadora entre a deusa, que excita até a fé dos ateus, e a vilã de telenovela venezuelana, que anula completamente o libido ao mais latino dos escribas.

Sei quase tudo de ti
Quando esperas, quando chegas primeiro
quando feres, quando raios que me partes
em cima, quando gostas dos meus ares
e imperas, ou lá o que é, quando sentes
no teu pé de laranja lima
como se eu me chamasse Zezé
e ainda por baixo
fosse pobre e muito pouco macho. 


É claro que há sempre uma vulnerabilidade, quase clássica, sempre ridícula, na voz lírica que se atreve à confissão passional. Mas essa fraqueza, esse saber certo que existe em cada homem de que em cada mulher há uma fortaleza inexpugnável, é rapidamente transcendida através do recurso à mais rude sobranceria, também ela de gosto romano:

Agora ficas a saber tanto como eu
das vitórias e dos meus escombros
Vê se ficas calada e abres finalmente a boca.
Eu tenho do Céu o canto que te cometo
o fogo de Prometeu
e da próxima prometo que te encho a Alma
até ao útero.


Além do mais, o Márcio Alves Candoso - é preciso dizer isto - não tem uma enorme devoção por Homero, ou por Virgílio, ou por Cícero, ou por Hesíodo ou até por Juvenal, de quem herdou tantas comichões. O que não deixa de ser estrondosamente divertido, porque os versos dele são construídos daquela forma tão antiga como a literatura, em que os adjectivos passam rapidamente a substantivos por serem prodigiosamente poderosos e de tal forma colocados no seu perfeito lugar frásico que realmente fazem romba a navalha de Occam. Há em Marte Bendito, por exemplo, o claro sabor clássico de Camões (embora remixado numa versão Ridley Scott):

E a mim, Marte, chegaram os humanos
Em dia obscuro, com pesados instrumentos
O tormento que passaram foi bem claro
Mas recebi-os e aos sorrisos que então deram.
Que ao passar nesta atmosfera onde me empenho
Em mares que eles nunca ultrapassaram,
Só lhes deixo este conselho, que é fecundo
Bem vindos, a outra terra, a outro mundo!


E depois, claro, sempre conseguimos encontrar nesta proverbial maneira de dizer coisas absolutamente não proverbiais, o escárnio de um escrevinhador furioso que não tem medo de ninguém - e neste caso, podemos bem dizer que o homem é a sua literatura e vice-versa:

Livro, sou mais livre e tu definhas
como os teus secredos publicados
em linhas tortas.  


“Quando Tudo Era Tanto” é uma espécie de manual de sobrevivência para as gerações vindouras, exactamente da mesma forma que o protocolo diplomático dos Xogun do século XVI, no Japão momentaneamente tolerante para com jesuítas e outros alienígenas, ajudou bastante a burocracia imperial do país no fim dos anos novecentos: ou te adaptas ao sexo oral que cada cliente exige ou vais à guerra. Nem é preciso dizer que nos versos que aqui encontrarás, gentil leitor, está todo o conflito bélico entre aquilo que o homem quer e aquilo que o homem tem. E se aquilo que o homem tem são uns quantos poemas (não necessariamente os que desejaria, mas os que estão escritos), será talvez melhor que sejam impressos. Será talvez melhor que sejam lidos.

Viste o filme? Corta agora! E manda publicar a fita.

____________

Paulo Hasse Paixão
Março de 2017