Pensei que o meu querido amigo Márcio Candoso, insigne jornalista, máximo poeta, estrela do Facebook e esporádico colaborador deste blog, tinha desistido de editar o seu magnífico segundo livro de Poemas, que ele me pediu para prefaciar, e como já tinham passado uns bons dois anos sobre a redacção desse texto introdutório, publiquei-o no outro dia aqui no blog. Precipitei-me, nitidamente, porque "Antes do Destino" foi lançado ontem, na Ler Devagar.
Os versos do Márcio são de um tamanho enorme, apesar de se tratar de um pequeno livro. Se o virem numa livraria, e se gostam de poesia, comprem, que vale muitíssimo a pena.
Como retirei o post precipitado, volto a publicar o prefácio desta feliz edição da Orfeu.
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A obra como destino. Um prefácio inútil.
Se é maior ser um Deus, que diz apenas
Com a vida o que o Homem com a voz:
Maior ainda é ser como o Destino
Que tem o silêncio por seu hino
E cuja face nunca se mostrou.
Fernando Pessoa
O
Márcio não simpatiza com Pessoa por aí além e não vai gostar que o
prefácio a este seu segundo livro de poemas comece como começa. Mas o
Márcio, como qualquer outro grande poeta, não percebe realmente nada
sobre a própria e sobre a alheia grandiosidade. É aliás precisamente por
isso que os poetas devem agradecer à humanidade pela esquizofrénica
existência de críticos literários e outros inócuos escribas que
conseguem escrever coisas tão inócuas como prefácios.
Há no entanto
uma verdade que permanece na lírica do célebre antagonista: o destino
tem mais poder que deuses e homens. E, aqui, o Márcio estará certamente
de acordo comigo e com o bom e velho Fernando: o seu primeiro livro de
poemas queria ser - e verdadeiramente era - uma pedrada de tal forma
permanente no charco efémero das letras escritas em Português que lhe
decidiu chamar "Antes do Destino". Estas coisas não acontecem por acaso,
e se há coisas que não acontecem por acaso são os versos do Márcio
Alves Candoso. Pelo contrário, há uma probabilidade estatística de
surgirem como surgem, dada a aversão que a natureza tem pela página em
branco e apesar da arbitrariedade das variáveis inclusas na equação do
poema.
Na Física e no amor
Não há espaço para vazios
(Sejam de volume ou de área)
E p'ra esvaziar a dor
A ordem de qualquer factor
É por demais arbitrária!
Leis
naturais à parte, o leitor mais esclarecido, mesmo que ainda no seu
primeiro café da manhã, reparará inevitavelmente que este é um compêndio
de versos imensamente carregado de um sentido existencial - não
necessariamente existencialista - que é, no século XXI, de uma raridade
arrepiante. Este fervor da vida concreta é, claro, para-ideológico: o
poeta é de esquerda e de direita, nacionalista e internacionalista,
conservador e liberal, reaccionário e revolucionário consoante a raiva
que viaja no verso.
Eu vou
Vou de camisa preta, sangue vermelho
e dignidade imaculada
Vou de preto - a cor do meu luto por este
País que me estragaram
Vou de vermelho - porque é a minha força e guerra
(...)
Não vou à esquerda, nem à direita
nem muito menos ao centro... Vou acima
Levo comigo Viriato, comer a carne e o osso
Levo Afonso, que não quer
ser protectorado de ninguém...
Levo o Gama que me ensina o vento
Levo a pena e a espada
Levo os meus porque sou deles.
Levo os que não admitem
menos do que ficar na História
Este
recurso recorrente à contradição em favor da coerência lírica é menos
diletante do que militante. O Márcio Alves Candoso faz parte daquela
espécie de cosmopolitas ao contrário que Voltaire gostava de convidar
para jantar fora e esse cosmopolitismo de pernas para o ar torna-se de
tal forma niilista, de tal forma inquiridor, que arrasa com os semáforos
do bom senso e deixa o leitor com os pontos cardeais embrulhados num
novelo electro-magnético de difícil resolução técnica.
Se eu fugir atordoado
para as montanhas do Nepal
e me passar para o Dalai la-rai-la-rai-lai-lai-Lama
serei mais feliz do que fumando
Lucky Strike numa reunião em Roma?
Mas
atenção: diversos, intrincados e intrinsecamente paradoxais como são,
os poemas aqui constantes não são passatempos, charadas, sudokus. Não
são exercícios estilísticos ou panfletários; deseducados desafios à
sensibilidade ou irritantes provocações à inteligência. Não são textos
ensaísticos e armados em espertos nem trazem a promessa de uma qualquer
terapia. Estes poemas não são de auto-ajuda nem recomendam dietas. Não
são atenciosos com a forma como, por exemplo, são escravos do ritmo (o
Márcio chama-lhe jazz). Não são preocupados com axiomas como são,
assumida e distraidamente, enormes esponjas da história universal das
boas ideias literárias venham-lá-elas-de-onde-vierem. Não respeitam
especialmente as escolas, os maneirismos, os comodismos e as outras
todas e resignadas abstrações da identidade. São cimento concreto,
armado, com ferro lá dentro. São substanciais como um bife mal passado,
prestes a ser devorado por Schopenhauer. São densos como as alegorias de
Platão, mas sem a pretensão da fábula. São intensos como a cerveja de
Rimbaud, mas não clamam pelo inferno. São sábios como os ensinamentos
dos profetas, mas sem o LSD que foi preciso para umas semanas de
deserto. São como os auto-retratos condenados à imperfeição do
perfeccionista que era Rembrandt. Procuram, afinal como todos nós
procuramos, um justo caminho para a salvação.
Não és nada, apenas um retrato a sépia de trunfa
mal iluminada, betume de interior do espaço
tão vazio como a cabeça dos que param
contigo à mesa dos medíocres orçamentos
do bafio dos ventos condicionados,
e do esquiço da aguarela mal pintada.
E interessa, isso? É postiço, praga!
E entesa? Não entesa nada!
Poesia
lapidar, uma especialidade da apurada cozinha do autor. Mesmo quando se
escrevem mais palavras, sempre, do que aquelas que surgem na impressão
do menu. A maior parte das palavras que o Márcio despeja por cima do
leitor nem precisam sequer da cumplicidade tecnológica de Gutenberg. Não
têm necessidade do pigmento para estarem lá explícitas e para serem
alegremente despejadas. Ficam gloriosas no que o verso deixa por dizer. E
é por isso que tantas das estrofes deste livro são na verdade
fantasmáticas. O poeta é uma manipulador único do fenómeno poltergeist a
que usualmente chamamos magia negra. E o máximo feitiço desta poesia é
que transcende até a necessidade da entrelinha. Ao invés da
interpretação académica, temos a íntima, e assim profusa, liberdade de
intuição. A leitura destas páginas traz a carne de cada um para fora da
pele:
Quando pintaste a sacada, lembras-te?
Era eu que recitava a cor do Douro
E o Rio de la Plata, e o tango,
e a minha gravata e os teus chinelos
E
esta é a pedagogia que toda a literatura deve trazer agarrada. Porque
todos nos lembramos dos chinelos de cada situação, mesmo a mais
romântica. Até a mais ridícula. Somos todos o Márcio, com a diferença
absoluta de que só o Márcio é que soube escrever um poema com os
chinelos e a gravata da comédia que todos nós guardamos em nós. O leitor
será, prometo, invariavelmente apanhado em cuecas.
Neste sofisticado
showroom da roupa interior da alma, não deixa, claro, de se exibir o
grande romântico. Mas, convenhamos, a atitude romanesca que nos é
sugerida em “Quando Tudo Era Tanto” deixaria Petrarca em estado de
choque. A eterna Laura, musa medieva dos sonetos de métrica perfeita, é
agora, setecentos anos depois, atingida com versos carregados
electricamente com a alta voltagem do pragmatismo cínico - e todavia
sincero - do homem pós-moderno.
Desculpa-me se te perco,
desculpa se não te chamo
eu descuido-me, incerto
na certeza que te tenho.
Deve
porém o prefaciador alertar o paciente leitor: articular sobre o amor
segundo o poeta Candoso é uma tarefa por demais ambiciosa e, porventura,
vã. O diagnóstico do papel da mulher na sua poesia é, no mínimo,
reservado. Gentil e paciente, materialista e exigente, a musa oscila com
frequência assustadora entre a deusa, que excita até a fé dos ateus, e a
vilã de telenovela venezuelana, que anula completamente o libido ao
mais latino dos escribas.
Sei quase tudo de ti
Quando esperas, quando chegas primeiro
quando feres, quando raios que me partes
em cima, quando gostas dos meus ares
e imperas, ou lá o que é, quando sentes
no teu pé de laranja lima
como se eu me chamasse Zezé
e ainda por baixo
fosse pobre e muito pouco macho.
É
claro que há sempre uma vulnerabilidade, quase clássica, sempre
ridícula, na voz lírica que se atreve à confissão passional. Mas essa
fraqueza, esse saber certo que existe em cada homem de que em cada
mulher há uma fortaleza inexpugnável, é rapidamente transcendida através
do recurso à mais rude sobranceria, também ela de gosto romano:
Agora ficas a saber tanto como eu
das vitórias e dos meus escombros
Vê se ficas calada e abres finalmente a boca.
Eu tenho do Céu o canto que te cometo
o fogo de Prometeu
e da próxima prometo que te encho a Alma
até ao útero.
Além
do mais, o Márcio Alves Candoso - é preciso dizer isto - não tem uma
enorme devoção por Homero, ou por Virgílio, ou por Cícero, ou por
Hesíodo ou até por Juvenal, de quem herdou tantas comichões. O que não
deixa de ser estrondosamente divertido, porque os versos dele são
construídos daquela forma tão antiga como a literatura, em que os
adjectivos passam rapidamente a substantivos por serem prodigiosamente
poderosos e de tal forma colocados no seu perfeito lugar frásico que
realmente fazem romba a navalha de Occam. Há em Marte Bendito, por
exemplo, o claro sabor clássico de Camões (embora remixado numa versão
Ridley Scott):
E a mim, Marte, chegaram os humanos
Em dia obscuro, com pesados instrumentos
O tormento que passaram foi bem claro
Mas recebi-os e aos sorrisos que então deram.
Que ao passar nesta atmosfera onde me empenho
Em mares que eles nunca ultrapassaram,
Só lhes deixo este conselho, que é fecundo
Bem vindos, a outra terra, a outro mundo!
E
depois, claro, sempre conseguimos encontrar nesta proverbial maneira de
dizer coisas absolutamente não proverbiais, o escárnio de um
escrevinhador furioso que não tem medo de ninguém - e neste caso,
podemos bem dizer que o homem é a sua literatura e vice-versa:
Livro, sou mais livre e tu definhas
como os teus secredos publicados
em linhas tortas.
“Quando
Tudo Era Tanto” é uma espécie de manual de sobrevivência para as
gerações vindouras, exactamente da mesma forma que o protocolo
diplomático dos Xogun do século XVI, no Japão momentaneamente tolerante
para com jesuítas e outros alienígenas, ajudou bastante a burocracia
imperial do país no fim dos anos novecentos: ou te adaptas ao sexo oral
que cada cliente exige ou vais à guerra. Nem é preciso dizer que nos
versos que aqui encontrarás, gentil leitor, está todo o conflito bélico
entre aquilo que o homem quer e aquilo que o homem tem. E se aquilo que o
homem tem são uns quantos poemas (não necessariamente os que desejaria,
mas os que estão escritos), será talvez melhor que sejam impressos.
Será talvez melhor que sejam lidos.
Viste o filme? Corta agora! E manda publicar a fita.
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Paulo Hasse Paixão
Março de 2017