FADO É CARNE VIVA.
A maior parte dos portugueses e até dos lisboetas, não percebe nada de Fado, mesmo que o ouça com algum prazer. É que o Fado não é música, é o lamento próprio de quem vive certas existências pitorescas que só realmente um português de Alfama consegue consubstancializar em ontologia. E quando falo de Fado não estou a falar das cantingas, mas das vidas que as perfazem. Ninguém entende o Fado porque o Fado canta o desígnio do fadista e o fadista - essa espécie em vias de extinção - é rouco de cigarros e asmático de sofrimentos: não tem voz para cantar no duche. O fadista - esse romanesco folhetim em forma de gente - está de ressaca no fígado ou no coração: não tem pachorra para o solfejo. O fadista é um fatalista no sentido em que sabe que não conta para os recenseamentos da razão e, por isso, é-lhe indiferente se o Tejo corre para Vila Franca de Xira ou traz para o Barreiro os venenos de Espanha; no fim, ele vive sossegado a sua vida de desventuras e enganos, de navalhadas na lógica e pontapés na boca, de ridículos e glórias insondáveis e vai de bolsos vazios pela madrugada, despreocupado e sábio, percorrendo os passeios da existência com habilidade, é certo, com desgosto também, mas acima de tudo com a tranquilidade do ser consciente da sua mais pura insignificância estatística, estética e moral. (1997)