sábado, março 26, 2005

O fémur apresenta-se irreverente. Brilha irónico à luz dolorosa e fluorescente da sala de espera do banco de urgências de Santa Maria. Devo dizer que sofro como um condenado. Dói-me a fractura em exposição e a fragilidade exposta. Dói-me o orgulho e o osso erecto, fálico, sobre a pele esfacelada. Merda, merda, merda. Três da tarde de um magnífico sábado de Junho e eu aqui perneta, e eu aqui dorido da vida, envergonhado de um acidente sem maiúsculas, e eu aqui a ser insultado por lâmpadas indiscretas, vítima da curiosidade das crianças e da piedade fingida desta gente que habita os hospitais públicos, gente sinistrada, gente solitária, gente hipocondríaca, gente aflita, gente angustiada, gente indiferente, gente suja, gente apenas gente. Tudo porque um cachorro decidiu atravessar a rua no exacto momento em que decidi esforçar a pedalada. Ia a descer. Azar do caraças ir a descer e a dar gás à vertigem, disparado pelo asfalto a 40 quilómetros por hora. Da canela para baixo é que já não sinto nada e estou a ficar com o estômago revoltado por causa do sangue nas peúgas. Tarda nada vomito no oleado vomitado deste calabouço para ciclistas infelizes. De súbito e com estrépito, uma gordinha cheia de nódoas numa bata que um dia foi branca dá entrada na antecâmera da agonia. Pornógrafos de todo o mundo, retirem as enfermeiras de cena. Não há realismo numa enfermeira sexy. A moçoila passa a língua pelos lábios que de facto não existem e, com jeitos de sargento miliciano, cospe: a bicicleta, de quem é? Como não me abetece responder e é muito provável que nenhum dos restantes atrasados de espírito tenham chegado ali a pedalar, faz-se um silêncio meio comprometido. O diabo é que a gaja insiste: quem é o engraçadinho que deixou a bicicleta em cima de uma maca? Aproveito a deixa e digo-lhe: ah, esse engraçadinho sou eu. E o que está a geringonça a fazer em cima de uma maca? Quer saber a inquisidora mor. E eu satisfaço-lhe a curiosidade: senhora dona enfermeira, a minha bicla sofreu um grave acidente ao tentar evitar a morte trágica de um cachorro indefeso, imagine, uma cambalhota a 40 à hora! A pobre bicicleta não se aguentava em pé, pelo que deduzi que precisava de tratamento urgente antes que lhe sobreviesse uma comatose terminal. Coloquei-a na maca na esperança de que um dos elementos do zeloso pessoal médico a conduzisse aos cuidados intensivos. Constato agora que tal esforço foi em vão. E porque me encontro neste magnífico salão palaciano à coisa de duas horas pressuponho que por esta altura o desgraçado veículo cicloturístico faz já parte do clube dos cadáveres esquecidos pelo que agradecia que o acondicionassem condignamente na morgue rodoviária do hospital. No que me diz respeito, garanto-lhe que não pretendo levantar o tutu deste excelente cadeirão, produto da mais fina carpintaria clínica, abrindo talvez uma reticente excepção perante a remota e eventual hipótese de ser chamado algures no tempo da minha insignificante existência para que me façam o devido curativo. Como pode facilmente observar, estou mais necessitado de uma intervenção cirúrgica do que de levantamento e arremesso de bicicletas em avançado estado de decomposição. A pobre criatura engole a língua, olha horrorizada para o desastre anatómico que exibo não sem alguma vaidade e sai com maior determinação do que entrou. A verdade é que o meu discorrer retórico, que raras vezes me deixa ficar mal, não caiu em saco roto. Momentos depois sou levado solenemente, como um tesouro da sinistralidade urbana, para o fulcro e o frémito dos cuidados hospitalares: radiografias, testes, análises e enfim, bloco operatório. Metem-me qualquer coisa nas veias e adormeço antes que as pálpebras se fechem. Quando acordo, já não me doi a perna, ou melhor, já não me doi apenas a perna: doi-me tudo, a cabeça, a razão, o gesso e a roupa interior. Sentado na cama está o meu velhote, entre o alívio e o embaraço. Como é que te sentes? E antes que eu consiga responder: mas que história é essa de pores a bicicleta em cima de uma maca? O meu muito querido e muito palerma paizote, espectacularmente preocupado com a sanidade mental do filho e sem saber que a bicicleta tinha ficado na Gomes Pereira, o local do crime. O meu muitíssimo abstruso e crédulo papá que nem sequer pôs a hipótese de ser completamente impossível a um ser humano com uma fractura exposta na perna esquerda arrastar uma bicicleta destroçada até ao hospital de Santa Maria. Reúno todas as forças para lhe dar uma gentil e complacente palmadinha no joelho e asseguro-lhe: pai, essa bicicleta não era a minha bicicleta. Eu quis trazê-la comigo mas os gorilas da ambulância não foram nisso. Agora vai comprar o Record e deixa-me dormir mais um bocadinho. (1997)