quinta-feira, fevereiro 16, 2006

À escuta das Vozes da Poesia Europeia - IV

Celebrando a feliz edição da revista Colóquio Letras - que traz à estampa, em três cuidados volumes, as traduções que David Mourão-Ferreira fez da poesia europeia.

JUVENAL E AS QUEIXAS DE ROMA.

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É realmente uma chatice, mas sabe-se muito pouco sobre a vida de Decimus Lunius Luvenalis, o mais indignado e moralista dos poetas satíricos da história do Império Romano. Nascido no primeiro e morrido no segundo século da era cristã, Juvenal deixa à posteridade um vasto discorrer de protestos, críticas, censuras, lamentos, vitupérios, acusações, conselhos, imperativos categóricos, grandes máximas de tom paternalista e algumas saídas de génio proverbial, entre as quais a célebre equação retórica "Quis custodiet ipsos custodes?" (Quem guarda os guardiões?), a propósito da inutilidade de usar eunucos para guardar as mulheres dos nobres. A expressão "panem et circenses" (pão e circo) - utilizada para definir os instintos primários da populaça - é também da sua pertinaz autoria.
Juvenal viveu numa Roma mal criada, indigesta, perigosa e barulhenta; uma Roma pobre e imunda e caótica, emaranhado de ruas estreitas, calçadas esburacadas, telhados periclitantes e engarrafamentos de carroças; a rebentar pelas costuras de bêbados e bandidos, de putas e soldados, de escravos insolentes e fidalgos avarentos e senadores corruptos e matronas promíscuas. De tudo isto, muito se queixa o autor, nas 16 sátiras que sobreviveram às eras. Davida Mourão Ferreira escolheu traduzir precisamente alguns fragmentos bem elucidativos do tom choroso embora constestatário, hipocondríaco mas sardónico, do grande poeta.
Façam o favor de ficar pois, com o livro de reclamações de Juvenal, uma eloquente vítima da barbárie romana.

“O que a pobreza tem afinal de mais duro:
dar a qualquer pessoa um aspecto ridículo.”

“Morre-se aqui de insónia. E fica-se doente
com as más digestões, que nos deixam o estômago
em acidez ardendo... Onde encontrar um sítio
propício para o sono? É que só os mais ricos
poderão afinal dormir nesta cidade.
E é isto que nos mata. E que dizer do aperto
p’los carros provocados em as ruas estreitas,
do rebanho ruidoso e que não mais avança,
capazes de acordar mesmo aqueles que sofrem
da doença do sono? Apenas quem é rico
é que pode sem custo, em liteira fechada,
aí ler, e escrever, e dormir à vontade,
chegar aonde quer antes de toda a gente...
Nós, que vamos a pé, temos que suportar
a torrente de quem caminha à nossa frente
e a torrente de quem nos empurra p’las costas:
aqui, um cotovelo; ali, uma fasquia;
este me dá c’um pau, aquele com um vaso;
e tenho as pernas já salpicadas de lama;
e ora esmagado o pé por uma sapatorra,
ora fendido o pé p’lo ferro de um soldado!

Agora considera outra ordem de p’rigos
aos quais principalmente a noite nos expõe:
se uma telha cair destes altos telhados,
em que estado nos deixa o crânio, em que estado!”

Sátiras 3


“Quando a casa é maior, Mais insolente o escravo.
Repara nesse, aí que a resmungar te impinge
um duríssimo pão, de miolo empastado,
que sabe já a mofo e a teus dentes resiste!
Do alvo como a neve, inda por cima fofo,
só o dono da casa é que pode ingeri-lo...
E não penses sequer que vais tomar-lhe o gosto.
Retira lá as mãos! Refreia o apetite.”

Sátiras 5


“Há que um risco sofrer por uma justa causa?
Geladas de pavor ficam logo as mulheres...
Só pra desonrar é que mostram audácia,
pois não há nada, então, que as faça estremecer.

Enjoam no alto mar, tudo lhes causa náusea,
se têm que embarcar por ordem dos maridos...
Co’os amantes, porém, fazem boa viagem,
e tudo lhes agrada a bordo dos navios...”

Sátiras 6